Rico Dalasam: “Ser uma bicha preta adolescente é algo mágico, uma flor rara”

Em entrevista exclusiva, o primeiro rapper abertamente gay do Brasil conta como transforma a fragilidade em potência

por Marcio Caparica

Vivemos numa eterna patrulha para não parecermos fracos. Expor aquilo que pode nos tornar vulneráveis é algo que, aprendemos com a vida, deve ser feito apenas para aquelas pessoas em quem mais confiamos. E daí vem Rico Dalasam para nos ensinar que existe outra opção: celebrar a fragilidade, e transformá-la em ferramenta de expressão e de luta.

Foi um momento de fragilidade, por exemplo, que o inspirou a compor um dos hinos desse Carnaval, “Todo Dia”, gravado por Pabllo Vittar: “Eu não espero o Carnaval chegar pra ser vadia / Sou todo dia, sou todo dia!”, cantam. A inspiração para a música veio de um incidente no último Carnaval: “Eu estava em Belo Horizonte para cantar num trio elétrico, e briguei com meu namorado. Ele me deixou pra cantar no trio e foi para o carnaval. Quando fui encontrar ele depois, ele estava com a boca toda borrada… Fiquei triste, mas rapidamente veio isso na minha cabeça: ‘pera, eu já sou isso todo dia’. A vadiagem vive em mim todos os dias, não posso me abalar por causa de cinco dias de vadiagem de alguém.”

O valor que Dalasam dá à doçura já se nota na maneira como ele lidou com sua homossexualidade quando criança: “eu via minha ternura gay cada dia mais florescida e linda, eu achava isso foda. Ser uma bicha adolescente preta é uma glória, é uma borboleta rara, é um bicho bonito”. Mesmo assim, por ser negro de periferia, não encontrava um lugar onde pudesse exercer plenamente todas suas identidades. “Nas baladas gays era um tucano, uma arara azul. Eu só queria ser eu, simples. Então ia pras festas de rap onde eu não pegava ninguém, não fazia nada, mas era onde eu me via nas pessoas.”

Sua ternura gay só foi razão de temor, lembra-se, quando decidiu marcar de vez seu espaço no mundo do rap e lançou seu primeiro EP, Modo Diverso, com músicas em que trata abertamente de sua homossexualidade. “Existia um medo porque cheguei com cinco músicas e não sabia o que ia acontecer. Não sabia pra onde ia bater, se as pessoas iam ouvir, quem ia ouvir, como iam ouvir, e quem não gostasse, o que ia fazer com isso. Eu estava ali cheio de medo, mas ao mesmo tempo com uma vontade enorme.”

Manter-se genuíno a sua essência deu certo. Muito certo: hoje, depois do LP Orgunga e alguns singles, Dalasam ganhou o apreço do público e de outros rappers. “Existe uma legitimidade no que eu faço. E os orixás do rap respeitam isso. Eu já fiz alguma coisa com os maiores nomes do rap: Mano Brown, Criolo, Emicida. Existe uma reciprocidade. Eu acho muito importante quando esses caras se veem em mim, de algum jeito isso quebra uma série de conceitos que possam ter existido na percepção deles de mundo.”

A transformação da delicadeza em arma acontece não só na maneira como Dalasam usa as palavras, mas também como monta sua aparência. Sua aparência pode ser tão exuberante quanto suas rimas – no dia da entrevista, seus cabelos longos estavam tingidos de rosa. “Desde sempre eu sentia que, se eu falasse, ninguém vai me ouvir, então usava meu corpo como um estandarte pra dizer que eu não ia me adequar. Muitos dizem que é apenas uma questão de atitude, mas é um ato de resistência. Quando todo dia morre alguém por ter atitude, já não é mais só uma questão de atitude, é questão de você já ter morrido algumas vezes. Se não perdeu a vida, perdeu um sonho. Comigo já aconteceu várias vezes na adolescência: eu tava muito eufórico, muito feliz, abanando o rabo, sabe quando o cachorro tá quase mijando de tão feliz? E daí eu me deparava com um olhar que quebrava tudo isso em mim, um olhar de rejeição. Isso é uma morte.”

O próprio mundo gay, ao invés de cultivar a diversidade, prefere esmagar a fragilidade que torna LGBTs tão únicos, acredita. “Se você tá no Hornet, alguém vê tua foto e fala ‘você é gato, legal’, e começa a conversar. Depois, no Whatsapp, a pessoa vê aquele monte de foto, aquele monte de cabelo colorido, collant, maiô, bunda de fora… E foge: ‘legal gato, beijo’.” Raça também é uma questão ainda, infelizmente: “Ser gay branco com dinheiro é fácil em qualquer lugar: na periferia, na polícia, no bombeiro. A profundidade do que sua imagem apresenta de vulnerável, de frágil, é que vai dizer o quanto é fácil e o quanto é difícil viver”.

Hoje Dalasam comemora o poder que sua música tem de atravessar as tradicionais barreiras da sexualidade (“tem muito, muito hétero que vai nos meus shows”), e de exaltar outros adolescentes negros gays como ele já foi. “Vão uns bem novinhos, e isso é importante, muito importante. Quem aos 16, 17 anos sai de casa nessa expectativa recebe ali no show uma carga que é potencializada. Eu acho muito foda poder fazer parte da vida nas pessoas nesse momento, que é um momento bravo, crucial. Na vida de um menino de periferia gay preto, é mágico hoje ter uma bicha preta pra ser ver. Eu estou com 27, me vejo neles e digo ‘caralho, eu não vivi os 14 anos’.”

Rico Dalasam é a personificação do conceito de orgulho LGBT. Suas atitudes servem de exemplo para todos LGBTs, independente de idade ou classe social. Um dos bordões do mundo gay é o velho “acha que se eu pudesse escolher, eu escolheria ser gay?”. Nada mais que desperdício de vida, afirma Dalasam. “Se eu fosse conivente com isso, eu falaria ‘se eu pudesse eu não seria negro’… Nada disso”, reflete. “O problema não está na existência de ninguém. O problema está no imaginário de um sistema que invisibiliza a diversidade, a ponto de as pessoas não saberem lidar com certas existências. Encontrar uma potência de vida dentro da fragilidade, da vulnerabilidade, é um poder que temos, que ninguém nos deu. E não podemos permitir que alguém nos tire essa vontade de voar… Ser gay é uma grandeza.”

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