RuPaul: “Prefiro ganhar um enema que um Emmy”

A drag queen mais famosa do mundo discute em entrevista como programas estão chupinhando “RuPaul's Drag Race”, diz o que acha das polêmicas que a chamam de transfóbica e conta de quando encontrou David Bowie

por Marcio Caparica

Traduzido da entrevista para o site Vulture

RuPaul nasceu em 17 de novembro, e é de Escorpião, portanto  – um detalhe que, segundo ele, explica a maneira analítica e observadora como dá entrevistas. Dava para sentir seu olhar cair sobre mim enquanto ele se sentava num sofá dourado no London Hotel em Nova York, portando óculos retangulares pretos e um terno feito de brocado espesso, com uma estampa resplandecente de rosas pink. Esse não é o RuPaul em drag, leve e efervescente, que o público veio a conhecer desde que ele lançou seu primeiro single, “Supermodel (You Better Work)”, em 1992. É o Ru do ambiente de trabalho: sério, sóbrio, e levemente intimidador. Durante nossa conversa, RuPaul, 55 anos, respondeu às críticas daqueles que dizem que RuPaul’s Drag Race usava linguagem transfóbica, menosprezou o programa Lip Sync Battle do canal Spike TV como cópia de seu programa, e explicou por que educar as gerações mais jovens é um desperdício do tempo de todos. Prepare seus óculos de leitura, porque a biblioteca está aberta.

Parabéns pelo centésimo episódio de RuPaul’s Drag Race. Agora que você chegou na oitava temporada, como você pretende manter o programa inovador?

Nós sempre somos inspirados pelas drags. Como o programa é como se fosse uma escola, nós recebemos uma safra nova de alunos todos os anos – é assim que o programa se mantém inovador. Esse ano, em particular, é o Drag Race das crianças. Essas são as garotas que cresceram assistindo ao programa, e a estética delas vem toda dele. É uma mudança interessante. E a gente sabia que isso ia acabar acontecendo se ficássemos no ar tempo o suficiente – a gente ia ver o que fizemos com o público. E elas são lindas! Elas são inteligentes. Na verdade, nós temos que nos esforçar mais para nos manter um passo a frente delas.

Isso fez com que você desse um passo para trás e parasse para refletir sobre o que você criou no programa?

Sabe, normalmente eu não faço isso. Eu só paro para pensar sobre esse tipo de coisa quando eu converso com pessoas como você, da imprensa, e me fazem essa pergunta. Eu sempre estou olhando para frente. Eu compreendo que nós lançamos a carreira de cem drags, e essa é a parte mais importante de nosso trabalho.

Quais foram alguns dos seus momentos preferidos?

Como as garotas são muito corajosas e suas histórias são tão ricas, elas sempre trazem histórias muito únicas. Eu sempre me lembro da história de Roxxxy, quando ela revelou que foi abandonada num ponto de ônibus aos quatro anos. Geralmente são as histórias delas que me surpreendem, por causa de como elas são fortes e duronas.

Uma das coisas que eu mais gosto sobre fazer drag é que essa é uma forma de arte apoiada na sobrevivência.

É mesmo, porque cada uma das garotas já foi um menininho, às vezes em cidades pequenas, que era alienado e ostracizado. E apesar de tanta adversidade, elas persistiram e hoje estão brilhando. É, portanto, uma história de força. É isso que atrai o público. Aqui estão essas pessoas que persistiram e alcançaram o sucesso, lutando contra obstáculos inimagináveis. É uma história incrível para todos que assistem.

Muitas vezes elas dizem que ser drag salvou suas vidas.

Certo. E eu te digo por quê. Porque, quando se é inteligente e sensível, chega uma hora em que se enxerga como esse planeta funciona. É como quando a Dorothy espia atrás da cortina. Tipo, “Peraí, você é o mágico?”. E você percebe a farsa. Que isso é tudo uma ilusão. Não tem muito para onde ir. Primeiro, você fica com raiva porque você foi enganado e fica amargurado. Mas então, é só se afastar um pouco da amargura e você percebe, “Ah, saquei. Vamos nos divertir com isso. É tudo uma piada. Quer dizer que eu não tenho que me ater a um visual só, ou a apenas um seja do que for? Eu posso mudar de forma? Ótimo.” É nesse momento em que salvam-se vidas. Do contrário, a mediocridade e a hipocrisia são tão mundanas, é melhor nem tentar. Eu não vou dizer “para com tudo”. Mas é por isso que se montar salva vidas. Porque, para as pessoas que são altamente sensíveis e super-inteligentes, isso atiça a mente. Oferece a elas algo pelo que viver. É a irreverência. Eu era igual quando eu tinha 15 anos. Eu disse, “OK, eu vou entrar nessa vida. Mas eu vou fazer isso do meu jeito, e eu nunca vou entrar na Matrix.” É por isso que se montar salva vidas.

Você diria que se montar salvou sua vida?

Na verdade  não salvou minha vida, ser drag me deu uma vida. Eu não acho que há vida na hipocrisia mundana do horário comercial. Isso não é vida. Isso é só parte da Matrix. E drag é punk rock, porque não é parte da Matrix. É não seguir qualquer regra dos padrões da sociedade.  Menino, menina, preto, branco, católico, judeu, muçulmano. Não é nada disso. Nós mudamos de forma. Nós podemos fazer o que quisermos.

Você acha que drag nunca vai ser mainstream?

Acho que não. Sabe, eu nunca fui convidado para participar do programa da Ellen ou do David Letterman ou do Tonight Show, e há um motivo para isso, que eu não quero discutir, mas há uma razão por que ninguém acha que eu sou o tipo de pessoa que pode estar lá. Porque eu faria os apresentadores se sentirem muito, muito desconfortáveis, principalmente se for pra gente conversar de verdade. Seria o oposto do que eles estão acostumados. Então, eu sou parte do mainstream? Não. As pessoas conhecem meu nome, as pessoas sabem que cara eu tenho, mas alguém me convida para a festa? Não. Não, e há uma razão para isso.

Você gostaria de ser convidado?

Não. Na verdade, eu fiz um pacto comigo mesmo quando eu tinha 15 anos que, se era para eu viver essa vida, eu só entraria nessa para fazer as coisas do meu jeito, e eu só vou fazer isso se eu estiver mostrando o dedo do meio para a sociedade o tempo todo. Então sempre que eu fico com anseios tipo, “Ah, cara, como eu queria ter sido convidado para os Emmys”, eu digo, Ru, Ru, lembre-se do pacto que você fez. Você nunca quis ser parte dessa bobagem toda. Na verdade, eu prefiro ganhar um enema que ganhar um Emmy.

Seu programa é claramente um dos melhores reality shows, então não faz o menor sentido que você nunca foi indicado.

Passa a fazer sentido quando você desmonta o carro e presta atenção de verdade no que é esse carro. Você compreende que eles não podem prestigiar o programa, porque, se fizessem isso, eles teriam que reconhecer todas as falhas em suas doutrinas, em toda sua ideologia. Ser drag significa não ser conformista. Ser drag na verdade é tirar sarro da conformidade. Agora, os apresentadores de programas de entrevistas… eles gostariam que eu tirasse sarro de mim mesmo, que eu servisse de alvo para as piadas deles, mas não querem que eu me coloque lá como ser humano. Eles recebem transexuais porque transexuais chegam e dizem “é isso aqui que eu sou de verdade. Eu existo”. O que eu diria é “não, eu não sou de verdade. Na verdade, eu sou tudo, e não sou nada”.

Que budista isso.

Eu não inventei essa merda toda. Eu estudei. É muito budista, e todos os caminhos levam ao Zen e ao budismo. Se você busca respostas e quer conhecê-las, você não vai ser a primeira pessoa a chegar nesse ponto. E você não tem que ir muito longe para encontrar essas respostas. Elas não estão codificadas em escrituras ancestrais. Na verdade, elas estão bem na sua frente. Estão naquela flor que estou vendo bem agora ou naquela árvore logo ali ou naquela montanha. Tudo está por aí.

O que você acha do programa Lip Sync Battle e o programa de Jimmy Fallon?

Ah, eu não paro para pensar sobre eles. São cópias baratas do nosso programa. A cultura pop padrão e hétero desde sempre chupinha muitas coisas da cultura gay. E tudo bem, sabe por que? Nós sempre temos muito mais de onde isso veio. Pode pegar! É por isso que [meu novo programa] Gay for Play é tão divertido, porque nós pegamos o melhor da sensibilidade gay e juntamos tudo num lugar só. E estamos mostrando para essas vacas como é que se faz. É engraçado como isso funciona, mesmo na cultura gay. Há uma certa “vergonha gay”. Os gays preferem aceitar uma estrela pop hétero a uma estrela pop gay, ou preferem uma versão hétero de algo gay, porque ainda há tanto desprezo a si mesmo, sabe?

Falam tanto de aceitação hoje e assim, acredite em mim – eu sou velho e já conheço esse babado todo – é superficial. Porque, quando as luzes se apagam, daí que se descobre se o pensamento das pessoas avançou mesmo. Essa tal era de “aceitação Will & Grace” é só fachada. As coisas não mudaram tanto. Você pode ver na política agora – aquilo sim que é a verdade das pessoas. E você sabe, as pessoas querem que você pense, “Ah, nós somos fashion. Nós somos gays. Olha meu gay ali!”. Assim, não. Nós ainda somos uma cultura muito, muito, muito primitiva.

A homossexualidade ainda é tratada como se fosse um acessório.

Exatamente. Mas se conseguirmos acabar com o desprezo contra nós mesmos, poderíamos chegar muito longe.

A gente tem a impressão de que há um caminho para se vencer o Drag Race. Alguns jurados parecem dar muito valor para a capacidade de uma drag de parecer uma “mulher de verdade”. Você não acha que isso vai contra o espírito de ser drag?

O critério não é “parecer mulher”, na verdade. É o carisma, individualidade, coragem e talento. E se você tem essas características… Se você pegar para olhar aquela primeira foto do episódio de estreia, que se tornou célebre, há uma ampla variedade de garotas e, tipo, quais delas parecem amapôs? Ter cara de amapô não é garantia de vencer. Já tivemos todo tipo de vencedora, e as garotas mais icônicas que não venceram mesmo assim tornaram-se mega-hiper-estrelas, e elas não têm necessariamente cara de amapô, eu diria. Elas são personagens.

Ter cara de amapô pode ser parte disso.

Para algumas, é. Mas nunca para mim. Eu sempre fiz o que eu achava que era interessante. Eu sempre fiz exatamente o que provocava minha fantasia. Parecer mulher nunca foi o critério para mim. O critério sempre foi fazer drag. E drag não é específico de um gênero. Drag é drag. É o exagero.

No segundo episódio da oitava temporada de Drag Race você eliminou duas drags, Laila McQueen e Dax Exclamationpoint. Isso só havia acontecido uma outra vez na história do Drag Race. O que foi tão fraco na batalha que elas travaram quando dublaram “I Will Survive”, de Gloria Gaynor?

Aquilo é o básico, a primeira música que se aprende a dublar é “I Will Survive”, de Gloria Gaynor. E todos os seres humanos que estão vivos hoje em dia conhecem a letra dessa música, de tanto que ela toca. Daí elas chegam lá e, “que merda é essa? Você não sabe a letra de ‘I Will Survive’?” Aquelas duas vacas precisavam ir pra casa. Eu ouvi teorias de que “ah, eles planejaram aquilo”. Bicha, a gente não planejou aquilo. Você viu a performance? Foi um horror.

Você tinha eliminado Naysha Lopez no episódio anterior. Por que você decidiu trazê-la de volta?

Porque ela é maravilhosa. Ela tinha acabado de sair, e eu pensei, “quer saber, você merece outra oportunidade”.  Eu vejo os vídeos de inscrição das meninas a vários anos. Thorgy tentou entrar em todos os anos. E, finalmente, dessa vez, o vídeo de inscrição dela mostrava que ela estava pronta. Mas por que eu trouxe Naysha de volta? Porque eu quis. Porque o programa se chama RuPaul’s Drag Race, caralho. [risos]

Drag sempre foi uma questão de brincar com a linguagem, desmontá-la e derrubar barreiras, e no entanto atualmente o discurso na internet se dedica a criar demarcações na linguagem e definir o que pode, ou não pode, ser dito. O que você acha disso?

É idiota. Essas pessoas são burras, e isso é idiota. Quando eu digo “gente, eu amo cachorro-quente”, não quer dizer que eu realmente amo um cachorro-quente. Até porque o amor não tem nada a ver com salsicha. É só a linguagem. É um estado de espírito. Você presume que o que eu quis dizer é que eu gosto muito de cachorro-quente e gostaria de comer um agora. Esse é o propósito. Mas se você tem alguns objetivos em mente e quiser se aproveitar da minha frase, sem dúvida você poderia dizer “Meu Deus! Você ama cachorros-quentes? Como assim? Você quer se casar com um cachorro-quente? Você quer enfiar um cachorro-quente dentro de você?”. Tipo, “Querida, não foi isso que eu quis dizer, e você sabe que eu não quis dizer isso, e você só está usando isso porque você tem um objetivo em mente de chamar atenção para sei lá o quê”.

Como é então que você interpreta terem tirado a vinheta com “She-Mail” do programa por causa das reclamações de transfobia?

Não sei. Sabe, não fui eu quem resolveu isso. A rede tomou essa decisão, e você teria que perguntar para eles por que eles fizeram isso, mas eu não tive nada a ver com isso.

Você achou que não valia a pena comprar essa briga?

Assim, a intenção por trás daquela vinheta era fazer um trocadilho, com a intenção de divertir e apreciar a linguagem. Eu falei há pouco sobre as almas doces e sensíveis que descobrem esse mundo, e daí descobrem que a vida é uma trapaça cruel. A primeira fase é raiva. Depois a amargura. A terceira fase é o riso, a irreverência, e compreender que “ah, eu posso me divertir. Não leve isso tudo tão a sério. Fique numa boa”. Então faça um trocadilho, transforme o sentido de uma expressão, desenhe um bigodinho na foto. A gente não tem que respeitar o cerimonial, e não temos que levar as palavras tão a sério. Nós levamos os sentimentos a sério e as intenções a sério, e a intenção daquela vinheta estava longe do ódio. Mas se você quer atirar para todos os lados e você está em busca de razões para reforçar sua posição de vítima, sua própria percepção de si mesmo como vítima, você vai buscar qualquer coisa que vai reforçar isso.

Como você vê a relação entre fazer drag e a comunidade trans?

Acho que esse assunto é um tédio. Eu não quero falar muito sobre isso porque todo mundo faz essa pergunta. Pode parecer que não, mas são duas coisas completamente opostas. Nós rimos da identidade. Trans levam a identidade muito a sério. Então estamos nos dois extremos opostos dessa escala. Para um leigo, isso é tudo muito parecido, mas na verdade não é.

Certo. Mas assim, também é complicado, porque…

Eu não acho que é complicado. Algumas pessoas levam a identidade muito a sério. Eu não. Eu prefiro rir da identidade e brincar com ela. Eu posso vestir um terno ou uma roupa de marinheiro. Eu posso me vestir de mulher. Eu posso me vestir como uma mulher masculina, aliás, como no nome do meu novo disco (Butch Queen). Eu faço o que der na telha. Todas as vivências com que aprendi e todos os mestres elevados que você estudar dirão a mesmíssima coisa: não se deve levar a vida a sério. A maioria das pessoas são burras pra caralho. Se você observar a maneira como votam e a maneira como comem, você percebe que as pessoas são burras. A gente pode ficar falando sobre gente burra ou a gente pode ficar junto de gente inteligente que sabe se divertir e não fica se preocupando que o que as pessoas burras estão fazendo. Não vale a pena. Eu digo isso pra você, que é um carinha inteligente: não gaste seu tempo mexendo com gente burra, ou tentando compreendê-las, ou tentando educá-las. Não dá certo. É uma situação em que todos perdem.

Como você acha que a função de fazer drag mudou?

A função não mudou. Ela é a mesma desde o início dos tempos, quando xamãs, feiticeiros e bobos da corte faziam drag. Essa função é lembrar a cultura que ela não deve se levar a sério. Lembrar que você não é a camisa que você está vestindo ou sua afiliação religiosa. Você é uma extensão do poder que criou o universo inteiro. Você é Deus fazendo drag. Você está vestindo essa fantasia que é seu corpo, que é temporário. Você é eterno. Você é pra sempre. Você não muda. E isso tudo é um sonho que você está tendo. Então não se apegue. Faça amor. Ame as pessoas. Seja gentil. Coma cachorros-quentes. Dance. Viva. Ame. Cague tudo. Está tudo bem. Não dá pra cagar tudo de vez porque você é eterno.

Há toda essa discussão agora sobre como a TV se tornou mais diversa porque hoje há tantos canais diferentes, há programas na internet, há podcasts. Você acha que há mais oportunidade agora do que havia no começo dos anos 1980, quando você surgiu?

Há mais oportunidades porque há mais veículos onde você pode ter voz. Mas, dado isso, todo mundo também tem uma voz, e a voz de todo mundo é tratada com a mesma importância que a pessoa ao lado. Então há muito mais oportunidades, mas o campo está tão, tão lotado. Você tem que ser muito, muito diferenciado para conseguir se destacar. E quando você percebe quem é o grande público e qual é seu DNA intelectual, você para pra pensar, pelamor, será que eu quero ser a pessoa mais popular? Eu quero ser alguém que não causa desconforto no Zé da Esquina? Porque eles se sentem desconfortáveis com qualquer coisa.

Você acha que é verdade que os públicos se tornaram mais segmentados?

Sim, com certeza, o que não é necessariamente uma coisa boa. Quando eu estava nas danceterias de Nova York, eu saía todas as noites. Eu ia para quatro ou cinco clubes todas as noites, às vezes seis, e em todos esses clubes havia gente do centro, gente da periferia, negros, brancos, héteros, gays, todos estavam lá. E isso era tão excitante! E não havia vergonha. Não havia essa tensão hostil porque nós estávamos todos misturados. Mas, conforme os anos 1990 chegaram, as pessoas começaram a se segmentar em seus pequenos nichos, e eu acho que isso era muito indicativo do que estava acontecendo no resto do mundo. E nós estamos testemunhando isso na TV agora. Acho que é um ciclo pelo qual os seres humanos passam.

O que você acha que mudou?

Essa é minha teoria malévola: que, quanto mais e mais pessoas se tornam narcisistas e tornam-se autoanalisadas ou fazem terapia, mais suas questões pessoais tornam-se onipotentes, e elas passam a querer que o mundo inteiro saiba, “Minhas questões pessoais são importantes, caramba, e então eu preciso ficar rodeado de pessoas que me compreendam.”  Ao invés de fazerem o contrário, e resolverem seus problemas de dentro para fora, elas querem que o exterior reflita quem elas são. Eu estou criando essa teoria conforme eu vou falando, mas acho que a resposta é por aí. Ela tem a ver com a Geração Eu, a geração narcisista que precisa fazer com que seu entorno reflita quem eles acham que são.

Qual é a importância da história para se fazer drag? Você acha que há um conflito de gerações com esses jovens que chegam e não conhecem as referências originais, mas conhecem o que foi criado com base nessas referências?

Sim, tradicionalmente drag é uma máquina de sampling. Nós sempre juntamos pedacinhos para montar uma história maior. É quase como uma mensagem criptografada. Para os jovens gays antes da década de 1990, e sempre, nós tínhamos que falar em código. Nós tínhamos que falar de uma maneira que não nos descobrissem. E muito disso veio na forma de referências, imagens, bordões, um duplo sentido. E essa é a tradição do jovem excluído – sua tribo vai descobrir você quando você emite uma dessas mensagens. No vídeo de “Supermodel” nós mostramos a lenda urbana de Diana Ross em Brewster-Douglass com as Supremes, como elas se conheceram. Nós mostramos Sunset Boulevard. Mahogany está nele quando ela olha no espelho e passa batom no espelho. Está tudo ali.

É uma tradição, será que os jovens vão captar? Eles não têm que captar tanto hoje em dia porque não acontece mais essa trilha gay underground em que, se descobrirem você, vão expulsá-lo da cidade. Eles não têm que criar mais uma linguagem secreta. Mas, no Drag Race, a gente ainda coloca isso ali porque é nosso dever e nossa tradição se comportar assim. Nós damos uma piscadela com referências que nós sabemos que vão ser captadas por quem conhece a história.

Você acha que é importante a geração mais nova aprender essa história?

Não sei. Eu não me importo muito com eles. Na verdade, eles estão por conta própria. Eles vão se virar. Não tem como a gente forçar eles a dizerem, “uau, isso é importante”. Os seres humanos não aprendem assim. Eu me lembro de Nova York, eu me diverti tanto lá. Eu gostaria que todos os jovens pudessem vivenciar aquilo? Sim! Sim, eu gostaria. Eu vou mostrar como as coisas funcionam lá para eles? Não, bicha, você que se vire. Você que descubra sozinho.

Há muitas narrativas LGBT recentemente: Carol, A garota dinamarquesa. O que você pensa sobre elas?

Eu adorei Carol. Achei um filme lindo. Adorei a história. Quanto a A garota dinamarquesa, eu só consegui ver as perucas, que eram horríveis. Eu adorei aquela hora que ele se monta e fica parecendo o David Bowie. Ele está num terno que tem pernas super largas, cintura apertada, e não está vestido com roupas de mulher, ele está vestindo um terno masculino. É lindo. Vale a pena ver o filme só por essa cena. Qualquer pessoa que vista aquele terno estilo Bowie… Deus do céu, que lindo.

David Bowie foi uma de suas grandes influências. Você chegou a encontrá-lo?

Encontrei sim. Foi num jantar e, quando eu vi que ele estava lá, eu tive que pedir licença e me retirar para a biblioteca dessa casa metida a besta. Na verdade, é uma casa que hoje pertence a David Geffen, mas não era dele na época. Eu me retirei para respirar um pouco, sabe? Relembrando, acho que ele foi atrás especificamente porque ele sabia que eu tinha me escondido ali. Ele disse “oi” e apertou minha mão. Eu disse “Oi, que bom conhecer você”. Nós conversamos um pouquinho. Daí eu realmente fugi da festa e não me sentei na mesa de jantar com os outros porque eu tinha que descer para o andar de baixo e extravasar toda a gritaria e choradeira que se seguiu.

O que ele significa para você?

Quando eu falei de almas doces e sensíveis, as pessoas que fazem parte da minha tribo, lembra? E de como é difícil seguir seu coração nesse plano, nesse mundo linear, básico, medíocre e hipócrita? Encontrar esses faróis nessa escuridão toda é uma dádiva. E ele era isso. Ele ainda é. Por meio de sua música e sua arte, como ele projetou sua imagem. E ele nunca foi arrogante. Parte do credo do rock é se vestir de preto e se cobrir todo e fumar e se tornar exclusivo. Ele não era assim. Ele sempre foi aberto. É por isso que a minha geração de garotos o seguiu. Porque era uma continuação da exploração dos anos 1960 e 1970.

Tem alguém que chame sua atenção na cultura pop de agora?

A única pessoa que me interessa na cultura pop agora é a juíza Judy do programa Judge Judy. Só. Por causa da legitimidade – ela vem mantendo a história da humanidade. Há um certo decoro e civilidade que mantém nossa sociedade coesa, e muito disso vem se desfazendo nos últimos 20 anos. Mas quando você assiste ela durante aquela hora à tarde, ela se lembra disso e diz “Não! É assim que se faz!”. E eu adoro! Ela se lembra das regras de civilidade. Porque se você chegou num ponto em que você precisa ir para a corte para descobrir o que deve fazer, daí você perdeu seu direito de ser arrogante. Você precisa de alguém. Você precisa de um mediador. E ela é essa pessoa.

Você falou do seu programa novo, Gay for play. Você pode falar um pouco mais sobre isso?

É um programa de perguntas sobre cultura pop, em que os competidores ganham 5 mil dólares em dinheiro e prêmios de celebridades que estão lá para ajudá-los a responder as perguntas, se decidirem que devem dar ouvidos. É engraçado, sexy, irônico, irreverente. É a estética gay feita por gays. Por causa do nosso programa e das mídias sociais, o vocabulário gay foi adotado pela cultura pop mainstream. Todos os blogs agora falam com a voz da cultura gay. Sex and the City era um programa que tinha uma estética gay feita por mulheres hétero. É por isso que fez sucesso. E tinha Nova York como protagonista. Então a gente decidiu pegar nossa estética gay e colocá-la num game show e fazer isso do jeito certo. Esses outros programas que chupinham pedaços do nosso programa? Sirvam-se. Nós temos de sobra. Você pode chegar e tentar fazer. Você nunca vai conseguir fazer como a gente.

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3 comentários

Camila Maxi

Demais! Fiquei maravilhada com o Ru quando assistir o primeiro ep. de Drag Race. Inteligente, sensível e batalhador. Obrigada pela entrevista maravilhosa.

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