Traduzido do artigo de Choe Sang-Hun para o jornal The New York Times
Depois que o desertor norte-americano Jang Yeong-jin chegou na Coreia do Sul em 1997, ele foi interrogado por policiais por cinco meses, até ser liberado, hesitantemente. Os policiais ainda não tinham a resposta para uma pergunta crucial: por que o sr. Jang decidiu correr o risco de atravessar a fronteira extremamente vigiada entre as duas Coreias?
“Eu me sentia constrangido demais para confessar que vim para cá porque eu não sentia qualquer atração sexual por minha esposa”, admite Jang. “Eu não conseguia explicar o que é que me incomodava tanto, e fazia que minha vida na Coreia do Norte fosse tão miserável, porque eu não sabia até depois de ter chegado aqui que eu sou gay, ou sequer o que é homossexualidade.”
Jang, 55, é o único desertor da Coreia do Norte abertamente gay que vive no Sul. Sua orientação sexual foi exposta brevemente em 2004, quando ele perdeu todas suas economias para um vigarista e contactou um ativista LGBT em busca de auxílio. Desde então ele vinha evitando a vida pública na Coreia do Sul, onde a homossexualidade ainda permanece um grande tabu.
E então, no fim de abril de 2015, Jang publicou uma autobiografia, Uma marca de honra vermelha. No livro, e durante uma entrevista recente, ele descreveu suas vivências como um gay crescendo no Norte totalitário, onde o governo afirma que a homossexualidade não existe porque as pessoas lá vivem com “mentalidade sã e moral boa”.
Sua luta continuou mesmo no Sul capitalista, onde ele afirma sentir-se “duas vezes alienígena”: um refugiado da Coreia do Norte que também é gay.
“Na Coreia do Norte, nenhuma pessoa comum entende conceitualmente o que é a homossexualidade”, afirma Joo Sung-ha, que na década de 1990 estudou na universidade de elite Kim Il-sung, em Pyongyang, a capital da Coreia do Norte, e agora trabalha como repórter para o diário sul-coreano Dong-A-Ilbo. “Em minha universidade, apenas metade dos estudante sequer tinha ouvido a palavra. Mesmo assim, sempre era tratada como uma doença mental vaga e estranha que afetava sub-humanos, encontrada apenas no Ocidente depravado”.
Apesar da Coreia do Norte não ter leis que explicitamente proíbem relacionamentos homoafetivos, o país não tem qualquer vergonha em expressar sua homofobia. Em 2014, por exemplo, seus porta-vozes declararam que Michael D. Kirby, um ex-juiz australiano que comandava uma investigação das Nações Unidas sobre abusos contra dos direitos humanos perpetrados no país, era “um velho tarado nojento com mais de 40 anos de carreira na homossexualidade”.
Jang afirma que nunca havia ouvido falar de homossexualidade enquanto crescia em Chongjin, na costa leste da Coreia do Norte, mesmo quando se encantou por outro garoto chamado Seon-cheol. Eles continuaram sua amizade depois de se mudarem para Pyongyang, onde frequentaram faculdades diferentes.
“Quando o metrô estava lotado, eu me sentava no colo de Seon-chel, e ele me abraçava por trás”, recorda-se Jang. “As pessoas não ligavam, pois achavam que nós éramos amigos de infância”.
Os dois separaram-se em 1976, quando os dois entraram no exército aos 17 anos, onde relações fisicamente próximas tornaram-se uma questão de sobrevivência.
“No inverno, quando os soldados recebem apenas dois cobertores finos cada um, era comum que nós encontrássemos um parceiro e dormíssemos abraçados para nos mantermos aquecidos”, lembra-se Jang. “Nós considerávamos que isso era parte do que o partido dizia ser a ‘camaradagem revolucionária’.”
Outros desertores da Coreia do Norte já relataram comportamento homossexual no exército da Coreia do Norte, onde os soldados cumprem um serviço militar de dez anos, com poucas oportunidades para encontrarem alguém de outro sexo. Quando quatro ex-soldadas e mulheres policiais do Norte fizeram uma coletiva de imprensa em Seul, em abril de 2015, para falar sobre o abuso sexual que testemunharam, uma delas citou o caso de uma oficial lésbica que acossava as recém-chegadas.
“Havia muito abuso sexual, como ser apalpada à noite”, uma ex-militar da Coreia do Norte, Choe Jong-hun, declarou à TV Chosun, um canal a cabo da Coreia do Sul, em agosto de 2015. “Mas depois nós nos encontrávamos ao lado de novos recrutas.”
Na unidade de linha de frente de Jang, afirma, oficiais e soldados sênior o subornavam com maçãs e comida para atraí-lo para seus cobertores. Depois de realizar a sentinela noturna em uma nevasca, diz, ele encontrava conforto “no seio” de seu líder de pelotão favorito. Do outro lado da fronteira, mensagens de rádio com propaganda tentavam seduzir os soldados comunistas solitários e gélidos para que desertassem, prometendo “carne, folgas mensais e mulheres bonitas”.
Jang foi liberado do serviço militar em 1982, depois de contrair tuberculose. De volta em Chongjin, ele trabalhou como um oficial de comunicações sem fio no porto. Em 1987 ele se casou com uma professora de matemática num casamento arranjado.
“A maioria dos gays na Coreia do Norte acabam se casando por bem ou por mal, porque é o único caminho que conhecem”, explica Jang. “Na primeira noite do meu casamento, eu me lembrava de Seon-cheol e não conseguia encostar um dedo em minha esposa.”
Depois de anos de casamento sem gerar filhos, o casal deu ouvidos aos apelos dos familiares e visitou um médico para certificar-se de que não havia problemas físicos. Não havia nenhum. Jang entrou com um pedido de divórcio, que lhe foi negado. Sua esposa também implorou para que ele permanecesse, com medo de perder seu emprego de professora. Ele reestabeleceu seus vínculos com Seon-cheol, que havia retornado do serviço militar, casado-se com uma enfermeira e tinha dois filhos pequenos.
Os dois amigos visitavam-se de vez em quando, e suas esposas permitiam que dormissem juntos, pensando que esse era um hábito de infância. Numa dessas noites, Jang escapuliu do cobertor que compartilhava com sua esposa e se enfiou debaixo do cobertor de Seon-cheol. Seu amigo, diz, não reagiu e continuou roncando.
“Foi então que percebi que minha vida era uma prisão e eu não tinha qualquer esperança”, afirma. “Eu queria fugir voando, como um ganso selvagem. Eu também queria libertar minha esposa daquele casamento sem amor.”
No inverno de 1996, ele atravessou a nado um rio gélido até pisar na China. Depois de, por 13 meses, buscar em vão uma passagem para a Coreia do Sul, ele voltou sorrateiramente para a Coreia do Sul e atravessou rastejando a fronteira para o Sul em 1997. Ele foi um dos pouquíssimos desertores que conseguiu cruzar de um país para outro sem ativar uma das numerosas minas polvilhadas pelo terreno. Sua deserção ganhou as manchetes.
Na Coreia do Sul, os policiais soltaram Jang depois que ele falou de seu casamento problemático. Mas ele ainda não compreendeu completamente sua orientação sexual até que leu um artigo sobre os direitos gays em 1998. Ele mostrava fotos de um casal homoafetivo se beijando e dois homens nus na cama, e revelava que havia bares gays em Seul.
“Foi como se acendessem as luzes em meu mundo”, comemora.
A transição de Jang para a vida na Coreia do Sul, no entanto, não tem sido fácil. Em 2004 um gay prometeu que tornaria-se seu parceiro e, então, roubou-lhe todas as economias. Na mesma época ele também descobriu que três irmãos e uma irmã no Norte haviam morrido depois que a família foi expulsa de seu vilarejo depois que Jang desertou.
Outro desertor norte-coreano que havia conhecido a família de Jang no Norte relatou que sua esposa também havia sido expulsa de seu vilarejo, mas depois foi reintegrada. O desertor contou o que sabia sob anonimato, porque ainda tem familiares vivendo no Norte.
Jang sustentava-se fazendo a limpeza de um edifício no centro de Seul das 4 da manhã às 4 da tarde. Não era uma vida fácil, admite, mas muito mais preferível que a vida que tinha no Norte.
“Há muitos homossexuais na Coreia do Norte que vivem uma vida miserável sem sequer entenderem por que”, lamenta. “Que tragédia é viver a vida sem saber quem você é”.
Mesmo no Sul a homossexualidade ainda é tabu. Em 2016 Jang publicou um livro de memórias, Uma marca de honra vermelha, em que descreve sua nova realidade: “sou duplamente alienígena: um refugiado do Norte na sociedade do Sul, e uma minoria sexual numa sociedade heterossexual.”