Brendan Maclean explica por que produziu um vídeo pornô gay para seu single

“House of Air” oferece um olhar explícito sobre a cultura gay dos anos 1970: “qualquer coisa que não seja a verdade completa acaba higienizando nossa história, e a torna um tédio”

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Brendan Maclean para o jornal The Guardian

Conforme a bunda reluzente, lambuzada de lubrificante, se aproximava da minha cara enquanto as câmeras estavam rodando, uma única questão passava pela minha cabeça. Não era “será que eu fui longe demais?”, mas sim “será que eu não deveria ir ainda mais longe?”.

Brendan Maclean

Brendan Maclean

Nos últimos três dias, o vídeo explícito para minha canção “House of Air” já foi visto mais de 400 mil vezes. Isso resultou em 3,5 mil comentários, cinco invasões de contas de e-mail, duas ameaças de morte e um vídeo de protesto do Brasil (e um vídeo para protestar o vídeo de protesto). O videoclipe, lançado no dia 30 de janeiro, é uma observação bem-humorada e extremamente explícita do mundo da semiótica gay. Você pode assisti-lo nesse momento se quiser – mas se você estiver no trabalho, for uma criança, ou apenas não estiver afim de ver sexo diretamente, é melhor não.

Esse vídeo teve sua gênese no ano passado, quando eu me encontrava numa biblioteca escondida dentro de uma sex shop célebre de Londres, prestes a ser demolida para abrir espaço a mais um restaurante de fast-food. Ali, apertadinho entre inúmeros tratados sobre a cultura queer e biografias de Harvey Milk, encontrei um livro bem fininho e sem-graça: Gay Semiotics, de Hal Fischer (Nota do tradutor: você pode encontrar a reprodução de várias páginas desse livro nesse post sobre semiótica gay). Levemente familiarizado com o código dos lenços do início dos anos 1970, eu não consegui me separar dessa abordagem acadêmica, mas deliciosamente espirituosa, do movimento LGBT. Eu devorei o ensaio e suas fotografias desajeitadas e taradas sentado num parque em frente à loja condenada, e anotei rapidamente num papel: “vídeoclipe sobre semiótica gay”.

A semiótica gay é descrita por Fischer como uma série de “significadores de acessibilidade”, que conheceu o auge de sua popularidade dentro da comunidade sadomasoquista de San Francisco. O código foi criado para sorrateiramente permitir que parceiros sexuais em potencial ficassem sabendo do que os outros gostavam. “As sociedades ocidentais tradicionalmente fazem uso de significadores para a não-acessibilidade”, discorre Fischer. “O anel de casamento, o anel de noivado, pingentes e broches são significadores de não-acessibilidade, sempre ligados às mulheres.

“Os homens gays tinham a necessidade de comunicarem suas preferências sexuais, e assim desenvolveu-se uma semiótica sexual.”

Segundo o código dos lenços, um lenço azul-escuro colocado no bolso da calça serve de sinal de que seu dono está em busca de sexo anal. A forma como isso vai acontecer depende de qual bolso: colocado no bolso esquerdo, ele indica o desejo de tomar o papel dominante, e no direito, o de passivo. Um lenço amarelo sugere desejo por golden showers (uso da urina no sexo), vermelho a vontade de fistar (inserir o punho no ânus de alguém, ou deixar que insiram em si) e marrom… bem, não preciso desenhar, preciso?

É um conceito com que minha geração de trocadores de meme, acostumados a enviar emojis, deve estar bem confortável; uma linguagem de insinuações e mensagens nas entrelinhas que, além de unir uma comunidade, também a protege de estranhos que talvez queiram interferir.

Duas semanas depois, eu recebi uma mensagem de um dos diretores: “os atores pornôs já foram contratados, e o estúdio está agendado para a semana que vem”.

Astros pornô? Sim, para a minha surpresa. Eu pensava que a gente só ia fingir que a ação estava acontecendo, usando truques de câmera e imagens sugestivas, mas agora vejo que isso tornaria o nosso videoclipe descartável: quando se faz um filme sobre a verdade nua e crua não há espaço para nada falso. Então lá estávamos nós: dois atores pornôs, um com o braço enfiado até o cotovelo dentro do outro, enquanto o dono do estúdio esperava sentado atrás de uma caixa enorme, para não ver o que estava acontecendo.

Por que fazer isso tudo? Por que criar algo que aparentemente poucas pessoas gostariam de assistir, que quase nenhum veículo de mídia vai querer transmitir, que faria com que todas minhas contas nas mídias sociais fossem suspensas assim que fosse lançado, tornaria meu e-mail um alvo para hackers, e que eu teria que pedir para que meus pais não assistissem? (Mãe, é sério.)

A primeira coisa a se considerar é que nada do que mostramos no vídeo é novidade. Nós seguimos o ensaio escrito por Fischer há mais de 40 anos tão de perto em nosso roteiro que eu cheguei a me preocupar que ele poderia nos processar por plágio. (O autor já nos deu sua bênção.)

Quando soma-se as fotos do livro ao texto original, com parâmetros perfeitos para orientar nosso estilista, consegue-se um videoclipe com raízes fincadas profundamente na época que o inspira. O fundo azul pastel e os fatos que saltam na tela, como num vídeo educacional, fornecem orientação com uma sinceridade que, de outra maneira, seria uma tentativa descarada de chocar o público. Conforme cada lenço é apresentado com seu significado, o telespectador passa a antecipar a escalada nas ações – não há nenhuma pegadinha. A intenção não é que as pessoas desviem o olhar; a gente quer que tudo seja visto, mesmo que entre as frestas dos dedos.

E a resposta à questão do “por quê” – bem… por que não? A gente já não se cansou de ver artistas que fazem obras “ousadas”, criadas com a intenção secreta de dar às massas o que elas querem? Vídeos virais comoventes ou extremos, que no fim das contas sempre acabam sendo um comercial de calças jeans? Sim, é claro que eu me divirto com os puritanos todos – como o cara da empresa multinacional de processamento de filme, que recusou a fazer cópias do nosso vídeo, ou metade da equipe de produção, que pediu para que seus nomes fossem ocultados nos créditos poucos dias antes do lançamento – mas nós não produzimos esse vídeo com nenhuma intenção além de explorar uma cultura que está aí há décadas.

Será que aqueles críticos que me pedem para lançar uma versão censurada entendem por que eu fiz esse vídeo? Se as imagens fortes forem retiradas, só resta um bande de modelos gays andando por Londres – e daí, sem dúvida, alguém vai comentar “mas por que os modelos tinham que ser gays?”. É uma batalha inglória, então nem vale a pena entrar nela.

Agora me diz, o que incomoda mais, meu videoclipe ou o fato de que Donald Trump é o presidente dos Estados Unidos? George Michael não amaciou seus videoclipes para que as pessoas se sentissem mais cômodas, e, seguindo seus passos, eu recebo o incentivo de outros artistas queer de vanguarda – o rapper HTML Flowers, a compositora Kira Puru, o jornalista e fotógrafo Jonno Révanche – e aquilo que todos têm em comum: a vontade de dizer a verdade sem medo.

Há artistas queer que considerariam mais conveniente aparar as arestas de nossa história, alçar nossa bandeira mas deixar de fora as cores que não vendem tão bem para o público hétero. Sendo sincero, qualquer coisa que não seja a verdade completa acaba higienizando nossa história, e a torna um tédio. E, se tem uma coisa que a história queer não é, é entediante.

Assista aqui ao vídeo “House of Air”.

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4 comentários

Diogo Salles

Lamentável. Partindo da mesma premissa que o Brendan McLean produziu seu clipe, por que não produzir um vídeo que trate o surgimento da vida e o fim dela? Ora, se a “higienização” da história é tão incômoda, por que não deixar de censurar um clipe onde haja a concepção de um feto e a real morte de um qualquer em frente das câmeras e por fim, tornar o material em um clipe? Ou, para ser menos extremo, a transmissão inédita de uma DST para outrem? Ou vai me dizer que a concepção da vida, o fim dela, doenças e outros inúmeros tópicos são passíveis de censura? Se sim, isso só prova o quão é hipócrita aquele que quiser censurar. ¬¬

Fábio Oliveira

Eu pensei que o vídeo era até bem mais pesado. Na verdade eu senti um clima mais didático…

Pedro Fernandez

Muito bom artigo confesso que antes de ler achei a ideia do vídeo loucura, mais depois de ler o seu artigo e analisar melhor o vídeo não vejo problemas, tem vídeos de single heterossexual que já vi que são bem piores.

Diogo Salles

Quais clipes com conteúdo explícito, como o do Brendan MacLean, e de cunho heterossexual, você conhece? Ou melhor, que sejam “piores” ou mais pesados do que House of Air?

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