Como uma viúva lésbica e um juiz conservador abriram caminho para o casamento igualitário nos EUA

Em apenas dois anos o casamento igualitário nos Estados Unidos deixou de ser uma distante possibilidade e se tornou uma inevitabilidade. Conheça a história dessa mudança

por Marcio Caparica

No começo desse ano a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que vai considerar um caso que pode tornar o casamento igualitário uma realidade em todo o país. No começo da década de 2010, isso não apenas parecia algo imensamente distante, como a possibilidade de que a decisão em um caso desse fosse favorável aos homossexuais era inconcebível. A velocidade com que as atitudes com relação ao casamento da população LGBT mudaram no país nunca foi vista em qualquer movimento social norte-americano anterior. E, para o desgosto de Antonin Scalia, um dos nove ministros da Suprema Corte (e um dos mais conservadores), exatamente uma de seus votos desfavoráveis ao casamento igualitário tornou-se uma das principais armas para que ele se tornasse realidade.

O voto de Scalia foi dado na decisão do caso Windsor v. United States, já considerado histórico. Edith Windsor, então com 84 anos, havia vivido com Thea Spyer por 40 anos até oficializar seu casamento no Canadá em 2007. Sua esposa morreu de câncer dois anos depois. Quando o patrimônio do casal foi contabilizado, o governo federal norte-americano exigiu que Edith pagasse US$ 363.053,00 em impostos sobre o patrimônio de Thea antes de herdar o restante. Acontece que esse tipo de imposto sobre herança não recai sobre cônjuges legalmente casados. Ou melhor, cônjuges heterossexuais legalmente casados. Windsor ficou indignada com a injustiça e processou o governo federal. O caso escalou os níveis do judiciário dos EUA até alcançar a Suprema Corte em 2013.

No cerne do processo estava o Defense of Marriage Act (DOMA), “Lei pela Proteção do Casamento”, em tradução livre. Aprovada pelo Congresso norte-americano e sancionada pelo presidente Bill Clinton em 1996, ela definia o casamento como uma relação apenas entre um homem e uma mulher, para efeitos federais. Apesar de não impedir que estados legalizassem o casamento igualitário se quisessem, ela na prática negava a casais homoafetivos – mesmo que legalmente casados em seus estados – proteções e privilégios de casais heterossexuais, como a possibilidade de declarar imposto de renda em conjunto, trazer o cônjuge estrangeiro para o país em casos de imigração… e a isenção de impostos sobre herança.

O processo de Edith Windsor pedia para que o DOMA fosse considerado inconstitucional, por infringir a 5ª Emenda da Constituição dos EUA. Essa emenda tem como objetivo, entre outras coisas, garantir que todos os cidadãos sejam tratados da mesma maneira perante a lei. O argumento que os advogados de Windsor fizeram foi que, se uma lei nega a uma parcela da população o acesso aos direitos garantidos ao resto das pessoas na mesma situação (todos casados, homo ou heterossexuais), essa lei é inconstitucional e deveria ser abolida.

Thea Spyer (esquerda) e Edith Windsor (direita)

Thea Spyer (esquerda) e Edith Windsor (direita)

Os juízes da Suprema Corte avaliaram que o lado de Edith Windsor tinha razão, numa decisão com 5 votos a favor e 4 contra, e ordenaram que os valores fossem devolvidos à viúva com correção de juros. Antonin Scalia, parte da ala conservadora da Suprema Corte, na justificativa de seu voto contra a inconstitucionalidade da DOMA, escreveu o seguinte:

Em minha opinião, no entanto, o rumo que esta Corte vai tomar quanto à proibição de casamentos homossexuais por estados está indicada sem sombra de dúvida pelo voto de hoje. Como eu já disse, o raciocínio real do voto de hoje (…) é que DOMA é motivado por “nada mais… que a vontade de prejudicar” casais em casamentos homossexuais. É muito fácil, e na verdade inevitável, chegar à mesma conclusão com relação a leis estaduais que negam o matrimônio a casais homossexuais.

A intenção de Scalia, claro, era argumentar contra a legalização do casamento igualitário: se o DOMA for considerado inconstitucional, todas as leis locais que no momento proibiam que casais homoafetivos se casassem (e preservavam “a moral e os bons costumes”, a seu ver) também seriam inconstitucionais, portanto seria melhor que a lei permanecesse. O juiz estava correto quanto à lógica de seu argumento; a aplicação dessa lógica, no entanto, provavelmente não era a que ele esperava.

Em 2013, apenas dez dos cinquenta estados norte-americanos haviam legalizado o casamento igualitário. Depois do caso Windsor v. United States, criou-se uma situação em que casamentos válidos em partes do país não eram válidos em outras – apesar de serem reconhecidos pelo governo federal. Rapidamente vários casais em todos os EUA entraram com ações para que leis estaduais que impediam que casais homoafetivos se casassem fossem revogadas, tendo por princípio que, se uma lei federal como o DOMA era inconstitucional, leis locais como aquelas também eram. E, numa velocidade espantosa, foram bem-sucedidos. Até o final de 2014 os 10 estados com casamento igualitário haviam se tornado 36. Nos casos dos estados de Utah, Virginia, Ohio e Kentucky, os juízes citaram a justificativa de Scalia em seus argumentos para derrubar as leis locais que impediam o casamento igualitário.

Estados dos EUA que legalizaram o casamento igualitário

Estados dos EUA que legalizaram o casamento igualitário

As decisões a favor do casamento igualitário sucederam-se com tal rapidez e quantidade que parecia que jamais seria necessário que a Suprema Corte se envolvesse novamente com a questão. A corte federal que tem competência para reformar as decisões dos estados de Ohio, Michigan, Kentucky e Tennessee, no entanto, decidiu em novembro de 2014 que leis que proíbem o casamento igualitário não ferem a constituição. Quando há discordância entre o judiciário de partes do país, a Suprema Corte tem que intervir – e então, em janeiro de 2015, foi feito o anúncio de que a Suprema Corte contemplaria os casos desses quatro estados, numa decisão que consequentemente será aplicada ao resto de todo o país.

Muitos dos ativistas LGBT norte-americanos ao mesmo tempo comemoraram e temeram a notícia – junto com a possibilidade de o casamento igualitário tornar-se uma realidade no país inteiro, também vem a chance de que a Suprema Corte decida que essas leis contra o casamento igualitário são sim válidas. Mas esses receios dissiparam-se em grande parte dois dias atrás.

No último dia 23 de janeiro, um juiz da corte do Alabama derrubou a lei que impedia o casamento igualitário nesse estado. O procurador-geral do estado pediu que os efeitos da decisão fossem suspensos enquanto ele recorria da decisão, e a corte imediatamente superior indeferiu o pedido. Ele então recorreu à Suprema Corte, que também indeferiu a concessão do efeito suspensivo na última segunda-feira, 9 de fevereiro. LGBTs do Alabama já estão se casando.

Isso tem muito significado. Esse tipo de suspensão tem como propósito evitar que se coloque em efeito leis que possam vir a ser revogadas mais tarde por causa de apelações que ainda estão tramitando pelas cortes. O consenso geral é que, se a Suprema Corte tivesse alguma intenção de dar um veredito contrário ao casamento igualitário, teria aceitado o pedido de suspensão da decisão no Alabama – não há porque permitir que, nesses meses antes da decisão da Suprema Corte, aconteçam casamentos que poderão ser invalidados logo em seguida. A permissão para que LGBTs se casem no Alabama indica que, em breve, LGBTs poderão se casar em todo o país.

Espera-se que a Suprema Corte dos EUA tome sua decisão até junho desse ano. Caso a decisão dos juízes considere leis que proíbem o casamento igualitário inconstitucionais, os 13 estados que ainda negam esse direito a casais LGBT serão forçados a aceitar o matrimônio entre gays, lésbicas e transgêneros. E um grande passo terá sido dado na direção da igualdade para todos, graças a uma viúva que decidiu não deixar as coisas como estavam e um juiz conservador que se revoltou com as mudanças acontecendo a seu redor.

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Um comentário

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[…] Semana passada o governador do estado norte-americano de Indiana, Mike Pence, sancionou uma lei estadual que dá permissão para estabelecimentos comerciais discriminarem seus clientes – LGBTs em particular – com base nas crenças religiosas de seu dono. Disfarçada com o título de “Lei de Restauração da Liberdade Religiosa” (Religious Freedom Restoration Act, ou RFRA), a legislação foi aprovada pela assembleia legislativa do estado como reação ao movimento nacional que avassaladoramente vem aprovando o casamento LGBT por todos os EUA e que, em breve, deve fazer com que o casamento igualitário se torne uma realidade nacional. […]

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