Como o sacerdócio católico se tornou um refúgio inesperado para gays

A própria maneira como a igreja Católica reprime a homossexualidade e promove o celibato de seus clérigos fez com que o sacerdócio se tornasse atraente para católicos gays, acreditam especialistas

por Marcio Caparica

Traduzido de um trecho do livro The Sex Effect: Baring Our Complicated  Relationship With Sex

Em março o papa Francisco desencadeou uma série de manchetes quando levantou a possibilidade de que homens casados fossem ordenados padres. Mas já que não há qualquer indício de que essa prática da igreja realmente vá mudar, as reações aos comentários do pontífice são todos prematuros. Aqueles que opinaram sobre os comentários de Francisco ignoraram uma consequência interessante: liberar o sacerdócio para homens casados provavelmente reduziria a alta porcentagem de padres gays.

Enquanto pesquisava para meu livro The Sex Effect (“O efeito do sexo”, em tradução livre), encontrei vários estudiosos que sugeriram que, ao impedir que padres se casassem, a Igreja alterou a constituição dos quadros de sacerdotes com o passar do tempo, acidentalmente criando um refúgio onde alguns gays devotos poderiam esconder sua orientação sexual. Quando continua a desconsiderar mulheres e homens casados, o sacerdócio atrai homens que desejam abdicar do sexo pelo resto da vida na tentativa de se aproximarem de Deus. Como a igreja condena todas as práticas sexuais homossexuais, alguns gays devotos buscam no sacerdócio celibatário um autoincentivo para evitar o sexo com homens, e assim ganhar uma ajuda para evitar a danação.

É claro que vários fatores influenciam a decisão de uma pessoa de se juntar ao clero; a sexualidade de alguém não define vocações sozinha. Mas seria desonesto desconsiderar a influência da sexualidade, já que conhecemos que há uma quantidade desproporcional de padres gays, apesar da hostilidade da Igreja para com a identidade LGBTQ. Como um padre gay declarou durante o programa Frontline em 2014, “eu não consigo compreender essa atitude esquizofrênica da cúria contra os gays, quando tantos de seus padres são gays”.

Quantos padres gays realmente existem? Textos homoeróticos escritos por padres existem pelo menos desde a Idade Média, mas conseguir números precisos sobre o clero de hoje é difícil. A maioria das pesquisas (admitidamente deficientes devido às amostras limitadas e outros problemas de concepção, por conta do tema) conclui que  entre 15% e 50% dos padres nos Estados Unidos são gays, uma proporção muito maior que os 3,8% da população geral que se identificam como LGBTQ.

Nos últimos 50 anos também houve uma “homossexualização do sacerdócio” mais intensa no Ocidente. Ao longo da década de 1970, centenas de homens abandonaram o sacerdócio todos os anos, muitos deles para se casarem. Conforme os padres trocaram a igreja pelas alegrias da vida doméstica, a proporção de padres gays entre aqueles que permaneceram aumentou. Em uma pesquisa feita com milhares de padres nos Estados Unidos, o jornal Los Angeles Times descobriu que 28% dos padres entre os 46 e os 55 anos declarou que são gays. Essa porcentagem foi maior que a encontrada em outras faixas etárias, e reflete a debandada de padres heterossexuais ocorrida nas décadas de 1970 e 1980.

O número elevado de padres gays também se tornou evidente na década de 1980, quando o clero foi atingido com força pela crise da Aids que afligia a comunidade gay. O jornal Kansas City Star estimou que pelo menos 300 padres norte-americanos morreram de causas relacionadas à Aids entre 1985 e 1999. O Star concluiu que os padres tinham duas vezes mais chance de morrerem de Aids que outros homens adultos.

Considerando-se que a Igreja afirma que a homossexualidade é “os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados” e que o sexo homossexual é “inerentemente um mal moral”, pode parecer espantoso que um gay venha a escolher essa profissão. As coisas começam a fazer sentido depois que se considera que a Igreja propõe que se sublime a homossexualidade por meio da oração. “As pessoas homossexuais são chamadas à castidade”, declara o Catecismo da Igreja Católica. “Pelas virtudes do autodomínio, educadoras da liberdade interior, e, às vezes, pelo apoio de uma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental, podem e devem aproximar-se, gradual e resolutamente, da perfeição cristã”.

A sublimação sexual é, de longe, a teoria mais aceita para justificar a existência de tantos padres gays. Também especula-se que, por serem uma minoria que sofre com discriminação, gays tendem a ter mais empatia com as pessoas – e o desejo de auxiliar o próximo leva esses homens altruisticamente ao sacerdócio. Outro tema comum é que o celibato clerical serve como uma boa fachada para homossexuais que querem esconder sua orientação sexual.

A Junta Nacional da Conferência de Bispos Católicos dos EUA afirmou que “certos homens homossexuais parecem sentir atração pelo sacerdócio porque erroneamente consideram que a exigência do celibato serviria como uma maneira de evitarem as batalhas com suas identidades sexuais”. Como conta o ex-padre Christopher Schiavone, homossexual: “Eu achei que nunca precisaria contar meu segredo para ninguém, porque o celibato faria que minha orientação sexual se tornasse irrelevante”.

Não é como se a igreja não estivesse ciente. Um ex-presidente da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos reclamou da “batalha constante para garantir que o sacerdócio católico não seja dominado por homossexuais”. E o papa Bento XVI já disse que a homossexualidade entre os sacerdotes era “uma das misérias da Igreja” e que o Vaticano precisa “tomar controle de uma situação em que o celibato dos padres possa acabar se identificando com a tendência à homossexualidade”.

Permitir que homens casados se tornassem padres provavelmente traria mais homens heterossexuais para o sacerdócio, o que reduziria a proporção de padres gays. Considerando-se que o número global de diáconos (que têm a permissão para se casarem, e podem realizar quase todas as tarefas permitidas a um padre, com exceção de consagrarem a Eucaristia e escutarem confissões) aumentou em quase 40 mil pessoas nos últmos 40 anos, parece que há uma boa quantidade de homens casados abertos à vida eclesiástica.

Mas só porque alguns oficiais da igreja gostariam que houvesse menos padres gays não quer dizer que mudanças na disciplina beneficiariam a instituição. O fato de que uma grande fatia dos padres são gays não quer dizer automaticamente que há uma crise, ou que os ensinamentos da igreja deveriam mudar. Outras igrejas já demonstraram que mulheres, homens heterossexuais casados, e LGBTs sexualmente ativos são completamente capazes de servirem como pastores, mas o modelo da igreja Católica, apoiado em homens solteiros e celibatários, vem funcionando para a instituição há séculos. A maioria dos padres católicos são psicologicamente bem-ajustados e estão felizes com suas vidas e sua profissão.

A presença cada vez maior de homossexuais entre os sacerdotes católicos denota um fenômeno complexo que deixa muitas pessoas desconfortáveis – um exemplo de como regulamentos sexuais podem provocar consequências inesperadas. A igreja continua a minimizar as mudanças culturais e prefere se ater a leis de renúncia sexual desenvolvidas por comunidades ancestrais e ascetas do deserto em resposta a um mundo incerto. O Vaticano continua a se apoiar em estruturas clericais que foram influenciadas pelas condições econômicas e sociais da Idade Média.

Com suas ações, a hierarquia contribuiu para a formação de um fenômeno que ela gostaria que fosse ignorado: os regulamentos rígidos quanto à homossexualidade e ao celibato clerical acidentamente fizeram com que muitos gays optassem pelo sacerdócio. “Os bispos estão no fogo cruzado e estão morrendo de medo”, o teólogo Richard McBrian afirmou para o repórter Jason Berry em seu livro Lead Us Not Into Temptation (“E não nos deixeis cair em tentação”).”Eles vivem numa instituição que tem atitudes linha-dura contra homossexuais, e no entanto percebem que utilizam essa população muito mais que o resto dessa sociedade.”

Um paradoxo dessa magnitude parece ser espantoso. E sem dúvida é espantoso para os padres gays que lutam contra a dissonância cognitiva a seu redor. Mas como aponta um tópico do livro Human Sexuality in the Catholic Tradition (“Sexualidade humana na tradição católica”), “a fé cristã proclama suas verdades mais profundas nos paradoxos”. Provavelmente o maior paradoxo da igreja contemporânea é que suas posições de autoridade continuam a serem ocupadas em grande parte por pessoas que ela mesma define como “intrinsicamente desordenados”.

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7 comentários

Sérgio Sasaki

Um amigo meu que queria ser padre, disse que desde o começo quando ele ainda estava na preparação (desculpem-me, não sei o nome que se dá a esse período, não sou nada familiarizado com esse assunto) para ser padre – a putaria corria solta dentro dos dormitórios, ou seja, o cara entra na igreja, sem nenhuma intenção se servir a Deus, ele já entra sabendo que tem muita putaria entre os padres e que eles vão ficar a salvo… o meu amigo não aguentou e desistiu de ser padre, ele disse que era só cair a noite, que a putaria começava… inclusive ele citou quais padres são sabidamente gays, aqueles com perfis no extinto Orkut, quase todos, disse eles!

Jader Oliver

A alma da ICAR é gay, não tem como fugir dessa realidade, faltou ai os conventos de freiras verdadeiro reduto lesbico. (Pelos frutos conhecereis ha árvore. )

Fui seminarista católico, nosso grupo era pequeno 8 formandos, 6 eram homossexuais, ;os Padres formadores eram 5, quatro eram passivos e um ativo, a realidade da vida no semiárido um ambiente “arido” extremamente cor de rosa é cruel,muito cruel, estupros, suicídio s, histórias que deixariam o Marquês de Sade envergonhado.

Debota

Culpa desde ridículo celibato imposto pela Igreja e q não tem nada a ver com religiosidade, por isso q a profissão padre, virou um refúgio p gays mal resolvidos.OPapa deveria repensar isso.

Rafael

A matéria é muito sensata e toca em temas que a Igreja católica, sobretudo a alta hierarquia, reluta em admitir e prefere trancar nos armários das sacristias.
Indico outros livros que tocam no assunto, como “O silêncio sagrado” e “A face mutante do sacerdócio”, ambos do padre americano Donald Cozzens.

Phillipe

Obviamente que a Igreja Católica, como qualquer outra religião institucionalizada, tem suas dificuldades, já que é impossível padronizar comportamentos humanos. Contudo, acho salutar que finalmente as pessoas comecem a enxergar que a Igreja Católica deu, sim, guarida a homossexuais. O caminho entre religião e homossexualidade ainda é longo, mas é justo que sejam mostrados os erros mas também os acertos.

Denilson

Os padres também não podem se casar por duas questões pouco conhecidas: primeiro, um sacerdote casado colocaria a igreja em segundo plano, uma vez que a sua família estaria sempre em primeiro lugar, logo a dedicação exclusiva do sacerdote para com o “povo de Deus” seria impossível; segundo, um padre com mulher e filhos seria oneroso demais para a maioria das paróquias, pois no mínimo , dobrariam as despesas médicas, pessoais.. da “família sacerdotal”.

Miguel Romano

Amei Marcio a matéria parabéns, muito questionadora e verdadeira

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