“Minha janela dá para um verdadeiro caudal de garotos que vão à praia e que dela vêm. Vivo olhando.” Está num dos diários de Alair Gomes, filósofo, professor e crítico de arte. No século 21, Gomes torna-se cada vez mais famoso, no entanto, por outra paixão sua: a fotografia. Nascido em 1921, foi durante a década de 1970 que começou a retratar os rapazes que desfilavam pela praia de Ipanema, na época em que o culto ao corpo começava a se firmar. Ao longo de mais de 20 anos ele realizou mais de 1700 fotos, de cliques realizados voyeuristicamente da janela de seu apartamento na rua Prudente de Morais, passando por registros dos homens na calçada e nas areias de Ipanema, até retratos feitos no estúdio improvisado em casa, depois que convidava algum dos tantos meninos do Rio para subir em seu apartamento. Seu fascínio pela sensualidade masculina acabou tragicamente: foi estrangulado por um de seus modelos, por quem estava apaixonado, aos 70 anos.
Apenas um jornal noticiou a morte desse “engenheiro homossexual, solitário, discreto” e de “hábitos estranhos”. O ano era 1992, e apesar de testemunhas terem visto o suspeito sair do apartamento de Gomes, o caso não foi investigado. A maior parte de sua obra foi doada à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Em 2001 seu trabalho começou a se tornar mais conhecido depois que a Fundação Cartier montou uma mostra com seu trabalho. Desde então suas fotos já foram expostas na Bienal, entraram para o acervo do MoMA em Nova York, tornaram-se capas de revistas internacionais e conquistaram os hormônios de pessoas do mundo todo.
Gomes nunca pretendeu que suas fotografias fossem vistas separadamente – sua intenção era que fossem apreciadas em conjunto, às centenas. Muitas delas, infelizmente, não estão abertas ao público por problemas de autorização de uso de imagem. No entanto, o público paulistano terá, muito em breve, uma rara oportunidade: a de conhecer fotos inéditas de Alair Gomes. Entre os dias 20 de junho e 16 de julho a galeria Casa Triângulo vai expor dezenas de fotos garimpadas pelo curador Elder Chiodetto na mostra Young Male: Fotografias de Alair Gomes. Nela, os famosos corpos de praia se misturam a fotografias de estátuas clássicas, enquadradas com o mesmo olhar libidinoso que Gomes dedicava aos garotos de Ipanema. Confira a seguir a entrevista que o LADO BI realizou com Chiodetto, por e-mail.
LADO BI O que a obra de Alair Gomes revela sobre a vida dos homossexuais no Brasil do século 20?
EDER CHIODETTO A obra de Alair Gomes, mais do que ser sobre os homossexuais, é sobre o seu desejo. Como ele mesmo diz, sua obra é uma homenagem à beleza do corpo masculino. Por isso as referências principais dele são as esculturas greco-romanas. Ele parte da beleza clássica para chegar no corpo dos garotos que circulam pela praia de Ipanema entre os anos 1960 e 1980. A sua produção ocorre entre a liberação comportamental que tem as concorrências históricas de maio de 1968 como símbolo e cessa quando surge a Aids. Dois marcos que ditaram o comportamento e a visibilidade da comunidade homossexual.
Como foram encontradas fotografias originais de Alair Gomes depois de tanto tempo? Ainda há a possibilidade de novas descobertas como essa?
A grande parte de fotografias dessa mostra são do acervo do dramaturgo Robson Phoenix. Ele as ganhou de Maurício Bentes, grande amigo de Alair, num momento em que ambos pensavam em realizar um projeto teatral utilizando as fotografias do Alair como referência. Infelizmente Bentes faleceu antes desse projeto ser realizado. Robson herdou essas obras. Como ele não é um colecionador de arte, resolveu colocá-las no mercado para que possam vir a integrar coleções que ajudem a dar maior visibilidade ao trabalho do artista carioca.
Grande parte das fotos de Alair Gomes oculta o rosto dos modelos, mesmo quando os modelos estavam posando para suas lentes. Essa sensação de clandestinidade é essencial para a sensualidade das imagens que ele criou?
Na verdade o Alair não se preocupa muito em ocultar o rosto dos garotos que ele fotografou. Na série de nus, que integra a magnífica sequencia de 1.767 fotografias de Symphony of Erotic Icons, em grande parte das fotografias ele revela os rostos. O problema é que ele nunca se preocupou em pegar por escrito uma autorização de uso dessas imagens. E agora, como o acervo dele pertence à Biblioteca Nacional, essa questão jurídica limita a exposição das imagens que identificam os rapazes. Porém, as fotografias em poder de Robson poderão ser exibidas sem problemas, como faremos na Casa Triângulo.
Como funcionava o olhar de Alair Gomes, e como isso moldou sua obra?
A produção do Alair obedece a rigorosos sistemas que ele criou. As sequências fotográficas – como as Sonatinas e os Trípticos de praia -, nas quais a fotografia encontram uma expressão legítima que a dista da obra única (pintura) e do cinema (movimento), são sua grande contribuição para a história da arte e da fotografia. As fotografias do Alair não devem ser vistas isoladamente, mas sempre como constelações. Ele dizia que só assim, com um grande volume de imagens, poderia dar conta de reproduzir o seu desejo compulsivo pelo corpo masculino jovem e belo, ou “Young Male”, termo que ele usava em seus diários e que dá o título a essa exposição.
A valorização de sua obra nos últimos anos é um sinal de que nossa sociedade também passou a valorizar a homossexualidade?
O debate em torno da tolerância com a diferença de gênero e opção sexual tem se desenvolvido muito no mundo ocidental, sem dúvida. É inegável também que a obra do Alair sofreu de preconceitos. Ele mesmo sabia que a obra dele seria primeiramente entendida na Europa e nos EUA, e que no Brasil esse entendimento seria mais lento. Esse é um dos motivos que o leva a escrever em inglês os diários que falam sobre seu trabalho. Eu, particularmente, tenho trabalhado com afinco agora para que sua obra ganhe o destaque que merece na nossa historiografia. Os avanços do debate sobre a tolerância com a comunidade LGBT ajudam sobremaneira essa obra a ter a visibilidade que merece.
Serviço
YOUNG MALE – Fotografias de Alair Gomes Curadoria de Eder Chiodetto Abertura: 18 de junho, das 15h às 19h De 20 de junho a 16 de julho de 2016
CASA TRIÂNGULO Rua Estados Unidos, 1.324, Jardins, São Paulo – SP. Tel. (11) 3167-5621. De segunda a sábado, das 10h às 19h.
Por mais matérias como essa, resgatando a nossa arte brasileira! Muito bacana 🙂