Fome e tortura: como são os pogroms antigay da Chechênia

Perseguidos por milícias bancadas pelo governo, gays chechenos relatam como são submetidos a choques elétricos e espancamentos, depois deixados para que suas famílias os matem para “lavar a honra”

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Andrew E. Kramer para o jornal The New York Times

Era para ser apenas uma noite de balada. Mas para o jovem que pede para ser chamado de Maksim, assim como para tantos outros gays presos durante pogrom (ataque em massa contra uma minoria, com a intenção de eliminá-la) realizado durante esse mês na Chechênia, região da Rússia, a noite se transformou em duas semanas de espancamento e tortura.

Maksim conta que tudo começou em uma sala de bate-papo, durante uma conversa com “um grande amigo de longa data, que também é gay”, que sugeriu que eles se encontrassem num apartamento. Quando Maksim chegou, no entanto, ele foi recebido não por seu amigo, mas por agentes que o agrediram. Mais tarde eles amarraram o rapaz a uma cadeira, prenderam cabos elétricos a suas mãos e começaram um interrogatório.

“Eles gritavam, ‘quem mais você conhece?'”, recorda-se Maksim, e acionavam a corrente elétrica de tempos em tempos. “Era insuportavelmente doloroso; eu resisti até não ter mais forças”, continua. “Mas não lhes contei nada.”

Gays nunca tiveram uma vida fácil na Chechênia. Mas o castigo coletivo direcionado contra gays que teve início no último mês sob ordens de Ramzan A. Kadyrov, líder da região apoiado pelo Kremlin, é uma nova página no longo histórico de abusos contra os direitos humanos da região.

Novaya Gazeta, um jornal de oposição, foi o primeiro a relatar a existência dos pogroms, afirmando que pelo menos 100 homens gays haviam sido presos e três mortos na batida policial. A ONG Human Rights Watch confirmou essas afirmações.

A ação foi amplamente condenada pelos governos ocidentais, pelas Nações Unidas e por grupos de ativismo pelos direitos humanos. Ativistas na Rússia montaram uma rede clandestina de apoio para auxiliar na fuga de vítimas para fora da Chechênia, e para protegê-las de represálias potencialmente fatais de seus familiares e outras pessoas. As vítimas utilizam nomes falsos em suas interações cotidianas.

Os relatos a seguir são baseado em entrevistas com Maksim, um rapaz na faixa dos 20 anos, e dois outros gays que foram detidos por agentes de segurança chechenos.

A homossexualidade é tabu na Chechênia e nas regiões ao redor, predominantemente muçulmanas, no Cáucaso, sul da Rússia. “Essa sociedade é altamente homofóbica”, afirma Ekaterina L. Sokiryanskaya, diretora de projetos para a Rússia do International Crisis Group e especialista sobre a Chechênia. “A homossexualidade é condenada. Lá acredita-se que o Isã considera que a homossexualidade é um grande pecado.”

No entanto, antes das batidas policiais, os gays da Chechênia pelo menos conseguiam manter vidas sociais, mesmo que profundamente dentro do armário, afirma Maksim. Eles se conheciam em sua maior parte via redes sociais, em grupos privados com nomes como Vila ou Sobre O Que As Montanhas Mantêm Silêncio.

“Quando dois gays se encontram, eles não revelam seus verdadeiros nomes uns para os outros”, revela Maksim. Homens encontram-se em cafés ou apartamentos alugados para uma só noite, continua. “Ninguém suspeitava de minha orientação sexual, nem mesmo meus melhores amigos.”

As batidas policiais tiveram início depois que o GayRussia, um grupo que luta pelos direitos humanos de Moscou, pediu alvarás para a realização de paradas do orgulho LGBTt na região do Cáucaso, o que desencadeou protestos de oposição organizados por grupos religiosos, afirmam os três homens. Na Chechênia isso ficou ainda pior – uma limpeza “profilática” de homossexuais em massa, como diziam os agentes de segurança para os gays durante as prisões.

Prisioneiros são mantidos por períodos que variam de um dia a várias semanas, segundo a Human Rights Watch e entrevistas com gays que fugiram da região posteriormente. Alguns “retornaram para suas famílias quase mortos por causa dos espancamentos”, relata Tanya Lokshina, diretora da divisão russa da Human Rights Watch.

Entre os falecimentos registrados pela organização está um homem que não resistiu às torturas, e dois outros que foram mortos por parentes, depois de liberados pela polícia, para “lavar a honra da família”.

“A Human Rights Watch recebeu vários relatos de ataques realizados por serviços de segurança sob o comando de Ramzan Kadyrov, todos extremamente perturbadores”, continua Lokshina. “Essa se tornou outra oportunidade de se reforçar uma cultura de medo.”

A resposta das autoridades chechenas ao ultraje global causado pelos pogroms foi causa de incredulidade. Durante uma entrevista por telefone o porta-voz de Kadyrov, Alvi Karimov, afirmou que os relatos de pogroms antigay certamente eram falsos porque não há homens gays na Chechênia.

“Em Grozny, alguma vez, você já percebeu alguma pessoa que, por sua aparência ou seu modo de agir, pareça ser alguém com uma orientação errada?”, perguntou Karimov.

“Desenvolve-se uma política pública para se resolver um problema”, continuou, referindo-se a um relato que afirmava que as detenções faziam parte de uma política pública. “Eu posso afirmar oficialmente que não há qualquer polícia pública desse tipo, porque esse problema não existe. Se houvesse um problema, existiria uma política pública como essa.”

Num encontro televisionado entre o presidente russo Vladimir V. Putin e o líder checheno Kadyrov, transmitido na quarta-feira, Kadyrov afirmou que o noticiário sobre a perseguição a gays realizada por milícias chechenas eram “calúnias”.

No dia seguinte o porta-voz de Putin, Dmitri S. Peskov, declarou a jornalistas que as autoridades russas não encontraram quaisquer indícios de que a polícia chechena havia detido gays.

Mas logo tornou-se evidente para Maksim e outros gays que as autoridades chechenas estavam utilizando as mesmas táticas utilizadas pela Rússia e pelo próprio Kadyrov para reprimir uma revolta islâmica que aconteceu na região há uma década.

Agentes de segurança se passam por gays em busca de encontros na Vila e outras comunidades online, ou fazem com que aqueles que já foram capturados chamem conhecidos, relatam aqueles que já foram presos em entrevistas.

O medo espalhou-se entre os gays chechenos. “Se já o capturaram, então eu sou o próximo”, lamenta um estudante de 20 anos que pediu para ser identificado como Ilya, entrevistado num esconderijo seguro fora da Chechênia. Ilya havia fugido poucos dias antes da polícia aparecer em sua casa, ele descobriu posteriormente.

As autoridades detiveram por pouco tempo outro jovem, que se identifica como Nohcho, depois que um amigo passou seu nome durante um interrogatório. “Eu não o culpo”, afirma Nohcho sobre seu amigo. “Nós não somos heróis. Somos apenas gays. Eles fazem a gente passar fome. Eles dão choques elétricos.”

Basicamente foi isso que aconteceu com Maksim, que havia se correspondendo com um conhecido gay há algum tempo. “Um dia ele sugeriu que a gente se encontrasse pra tomar um drink”, lembra Maksim. “Como a gente já se falava há muito tempo, eu não suspeitei que ele seria capaz de fazer algo assim.”

Quando Maksim entrou no apartamento onde haviam combinado de se encontrar, os agentes de segurança caíram em cima. Outros cinco homens já estavam no apartamento, atraídos pela mesma artimanha, recorda-se. Seu relato da armadilha utilizada para detê-lo foi consistente com os relatos de outros dois homens gays entrevistados separadamente para esse artigo.

Os seis homens capturados no apartamento foram transferidos para uma cela improvisada em um prédio abandonado, onde cada um foi torturado com eletricidade, conta Maksim.

Depois de 11 dias ele foi deixado com um parente, para quem foi revelado que Maksim é gay. Os agentes de segurança contaram para os parentes homens dos prisioneiros que, se eles ainda tinham honra, eles matariam os jovens, relatam Maksim e Ilya.

O pai de Maksim ameaçou espancá-lo, mas controlou-se quando seu filho exibiu os ferimentos que já carregava no corpo. Seu pai lhe disse, então: “Eu deveria matar você.”

Temendo por sua vida, Maksim pediu ajuda para um grupo que luta pelos direitos LGBT, a Russian LGBT Network, em São Petesburgo, que havia montado um grupo de voluntários de emergência, funcionando 24 horas por dia, para ajudar na fuga de gays da região.

Para convencer as vítimas de que estão tentando ajudá-las, os ativistas tomam precauções extraordinárias, virtualmente atuando como células guerrilheiras atrás das linhas do inimigo, apesar de não estarem fazendo nada de ilegal perante as leis russas.

“Essas pessoas não conseguem confiar em mais ninguém”, lamenta Olga Baranova, diretora do Centro Comunitário de Moscou, um grupo de apoio para gays que faz parte da rede de voluntários que ajuda na fuga de gays chechenos.

Depois de chegarem em locais seguros fora da Chechênia, vários dos jovens admitiram que suspeitavam que o grupo de voluntários também era uma armadilha, mas não tinham outra opção a não ser aceitar esse auxílio, relata Baranova. “Eles diziam, ‘a gente não acreditava que vocês estavam falando a verdade’,” lembra-se. “A gente pensava que esse era o esforço final para pegar quem tinha sobrado.”

A rede de apoio comprou passagens de avião para os gays chechenos, encontrou refúgios para eles e conseguiu médicos para tratar aqueles que foram espancados.

“Os gays chechenos e do norte do Cáucaso estão em perigo mortal”, afirma Igor Kochetkov, diretor da Russian LGBT Network, por telefone. “Aqueles que tiveram seus parceiros detidos têm razão de sobra para acreditarem que também serão presos. É muito difícil não passar o nome de outras pessoas quando se está sob tortura.”

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