Traduzido do artigo de Dawn Ennis para o site NewNowNext
A chuva cai sobre meu iPhone enquanto atravesso o estacionamento do supermercado para chegar em meu carro, fazendo malabarismos com as sacolas enquanto confiro as novas mensagens e e-mails em meu celular. A cada mensagem que chega, outra gota bate na película protetora.
Com um dedo eu limpo as gotas d’água e elimino as mensagens. São nove da noite de um domingo, e meu filho mais novo acabou de lembrar que tem que entregar um trabalho de escola superimportante na segunda.
Eu pego as chaves enquanto equilibro cartolinas e uma sacola cheia de canetinhas, adesivos e cola-bastão. Prendo minha bolsa debaixo do braço conforme corro pelo estacionamento, evitando as poças d’água e olhando de relance na telinha para não perder nenhuma mensagem. Quando chegar em casa eu tenho que editar uma matéria de 1200 palavras, e escrever outro de 750 palavras que está amadurecendo na minha cabeça.
Cada um desses artigos significa dinheiro na conta – uma graninha a mais para manter as coisas no rumo. Mas as necessidades dos meus filhos vêm antes mesmo dos meus sete empregos meio-período. Sempre. Mesmo quando eu já tinha perguntado na sexta-feira, e de novo no domingo: “Tem certeza que já fez todas suas tarefas?”, e escutado a resposta “Sim, pai! Já fiz tudo!”.
Essa sou eu: “Pai”.
Nunca foi fácil criar três filhos, mesmo quando eles tinham uma mãe e um pai. Imagina como é para uma pessoa só – uma viúva? E uma mãe que é chamada de “pai” por seus filhos?
Meus filhos já aceitaram há muito tempo que eu sou mulher, e respeitam meus pronomes. Mas eu não forço eles a utilizarem aquela palavra que começa com “m” comigo. A mãe deles já se foi. Essas três pessoas incríveis perderam a mulher mais importante de suas vidas. Nós perdemos o coração do nosso lar, assim como eu perdi o amor da minha vida.
Antes de minha esposa falecer no ano passado, eu afirmava com convicção que o título de “mãe” deveria ser apenas dela. Eu cheguei até a declarar “não deseje ‘feliz dia das mães’ para mim!” nas mídias sociais. Eu sou uma mulher que não vê problema em ser chamada de “pai”, pelo contrário, me sinto honrada, apesar dos olhares de estranhamento que ocorrem de vez em quando. Às vezes algum desconhecido bem-intencionado me chama de mãe dos meus filhos, e, se meus filhos estão por perto, eu sinto a necessidade de corrigi-lo. Ou, para ser mais precisa, pedir desculpas por mim mesma.
“Desculpe, na verdade eu sou o pai deles. Eu sou transgênero.”
Em geral eu ganho um sorriso de volta, ou um pedido de desculpas desnecessário. Ou aquela inclinada de cabeça que um cão dá quando escuta algum barulho estranho. Muitas vezes, se isso acontece longe dos meus filhos, eu deixo passar batido.
Porque acontece que eu sou mãe.
Eu preparo as refeições dos meus filhos, compro e conserto suas roupas, limpo tudo aquilo que ninguém mais tem coragem de limpar, e sempre tenho tempo para dar um abraço. Eu estabeleço as regras – e também faço vista grossa. Apesar de não ganhar tanto dinheiro, eu providencio tudo o que meus filhos precisam para estudarem, irem à igreja, e se divertirem com os amigos. Eu sou a taxista deles, quem confere a lição de casa, e quem lida com os professores.
Claro que pais solteiros também fazem isso tudo. Mas como sou mulher e pai, eu conquistei um título que para mim, a princípio, parecia tão improvável quanto o de “viúva”. (Outro título que eu nunca quis conquistar.) Eu cumpro a função da mãe. Eu sou a mãe dos meus filhos? Não. Mas isso não me torna menos mãe.
Na beira do estacionamento eu alcanço o botão, coloco tudo dentro do porta-malas e me jogo, pingando, no banco do motorista. Uma nova mensagem de texto soa, exigindo atenção imediata. Uma pessoa que eu e minha esposa pedimos, há muito tempo, que servisse de guardiã para nosso primeiro filho se alguma coisa ruim acontecesse, uma pessoa que se tornou minha principal inquisidora desde que minha esposa faleceu, está me questionando com um tom acusador e familiar.
“O que você quer dizer quando você escreve que é ‘mãe’?”, pergunta ela. “Dá para você me explicar se você está usando esse título agora?”. Implícito, é claro, está um “Como você se atreve?”.
Sinto meu coração bater mais rápido, e tenho a impressão que minha pressão está subindo. Mas eu estava pronta. “Não dá pra responder agora”, digitei, “estou com os prazos estourando com as crianças e com o trabalho. A gente conversa amanhã?”.
Eu envio a mensagem, deixo o iPhone de lado e piso no acelerador, confiante de que é melhor evitar um confronto agora, já que estou com as mãos cheias.
O telefone continua a apitar, mesmo antes de eu sair do estacionamento. Eu encosto o carro e, com um pouco de apreensão, decido conferir qual é a resposta que me aguarda. “Não precisa conversar. É só que eu acho que esse título deveria ser reservado apenas para a mãe deles.”
Eu não lembro de ter perguntado o que ela achava, então resolvi não morder essa isca e segui em frente. Tudo que está entre o julgamento gratuito dessa pessoa e o abraço do meu filho são as ruas chuvosas e abandonadas. Enquanto dirijo, eu me lembro quando, há alguns meses, eu e ele nos sentamos juntos na sinagoga, escutando o cântico “Oseh Shalom”.
Esse meu garoto, tão incrível, virou para mim, pegou na minha mão, e sussurrou: “tenho certeza que a mãe ia adorar isso aqui. Ela era a melhor mãe de todas. Mas eu quero que você saiba que você está indo muito bem sendo mãe, pai”.
E é isso que me faz, mais que qualquer outra coisa, perceber a diferença entre o papel de mãe e o título de mãe. E são meus filhos que me dão apoio nesse dia das mães. E todos os dias.
DAWN ENNIS é escritora, produtora e palestrante. Ela foi a primeira jornalista abertamente trans da televisão norte-americana. Viúva e mãe de três filhos, é o tema do documentário Before Dawn/After Don. Confira seu canal no Youtube, seu Twitter e seu website.