Como os anéis olímpicos foram usados para combater o HIV em 1996

Com a chegada dos Jogos Olímpicos de Atlanta, um grupo de ativistas decidiu se apropriar do símbolo olímpico para combater o HIV, a despeito do Comitê Olímpico Internacional

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Mark S. King para o site LGBTQNation

O Comitê Olímpico Internacional (COI) é uam organização muito sensível, especialmente no que se refere aos anéis olímpicos. Eles protegem sua marca registrada com muitos ciúmes e processos, rotineiramente processando qualquer indivíduo que se atreva a se apropriar desse símbolo icônico. Até mesmo camelôs já foram impedidos de vender produtos durante os Jogos por violarem seus direitos autorais.

Anthony Braswell não estava pensando nisso quando teve uma ideia perigosa com um colega de trabalho. O ano era 1995, e Atlanta estava no auge da febre olímpica, conforme a cidade se preparava para ser a sede dos Jogos Olímpicos de 1996.

Braswell trabalhava como diretor da Grady Health System Infectious Disease Program (IDP), a nova clínica para tratamento do HIV de Atlanta. Ele e seu diretor médico, Dr. Jeff Lennox, estavam um dia conversando sobre a enorme oportunidade de se educar a respeito do HIV que surgia com os Jogos Olímpicos. Como seria bom se eles pudessem colher a atenção da mídia mundial, prestes a invadir a cidade por duas semanas!

“Havia um cesto cheio de preservativos sobre a mesa de reuniões”, Braswell declarou em entrevista. “Jeff pegou cinco camisinhas e colocou-as sobre a mesa, brincando que nós deveríamos reproduzir os anéis olímpicos com elas. Eu me lembro que olhei para ele e disse ‘sim. Play safe (Jogue seguro)’. E foi assim que tudo começou.”

Eles não se preocuparam no momento se haveria ou não algum problema legal em se criar essa campanha, ou qual seria a reação do poderoso COI. Ou exatamente como ela seria realizada. Eles apenas começaram a por a mão na massa.

“Não pensamos em quais seriam os próximos passos”, lembra Bradwell. “Apenas curtimos a simplicidade da mensagem. Não havia orçamento, nem dinheiro disponível para essa ideia.” Esse problema resolveu-se por si só quando pessoas começaram a se oferecer para criar o design, fotografar, imprimir e distribuir o pôster em cores dessa ideia incipiente.

Uma empresa de marketing de Los Angeles ofereceu um fotógrafo e horário em um estúdio fotográfico. “Eles foram muito cuidadosos para que as cores das camisinhas fossem as mesmas dos anéis olímpicos”, conta Braswell. “Eles também descobriram que os preservativos lubrificados danificavam as lentes de suas câmeras, então tiveram que jogar fora os primeiros e encontrar preservativos sem lubrificante.”

Quando as primeiras versões desse pôster chegaram da empresa de marketing voluntária, Braswell mal podia acreditar que “aquela ideia maluca estava ganhando forma. Mas ainda faltava algo.”

Em uma reunião com outros membros do corpo clínico, o grupo percebeu que “Play Safe” era uma mensagem que simplesmente não seria compreendida por grande parte dos visitantes olímpicos. “Para que ele fosse eficaz, nós precisávamos nos comunicar com muitas nacionalidades diferentes, várias culturas distintas”, explica Braswell, “então entramos em contato com inúmeros grupos internacionais para determinar as traduções da mensagem ‘Play Safe’.”

Eles adicionaram uma borda ao redor da mensagem central, com ‘play safe’ traduzido em dezoito idiomas. “O mais difícil foi chinês”, lembra Braswell. “Não havia pictogramas que transmitissem a mensagem do sexo seguro, então acabamos dizendo algo como ‘faça sexo bom’. Mas eles não tinham um pictograma para ‘sexo’, então na verdade soletramos a palavra em inglês.”

O detalhe gráfico final foi adicionar o número de telefone de um serviço de informações sobre Aids e HIV, que hoje ainda está em funcionamento. “Nós não pedimos permissão para eles”, confessa Braswell, “porque nós queríamos protegê-los.”

Play Safe - Jogos Olímpicos Atlanta 1996

A essa altura, um número crescente de militantes do HIV em Atlanta, de gays a funcionários de agências de assistência à Aids a funcionários do departamento de saúde, já haviam ouvido falar dos planos da campanha e estavam a postos para realizar a maior tarefa de todas: distribuir as 750 mil cópias do pôster, cuja impressão havia sido paga por um estúdio de cinema de Los Angeles, enviados direto para a casa de Braswell.

“No fnal de semana antes do início dos Jogos Olímpicos, uma série de caminhões grandes estacionaram em frente de casa”, descreve Braswell. “Havia mais de mil caixas dentro deles. Eu fiquei horrorizado. Nós ocupamos cada centímetro da minha casa, do chão ao teto, com caixas, e ainda sobrava. Levamos um caminhão para a clínica e escondemos 400 caixas no depósito. Até minha vizinha colocou cem caixas em sua sala.”

Braswell e o exército de voluntários prestes a lançar a campanha sabiam muito bem o quanto o pôster provocaria a ira do COI. Mas qualquer represália em potencial só fazia com que ficassem mais animados, por conta da repercussão e porque os cidadão de Atlanta já não sentiam mais qualquer simpatia pelo COI. Juan Antonio Samaranch, presidente do COI, soberbo e arrogante, havia chegado a exigir que os cidadãos se referissem a ele como “sua excelência”, ordem que pegou muito mal em uma cidade que é tão despretenciosa que contou com uma frota de picapes em sua cerimônia de abertura.

O plano foi executado no final de semana da abertura dos Jogos Olímpicos de Atlanta. “Foi tudo muito dissimulado”, conta Braswell. “Amigos que trabalhavam na Vila Olímpica nos ajudaram a contrabandear os pôsteres lá para dentro”. Enquanto isso, outros voluntários trabalhavam em hotéis, nos quais profissionais da mídia estavam hospedados, e trataram de passar por baixo das portas um envelope com um pôster, um comunicado sobre a necessidade de se conscientizar a respeito da Aids, e material sobre sexo seguro. O pôster foi espalhado por postes da cidade, vitrines e em restaurantes de toda cidade.

As estatísticas sobre a disponibilidade e quantidade de preservativos distribuídos na Vila Olímpica em cada edição das Olimpíadas diferem. Segundo o site Slate, os jogos de Atlanta em 1996 tiveram uma queda significativa no número de camisinhas distribuídas em relação às olimpíadas anteriores – e mesmo essas estatísticas são colocadas em dúvida.

Braswell não crê que foram distribuídos muitos preservativos na Vila Olímpica de Atlanta. “Quando perguntamos se estavam sendo oferecidas camisinhas, o Comitê Olímpico de Atlanta disse que não, respondendo que ninguém fazia sexo na Vila Olímpica. Pelamordedeus.” Essa atitude difere muito dos 450 mil preservativos que estão à disposição dos atletas no Rio. “Como é diferente o mundo em que vivemos agora”, comemora Braswell.

O esforço de se fazer os pôsters em 1996 não deram muito resultado depois que os Jogos Olímpicos tiveram início e o material foi distribuído… a princípio.

“Por alguns dias nós não ouvimos nada”, lembra Braswell. “E então a campanha começou a aparecer na imprensa. Oficiais do COI e o comitê de Atlanta estavam querendo descobrir quem eram as pessoas ‘que haviam feito isso com os anéis olímpicos’.”

Na cidade com a maior concentração de jornalistas no mundo naquele momento, os anéis olímpicos feitos de preservativos ganharam força, e obrigaram os responsáveis a responder perguntas sobre se “havia ou não uma camisinha oficial para os Jogos Olímpicos de 1996”. Os repórteres registravam, com alegria perversa, que a resposta era não, não havia.

A atenção foi gloriosa, mas breve. Durante a segunda semana dos Jogos Olímpicos, uma bomba explodiu no Parque Olímpico Centenário, um ato de terrorismo doméstico que tomou conta das manchetes e partiu o coração dos cidadãos de Atlanta.

A tragédia acabou com o impulso da polêmica do pôster das camisinhas, e desviou a atenção para questões de segurança e as consequências da explosão. O pôster desapareceu do noticiário com a mesma rapidez com que surgiu.

Assim como a maioria das formas de ativismo, seja um flash mob ou um protesto, o pôster dos anéis olímpicos feitos de camisinhas encontrou seu público, transmitiu sua mensagem, e desapareceu.

“No fim das contas, a campanha funcionou”, avalia Braswell. “Eu tenho muito orgulho das pessoas que acreditaram nesse esforço. E isso aconteceu há vinte anos, antes das mídias sociais!”

“Não importa”, conclui Braswell. “Funcionou. E nós fizemos isso acontecer.”

Apoie o Lado Bi!

Este é um site independente, e contribuições como a sua tornam nossa existência possível!

Doação única

Doação mensal: