“Não aceitamos mais a homofobia institucionalizada no futebol”, avisam boleiros gays

A multiplicação de times de futebol formados apenas por homossexuais aos poucos enfraquece os preconceitos ainda presentes no “esporte viril”

por Marcio Caparica

Sábado à noite. Como sem dúvida já aconteceu várias vezes nesse espaço, o conjunto de quadras de futebol society está tomado quase exclusivamente por homens. Vários deles fazem fila para comprar cerveja, outros acompanham com atenção os lances das partidas que acontecem simultaneamente em dois campos. O time sem camisa rouba a bola da equipe adversária, e os jogadores comemoram com afetuosos tapinhas na bunda.

Outras cenas, no entanto, são inéditas para esses campos de futebol. Um DJ comanda caixas de som que despejam músicas de Anitta, RuPaul e Pabllo Vittar. Alguns jogadores, entre um drible e outro, dançam e até ensaiam alguns passos de vogue. Uma drag queen contorna os torcerores, que avaliam com olhos famintos os atletas. Esta é a I Taça Hornet da Diversidade, que aconteceu no dia 29 de julho em São Paulo. Nela, quatro equipes de futebol formadas apenas por homens gays disputaram o primeiro torneio LGBT em São Paulo de um esporte famoso por ser descaradamente homofóbico.

Confira a entrevista completa feita durante a I Taça Hornet da Diversidade

Essas quadras nunca antes viram torcedores assim…

“Estamos no ano zero do futebol LGBT no Brasil”, comemora André Machado, criador do time Bees Cats, do Rio de Janeiro. “Na Argentina, a federação de futebol gay já existe há pelo menos duas décadas”. Apesar de já existirem há alguns anos, realmente foi apenas em 2017 que as equipes de futebol gay ganharam projeção nas mídias sociais, nos programas de televisão e no imaginário LGBT. Há dez anos o futebol foi infamemente rotulado como um “esporte viril” pelo juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho ao negar prosseguimento à queixa-crime de Richarlyson. Hoje, o esporte começa a se abrir para a diversidade.

Grande parte dos jogadores comemora a possibilidade de voltar a bater bola, prazer que haviam abandonado ao compreenderem sua sexualidade. “O futebol fazia parte das minhas atividades de infância, mas quando entrei na adolescência eu passei a ter dificuldades para jogar porque sentia uma agressividade contra mim”, lembra Vinicius Pellegrino, integrante do time Futeboys, de São Paulo. “Eu nem me entendia gay ainda, mas os colegas do colégio provavelmente já detectavam algo e faziam bullying comigo.” Depois de anos sem jogar, a descoberta de uma equipe formada apenas por gays fez com que ele voltasse a calçar as chuteiras. “É muito mais legal jogar com pessoas que entendem quem você é”, comemora.

Os treinos acontecem nos mesmos moldes que tantos outros grupos masculinos que se reúnem à noite para bater uma bola uma vez por semana. Com uma diferença: “a gente reúne umas quarenta pessoas jogando mais uns trinta crushes”, brinca Machado. Mas existe um consenso implícito entre todos de que o mais importante desses momentos é o esporte: “O pessoal respeita o espaço, não rola putaria no banheiro. A gente pode até tirar uma casquinha durante a partida, mas qualquer coisa a mais fica para depois das partidas.”

É inevitável perceber, no entanto, que há um recorte bem nítido entre os competidores. Não há jogadores negros, os únicos gordos estão na torcida, e percebe-se que são todos de classes sociais mais altas. “Há mesmo um problema de inclusão, de diversidade geral”, reconhece Guilherme Castro, integrante do time Unicorns, também de São Paulo. “Não há nenhum jogador trans, por exemplo. Entendemos que estamos num primeiro momento da diversidade no esporte, e queremos sim trazer para nossas partidas uma variedade cada vez maior de pessoas.” Fica patente no campeonato a ausência de equipes formadas por lésbicas, por exemplo, ou do time Meninos Bons de Bola, formado apenas por homens trans.

Falta diversidade no campeonato da diversidade.

Fazer parte de equipes gays dá aos jogadores o apoio necessário para minar a homofobia institucionalizada no futebol, tanto amador como profissional. “A gente deixou de aceitar o preconceito cultural: xingar de bicha, viado, mandar chupar rola. Principalmente quando jogamos com héteros”, afirma Pellegrino. “Não pode mais agir como se isso fosse normal. Não é.” Mais de um competidor já percebeu que outros boleiros passaram a conter os xingamentos homofóbicos em campo por estarem jogando com atletas abertamente gays.

Os jogadores gays estão prontos para encontrar os times héteros, mas esperam alguns atritos. “Existe uma certa raiva presente no jeito dos héteros jogarem”, aponta Pellegrino. “Entre os gays o clima  é menos agressivo, mais amistoso”. Machado concorda: “Um hétero não aceita que um gay seja melhor que ele em campo. Mas a principal preocupação deles é com o vestiário. Quando tem um gay no ambiente, eles ficam com medo de que a gente possa se interessar por eles. É difícil compreenderem que a gente não se interessa por héteros”.

Pellegrino continua: “É muito importante para as pessoas verem que, no fundo, há mais coisas em comuns que diferenças: os gays são tão habilidosos quanto os héteros, e têm times tão capazes quanto qualquer outro.” Castro complementa: “A existência de equipes como o Unicorns é algo que quebra barreiras dentro dos preconceitos enraizados no futebol. É um começo de conversa para tratar as coisas como elas deveriam ser.” A expectativa geral é de que, em algum tempo, equipes de futebol gays não sejam mais consideradas algo excepcional. “Se hoje eu consigo andar de mãos dadas na rua, é porque teve gente que no passado deu a cara ao tapa”, lembra Machado. “Hoje estamos fazendo nossa parte para que, no futuro, gays tenham seu espaço garantido dentro de campo.” Show de bola.

Fotos: Victor Rabelo

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Um comentário

R.

Vale muito a pena essa discussão. Estive em um jogo de vôlei recentemente e a maioria da torcida era composta de pessoas aparentemente LGBT. Infelizmente não foi surpresa ao ouvir um grupo de lésbicas na plateia hostilizando um jogador do time rival por ter “jeito de gay”. Graças a deus foi algo localizado e não tomou proporções grandes, mas é assim que começa. Enquanto a cabeça dos próprios LGBTs não mudar em respeito ao próximo, não conseguiremos lidar com a situação natural que é ter um atleta gay ou afeminado.

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