Traduzido do artigo de Siobhan para o site Autostraddle
Fora o apreço especial que a indústria pornográfica parece ter por essa ideia, pouco se pensa sobre a associação entre freiras e homossexualidade, mas deveríamos, principalmente quando se leva em conta o contexto histórico. É algo bastante óbvio, quando se pensa nisso: ao livrá-las da ameaça do casamento e oferecer-lhes uma comunidade exclusivamente feminina, o convento devia ser o paraíso na Terra para as mulheres nobres queer. Dispensadas do fardo de um marido, as freiras muitas vezes usufruíam da liberdade para explorarem seus próprios interesses (desde que viessem de famílias nobres, claro), fossem eles música, medicina, ou subverter o patriarcado ao serem tomadas por Jesus e iniciarem um culto de sexo lésbico em sua abadia. Somando-se a isso o fato de que as pessoas na época não acreditavam que mulheres eram capazes de fazerem sexo entre si, apesar de alguns regulamentos meio vagos sobre atos que iam contra a natureza, e ir para o convento começa a parecer uma boa ideia para a lésbica do passado.
Apesar de não haver muitos registros de freiras LGBT por causa da já citada crença de que “sexo exige um homem cis” vigente na época, confira a seguir algumas das freiras mais célebres e mal-comportadas do final da Idade Média e do Renascimento.
Abadessa Hildegard de Bingen
Vamos ser honestes e admitir que tudo que se tem a respeito da abadessa Hildegard de Bingen não passa de especulação. Mas, até aí, isso é de se esperar quando se fala de alguém que não fez nada que fosse tão escandaloso a ponto da igreja deixar de lado sua norma de que “lésbicas não existem” para que pudesse puni-la. Levando-se isso em consideração, quando se observa a vida e obra dessa freira, há muitos indícios da existência de alguns sentimentos por mulheres que estavam longe de serem platônicos.
Hildegard nasceuu em 1098. Quando ela não estava tendo visões divinas, desrespeitando o papa ou dando ordens para o imperador romano, Hildegard escrevia de tudo: música, peças, e até um artigo teológico ativamente condenando mulheres que fornicavam entre si. Sim, parece contraditório, mas pense bem. Lembre-se que essa era uma época em que a opinião oficial afirmava que mulheres não eram sequer capazes de algo do tipo. Para que Hildegard estivesse ciente dessa possibilidade, ela devia passar bastante tempo pensando nisso; não é um absurdo pensar que ela tinha sua culpa no cartório.
Hildegard também foi autora de um tratado médico inovador, Sobre a filosofia natural e medicina, que dava mais importância para Galeno que para Aristóteles. A ideia chocante defendida pela abadessa era a de que a mãe contribuía material para a formação do rebento, ao invés de servir apenas como incubadora, posição da maioria dos médicos da época. Como todos que cuidavam da saúde alheia nesse tempo, ela ainda recomendava que se sangrasse ou formasse bolhas nos pacientes para livrá-los de humores ruins, mas em geral seus conselhos não tendiam a matar aqueles tratados por ela. Ela também incuiu em sua obra uma categorização bastante fofa do que tornava uma mulher atraente ou não, de acordo com seus humores. Um exemplo: “Mulheres sanguíneas: algumas mulheres são fornidas por natureza. Elas têm um corpo macio e delicioso… são muito amáveis no abraço do amor”.
Hildegard, claramente, tinha suas preferências. É notável que, quando descreve o homens segundo cada um dos quatro humores, não há comentários equivalentes sobre o que os torna atraentes. Teoricamente é possível que essa disparidade seja consequência da ação conjunta da cultura puritana e do apagamento lésbico, mas seja como for, o apelo sensual que ela sentia por mulheres é inegável. Isso torna-se ainda mais óbvio quando se pesquisa sua vida pessoal e a maneira como administrava seu convento. Hildegard gostava que suas freiras apresentassem regularmente as peças edificantes e as canções que compunha, o que já é incomum, apesar de não ser assim tão bizarro. Único mesmo é que ela fazia que suas freiras vestissem suas roupas mais caras para essas performances, sob a desculpa esfarrapada de que, como noivas de Jesus, elas tinham que se ficar lindas para ele. Essas ordens eram, tecnicamente, hereges, e confrontavam explicitamente o regulamento de sua ordem monástica, mas a abadessa era tão politicamente poderosa que conseguia se safar.
O indício final de que Hildegard não era lá muito heterossexual é a amizade especial que nutria por sua secretária e segunda em comando, Richardis. As duas gozavam de um relacionamento íntimo e apaixonado, e, quando sua pupila seguiu em frente para comandar seu próprio convento, Hildegard lhe escreveu uma série de cartas que soam exatamente como as cartas pós-separação da maioria dos casais lésbicos codependentes de hoje em dia. Apesar de não haver qualquer confirmação de que elas consideravam sua relação como algo além do platônico, muito menos de que tenham tomado alguma atitude para consumá-lo, as emoções estão lá, nuas e cruas. Hildegard morreu em 1179.
Abadessa Benedetta Carlini
Em contraste, o que não falta são indícios das preferências sexuais da abadessa Benedetta Carlini, cuja história é, de certa forma, a reflexão tenebrosa da trajetória de Hildegard. Nascida em 1591, ela também foi levada à vida religiosa logo cedo, tornou-se abadessa aos 30 anos e era arrebatada por visões extraordinárias. Suas visões, no entanto, eram explicitamente eróticas e consistiam de incorporar tanto Jesus como um ser angelical conhecido como Splenditello.
De início as visões de Benedetta eram bastante violentas – ela via homens que tentavam matá-la – e ela e outras freiras temiam que ela estava sendo acometida por demônios. Ela foi confinada numa cela e passou a ser vigiada por outra freira, Bartolomea. Ela então passou a ter visões de êxtase religioso, em que Jesus lhe dizia que ela havia sido escolhida para ser sua esposa e a “imperatriz de todas as freiras”. Ela passou a manifestar estigmata (feridas como as de Jesus crucificado nas mãos e nos pés) e, aparentemente, demonstrou um certo talento para a hipnose coletiva ou para induzir histeria em grupo: as freiras de seu convento afirmavam que, quando Jesus ou os anjos falavam por meio de seu corpo, seu rosto passava a ter a aparência de um belo rapaz.
No começo, assim como aconteceu com Hildegard e suas visões, as autoridades locais da igreja ficaram muito felizes com a possibilidade de terem uma santa em seu meio. O comportamento de Benedetta, no entanto, começou a se exceder de maneiras que transgrediam até mesmo os limites bastante frouxos que eram impostos àqueles que tinham visões divinas. Além de afirmar que havia experimentado a morte e ressuscitado, a abadessa encenou seu casamento com Jesus, durante o qual o messias falava por seu intermédio, o que lhe dava uma enorme autoridade espiritual e terrena. Isso fez com que uma equipe de investigadores fosse enviada para investigar se suas visões eram genuínas, satânicas ou apenas fraudes.
Os inquéritos iniciais consideraram-na sincera, mas uma confissão de Bartolemea fez com que as autoridades mudassem completamente de ideia e declarassem que Benedetta havia sido enganada por Satanás. Segundo Bartolomea, Jesus vinha até Benedetta à noite, com a intenção de ter relações sexuais, como qualquer outro marido. Benedetta, como qualquer noiva obediente, permitia que isso acontecesse, mas, como ele não tinha corpo físico, fazia-se necessário encontrar um substituto – papel que cabia a Bartolomea. Além disso, quando o anjo Splenditello a possuía, ele tinha relações carnais com Bartolomea, por quem era apaixonado.
Não há muita dúvida de que Bartolomea sofria conflitos pelo que fazia, e não estava em condições de realmente dar consentimento. Ela descreveu como Benedetta a jogava na cama e colocava-se por cima, utlizando sempre a linguagem passiva para se referir a si mesma durante esses encontros; também é óbvio seu desconforto durante os atos. Alguns escritores queer e feministas tendem a desprezar esse lado e retratam Benedetta como uma figura encantadora que foi vitimizada pela igreja, o que não chega a ser surpreendente. Há tão poucas figuras históricas queer que, quando se encontra uma freira lésbica que leva em frente um caso místico com sua amante, a vontade é ver isso como algo excitante, brilhante e feliz. Considerar que ela tenha sido apenas mais uma líder de um culto que usou sua autoridade espiritual para obter sexo de suas seguidoras é muito frustrante. É nosso dever, no entanto, não tentar dourar a pílula mesmo quando revemos as partes mais indesejadas de nossa história, e parte desse processo é reconhecer que Benedetta coagiu e manipulou Bartolomea no relacionamento entre as duas.
A equipe investigativa levou um bom tempo para decidir o que deveria ser feito com Benedetta, já que não havia acontecido penetração. Se algum tipo de penetração tivesse acontecido, eles poderiam condená-la por sodomia, um crime que em geral era reservado aos homens, mas às vezes aplicado a mulheres que haviam usado um consolo uma com a outra. Os investigadores, no entanto, não conseguiram provar que havia acontecido penetração e, como Benedetta continuava dizendo que acreditava que suas visões eram verdadeiras, mas estava disposta a aceitar que elas na verdade eram de natureza demoníaca, eles não podiam executá-la por heresia. Decidiu-se depois de algum tempo que ela apenas havia fornicado, algo que normalmente acarretava em punições brandas. As freiras de sua ordem, no entanto, revoltaram-se (e com razão – entre outras coisas, Benedetta havia submetido suas subordinadas a uma dieta restritiva e encorajado que se autoflagelassem) e decidiram condená-la ao eremitério. Às vezes realizado por vontade própria, o eremitério consistia de se construir uma parede fechando a pequena cela em que alguém se encontra, deixando essa pessoa lá pelo resto da vida. Fazia-se uma abertura para a entrada de comida e retirada de dejetos, então não era exatamente o equivalente a ser enterrado vivo, mas o tempo de sobrevivência sob essas condições não costumava ser muito longo. Mais uma vez Benedetta sobreviveu a todos e viveu mais 35 anos em sua cela, vindo a morrer em 1661.
Julie D’Aubigny
Julie D’Aubigny era um amor de pessoa. Nascida por volta de 1673, filha de um mestre de esgrima e jogador inveterado, aprendeu com o pai a lutar com a espada e a jogar cartas na mais tenra infância – e muito bem, diga-se de passagem. Ele também a vestia como menino, afinal de contas, por que não? Alguns relatos afirmam que seu pai matava qualquer homem que se tornasse amante da filha, razão por que ela começou a ir para a cama com mulheres. Aparentemente isso não era problema para ele. Levando-se em conta, no entanto, que aos 14 anos ela havia se tornado a amante da esposa do chefe de seu pai, e que despachou seu marido arranjado para outra cidade no dia seguinte ao de seu casamento, a história do pai assassino parece duvidosa. Soa mais como o tipo de invenção que os homens criam para tranquilizarem-se quanto à força de seu pau quando se veem ameaçados pela existência de mulheres que se satisfazem na cama sem qualquer presença masculina, muito obrigado. Esse é um tema recorrente na história de Julie.
Parece que logo Julie achou que era um tédio ser a concubina da esposa de um ricaço, e não demorou muito ela fugiu com outro espadachim. Os dois rodaram a França fazendo demonstrações públicas de suas habilidades com a espada para ganharem dinheiro. Certa vez, quando as pessoas se recusavam a acreditar que ela era uma mulher porque ela era “boa demais com a espada”, ela não teve dúvidas: tirou a camisa e provou que era mulher de peito.
O casal completava sua renda cantando em tavernas. Quando chegaram em Marselha, Julie já havia desenvolvido seus talentos o suficiente para conseguir entrar na Ópera de Marselha. Durante essa temporada, ela seguiu carreira se enconstando com o maior número possível de colegas cantores, até se apaixonar pela filha de um mercador de nome desconhecido. Esse mercador e sua esposa não curtiram muito que sua filha estava tendo um caso com uma cantora de ópera, e a colocaram num convento. Isso costumava ser o suficiente para acabar com esse tipo de história de amor. Mas não no caso de Julie.
De alguma maneira, a cantora-de-ópera-espadachim-mestra-da-jogatina convenceu as autoridades do convento de sua vontade sincera de fazer os votos sagrados, e assim Julie entrou no mesmo convento que sua namorada. Dentro de um mês, uma freira mais velha morreu de causas naturais, e as duas vislumbraram uma oportunidade: colocaram o cadáver da freira morta na cama da namorada, atearam fogo no convento e fugiram no meio da noite. Para sua infelicidade, esse plano tão sagaz não deu certo, e depois de viverem um mês juntas clandestinamente, a garota retornou para o convento e Julie foi julgada in absentia. Condenada por sequestro, incêndio criminoso, furto de cadáver e não comparecer perante a corte, ela foi condenada a ser queimada viva. Para a sorte de Julie, a fragilidade da masculinidade lhe salvaria a vida. Era constrangedor demais admitir que uma mulher havia sido responsável por isso tudo, então quem foi julgado foi uma versão “masculina” de Julie D’Aubigny. Ou seja, mesmo que conseguissem capturar a fugitiva, ela não poderia ser submetida à pena de sua “persona masculina”.
Compreensivelmente cansada, Julie rumou para Paris, onde esperava que seu primeiro amante fizesse uso de sua influência para eliminar as acusações contra ela. No caminho ela arranjou um novo namorado, num encontro que remete aos piores trechos dos romances água com açúcar: o jovem Conde D’Albert a insultou, ela o desafiou para um duelo e o feriu. No dia seguinte, tomada por dó, ela foi conferir como ele estava, e foi seduzida. O conde a acompanhou até Paris, e se tornaria outro amigo nobre que seria útil para nossa heroína até o fim de sua vida.
Depois de conseguir seu perdão, Julie entrou para a prestigiada Ópera de Paris, para então dormir com metade da companhia e espancar a outra metade. Qualquer rapaz que fosse desrespeitoso ou deseducado com as mulheres da ópera, fosse ele parte do elenco ou da plateia, acabava por ser humilhado quando era vencido num duelo ou quando apanhava num beco (certa vez, ela levou o relógio de bolso do fanfarrão como troféu). Sua carreira chegou ao fim quando ela entrou num baile casamenteiro para a classe alta, dançou com todas as mulheres e beijou uma delas na frente de todos. Três rapazes desafiaram-na imediatamente para um duelo. Ela venceu os três, mas então descobriu que o rei havia proibido duelos na cidade de Paris, e mais uma vez ela teve que dar no pé.
Depois de uma breve estadia em Bruxelas, onde atuou nos palcos e teve casos com autoridades locais, ela se mudou para Madri, onde trabalhou como empregada antes de pedir as contas com estilo. Quando fazia penteado de sua empregadora, Julie pendurou em seu cabelo vários rabanetes, visíveis para os outros mas não para a própria. Quando a vítima do penteado-salada voltou da festa, a empregada já estava a caminho de Paris, onde mais um perdão das autoridades a aguardava.
De volta a Paris, ela voltou a trabalhar na Ópera, tornou-se famosa por interpretar papéis andróginos ou masculinos, voltou a defender suas colegas de nobres assanhados e colecionou mais casos românticos com as mulheres da corte. Finalmente, depois de tentar suicidar-se, de sair no tapa no palco e de uma tentativa de homicídio, ela encontrou o amor de sua vida: Madame la Marquise de Forensac, a mulher mais bela da França. As duas viveram juntas, felizes e contentes, até que Florensac morreu inesperadamente dois anos mais tarde. Julie ficou inconsolável e mais uma vez entrou para um convento, apenas para morrer no ano seguinte. A causa da morte – segundo um biógrafo – foi sua tendência inata ao pecado.
Sim, é um final meio deprimente, mas mesmo assim, não se pode negar que Julie D’Aubigny se divertiu, e muito, durante sua vida. E, tirando a garota que acabou sendo mandada para o convento, nenhuma de suas amantes parece ter sido punida. Pare pra pensar: se Julie conseguiu se safar com tudo isso que fazia em público, imagine o que as mulheres da França aprontavam quando ninguém estava vigiando…