Em 2002 o diretor francês François Ozon ficou conhecido por todo mundo ao lançar o filme 8 mulheres, um musical excêntrico sobre um assassinato que contava em seu elenco com estrelas como Catherine Deneuve, Isabelle Rupert e Emmanuelle Béart. Esse era apenas o início da carreira de um diretor extremamente autoral e prolífico (em 18 anos, lançou 15 longas-metragens), que ficou conhecido por usar o cinema para contestar as expectativas da sociedade. A totalidade dessa obra foi reunida na Mostra François Ozon, que acontece em São Paulo no cinema Caixa Belas Artes até dia 2 de março.
A mostra é promovida pelo grupo Luzes da Cidade, responsável por outras em 2014 e 2015 como “O Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro, Cinema, Globalização e Multiculturalismo”, “O Novo Cinema Chileno” e “New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política”. Além de exibir todos os longas de Ozon, a mostra exibirá alguns de seus curtas e promoverá um debate sobre sua obra no dia 24 de fevereiro, às 19h.
“Queremos que o público tenha contato com a cinematografia de um diretor autoral, para que perceba como o cinema pode ser diverso na forma de filmar sem perder de vista uma proposta específica de narrar”, afirma Marília Lima, pesquisadora e curadora da mostra, para o LADO BI. “Essa maneira autoral de Ozon coloca sempre um narrador que perturba o olhar do espectador, que o faz criar expectativas, para depois rompê-las. É dessa maneira que o espectador questiona o que vê, que percebe a construção por trás do cinema”. Confira a seguir o restante da entrevista, feita por e-mail.
LADO BI François Ozon é um diretor declaradamente gay. Como isso influencia sua obra?
Marilia Lima Ozon é um diretor que trabalha com diversas temáticas. Em cada filme ele experimenta novas maneiras de construir a narrativa. O que implica dizer que seus filmes sempre trazem coisas novas, logo, não se encaixam em um padrão narrativo. Não acredito que essa maneira de filmar tenha a ver apenas com sua sexualidade, mas sim como um modo de ver as coisas do mundo: compreender que a construção de parâmetros sociais e culturais, como os padrões patriarcais e heteronormativos, podem ser desconstruídos pelo cinema, inclusive trabalhando com temas e personagens marginais.
O primeiro grande sucesso de Ozon foi o musical Oito Mulheres. Desde então, ele é famoso por retratar personagens femininas extremamente bem. A que se deve isso?
Acredito que o trabalho com personagens femininos está em torno de buscar desconstruir essa imagem feminina que foi injetada na sociedade. A mulher longe desse olhar patriarcal (como símbolo da maternidade por exemplo), fora das amarras da repressão sexual. Suas personagens femininas mostram a pluralidade de se construir outras subjetividades para o gênero feminino. 8 mulheres é um desses filmes que colocam em xeque as aparências por trás dos papéis sociais dentro de uma família burguesa, e mostra como elas são bem mais profundas do que o padrão emoldurado para elas quer fazer acreditar.
Nos filmes de Ozon podemos encontrar alta carga erótica, sexualidade fluida, homossexualidade e transexualidade. É justa uma comparação entre sua obra e a de Pedro Almodóvar, outro europeu famoso por abordar esses temas?
A comparação com Almodóvar é justa, uma vez que ambos trabalham com temas e personagens marginais. Há uma vontade de provocação nos dois diretores, que no entanto não é feita de forma gratuita. Seus filmes fazem com que o espectador questione a ordem social estabelecida como verdade, como natural. Há de ressaltar que eles fazem isso de forma diferente em relação à linguagem cinematográfica. Almodóvar é um pouco mais excêntrico que Ozon. Os filmes de começo de carreira de Ozon, como Sitcom e Gotas d’água sobre pedras escaldantes lembram mais os filmes de Almodóvar pelo humor ríspido. No entanto, seu filmes seguintes mudam um pouco esse tom, caminhando mais para narrativas densas.
Quais filmes são mais indicados para quem quer começar a conhecer a obra do diretor em geral, e quais são mais interessantes para quem quiser se aprofundar em sua proposta mais queer?
Indico três filmes bem diversos para aqueles que querem sentir essa maneira plural de trabalhar com a linguagem cinematográfica: Sitcom (27/2), um filme de humor ácido sobre uma família burguesa; Ricky (29/2), que é um realismo fantástico sobre um bebê alado; e Dentro da casa(25 e 29/2), um filme metalinguístico, que prende a atenção do espectador tanto pela história como pela maneira de filmar. Para aqueles que buscam uma proposta mais queer, recomendo Gotas d’água sobre pedras escaldantes (27/2), um filme em torno das relações entre 4 personagens; 8 mulheres (23/2), pela estética e pelo humor irônico, o que lembra os filmes do New Queer Cinema, como Paciência zero, de John Greyson, e O tempo que resta; e Uma nova amiga (2/3), pela temática gay.
O cinema francês parece tratar a homossexualidade de maneira muito mais tranquila e sem alardes que o cinema norte-americano e brasileiro. Você concorda? Por quê?
Em relação ao cinema norte-americano, é importante lembrar das diversas produções fora do universo hollywoodiano, que é mais engessado por seu sistema de indústria. Tais produções fora de Hollywood são muito ricas em trabalhar com temas sociais, como o próprio New Queer Cinema nos anos 80 e 90. Há diversos filmes que não chegaram ao grande público por causa do domínio dos blockbusters. Então, se falarmos de Hollywood, sim, ainda é bem careta, mas há muito cinema para além do Oscar. No Brasil, isso também acontece. Temos diversos filmes que trabalham com a homossexualidade sem alardes – em 2013, inclusive, o Luzes da Cidade realizou uma mostra com o tema “A personagem homossexual no cinema brasileiro”. O problema é que esses filmes ficam ainda restritos aos circuitos alternativos de exibição