Traduzido do artigo de Tovah para o site Autostraddle
“Já aconteceu das pessoas pensarem coisas esquisitas sobre minha sexualidade que sem dúvida estão conectadas com minha deficiência física, mas o que se dava a entender não era que eu não tinha sexualidade – mas sim que ela era toda cagada”, afirma Lyric Seal, também conhecida como Neve Be, escritora queer, artista performática e estrela do cinema adulto, em entrevista para o site Autostraddle. “Muitas das pessoas que trabalham com deficiência física e sexualidade na mídia querem que o objetivo seja: vamos sexualizar as pessoas com deficiência; vamos garantir que todos saibam que eles têm corpos. Eu acho que, não, é mais complicado que isso.”
Por que é que, quando lida-se com as vivências de marginalização sexual, é tão comum que sejamos levados para armadilhas de repúdio? Levados a renunciar, desprezar e negar as trilhas confusas e cheias de carne que nossos corpos já seguiram, e podem querer seguir novamente? Quando confrontados com questões de sexo e deficiência, a super-ênfase em se os deficientes estão sendo ou dessexualizados, ou hipersexualizados, é uma crítica social importnate e necessária, e no entanto ela também reforça a noção de que a vivência sexual dos deficientes só oferece vislumbres sobre a vivência da discriminação. Deixando mais claro: mesmo nos círculos mais sexualmente progressistas, as pessoas com deficiência física raramente são consideradas experts em qualquer outra coisa além do preconceito contra pessoas com deficiência – menos ainda em como fuder e ser fudido.
Segue, então, uma conversa que pretende ir além da arquitetura erosiva do “será que conseguem/será que não”; uma conversa maior que os roteiros super-ensaiados a respeito da deficiência e sexualidade, que levam a conclusões previsíveis e rasas sobre opressão e expressão corporal. Conclusões que avaliam o valor das pessoas com deficiência por sua capacidade de redefinir as normas a partir da periferia, ao invés de oferecer conhecimento alternativo a partir do centro.
Cadeiras de roda, especificamente, carregam um poder simbólico tremendo. Como o ícone que representa a deficiência num mundo que a discrimina, o corpo da cadeira de rodas (e seu usuário) é esmagadoramente associado à rejeição e estranhamento. Explorar a significância erótica das cadeiras de rodas, no entanto, não apenas é uma atitude revolucionária em direção à inclusão, é também uma oportunidade de recusar as escolhas limitadas que estão disponíveis à narração sexual. É habitar por vontade própria um espaço abandonado pelo preconceito, negado pelo preconceito, para desorganizar o poder desse preconceito de definir.
Com essa intenção, conversei com três cadeirantes queer – Seal (HARLOT Magazine, Slumber Party Series), Stella Palikarova (Deliciously Disabled) e Bethany Stevens (Crip Confessions) sobre os significados do companheirismo, do serviço, do toque, da dor, da fantasia e muito mais.
Como o romance ou o sexo influenciam sua relação com a cadeira de rodas?
Bethany Stevens: Minha cadeira de rodas é um instrumento de auxílio sexual, o que soa como uma maneira clínica de dizer que eu tento trepar com ela e trepar em cima dela. A despeito dos meus esforços de descobrir maneiras de me penetrar com pedaços dela, os ângulos entre minha vagina e suas partes nunca dão certo. Ela funciona maravilhosamente para auxiliar minhas atividades sexuais com outras pessoas, as pessoas conseguem apoiar as pernas na minha cadeira enquanto eu penetro várias partes de seu corpo. Minhas rodas maiores são mais altas que meu assento, então as pessoas conseguem se inclinar sobre elas quando me cavalgam, e assim não jogam o peso de seu corpo sobre mim.
Lyric Seal: Eu tenho duas cadeiras de rodas. A mais poderosa chama-se Gianna, e é cor-de-rosa choque metálico. Ela é feminina e alta. Ela é quente e rápida, e no entanto, tem uma performance bastante sutil. Minha outra cadeira é o Michelangelo. Ele é um garoto mais perdido, nós nos aventuramos juntos há nove anos, e portanto eu o trato com muito respeito. E, apesar de envolvê-lo nas coisas sexuais que eu faço, eu não o vejo como um sex toy. E ninguém mais pode usá-lo do jeito que eu o uso. Nós podemos usá-lo como um instrumento auxiliar em nosso momento juntos, e também podemos usá-lo como um dispositivo sensual, mas ele é meu parceiro, não o parceiro de outros. Minha relação com ele tem sido muito romântica.
Stella Palikarova: Eu sempre trato minha cadeira no feminino, porque ela é veloz e eficiente. Eu tento pensar em maneiras de torná-la sexy, ou maneiras de fazer estar na cadeira de rodas algo sensual. Danças eróticas são tudo.
Stevens: Eu também danço bastante, e minha cadeira é acariciada como parte da dança erótica. Isso parece excitar outras pessoas, e acho que isso deve acontecer porque o quadro da cadeira de rodas serve como um substituto visual genital para meus parceiros – eles sentem-se acariciados quando minha mão desliza acima e abaixo pelo quadro.
Seal: Eu tenho duetos e danças coreografados com minha cadeira, que são primariamente sobre algum tipo de relação de serviço eterno. O que significa sempre ter uma relação desbalançada ou sempre ter alguma função para outra pessoa? As pessoas que se identificam como passivos submissos adoram isso. Acho que ser capaz de antropomorfizar minha cadeira dessa maneira sempre foi muito útil para mim, quando imagino que não tem que ser um fardo estar eternamente servindo outra pessoa.
Palikarova: Você também pode fazer com que a cadeira de rodas faça parte das preliminares. Nem todos se deslocam de suas cadeiras de rodas para suas atividades sexuais por causa de sua deficiência. Para muitas pessoas, a cadeira de rodas é o local de seu prazer sexual. Pessoalmente, eu gosto de incorporar a cadeira em jogos de representação. Como se minha cadeira fosse meu trono ou minha carruagem, e meu parceiro está me idolatrando quando estou sobre ela. Eu me lembro de uma brincadeira sexual em que a cabeça da minha parceira não podia ficar mais alta que a minha. Foi ótimo!
Seal: Com minha parceira principal, nós fantasiamos e interpretamos aos montes. Eu sou um crocodilo de estimação, somos tigresas, eu também posso ser um garoto adolescente…
Sua cadeira de rodas realiza alguma função nessas cenas?
Seal: Sabe cachorro de seriado?
Aqueles que sabem fazer tudo?
Seal: Isso! Então, o cachorro é tratado como ser humano, e seus colegas de cena sempre são seres humanos, e isso cria toda uma situação absurda e incrível e excitante e esquisita nesses programas. Eu sinto como se minha cadeira interpretasse personagens humanos, personagens-cadeira, personagens de madeira, personagens-parede, personagens-árvore, personagens animais. Ele é uma extensão de mim.
Stevens: Uma das minhas fantasias é fazer sexo com minha cadeira de rodas. Ela é uma extensão do meu corpo, e portanto existe no limiar da fantasia masturbatória. Suas linhas são sensuais, eu sento na cara dela todos os dias o dia inteiro, portanto faz o maior sentido que, quando eu estou explorando como usar minha cadeira de rodas nos jogos sexuais, eu busque encontrar maneiras em que a própria cadeira possa me dar prazer. Minha cadeira de rodas está comigo nessas viagens, mas ela não é ativa nem passiva, se for pra definir, ela é muito versátil!
Palikarova: Eu também adoro bondage. Já me disseram que é esquisito, porque de certa maneira eu já estou “amarrada” à minha cadeira de rodas, a não ser que alguém me tire de cima dela fisicamente. Então o que significa que eu estou interessada nesse tipo de jogo?
Stevens: A única vez que realmente faz sentido dizer que alguém está “preso a uma cadeira de rodas” é quando o cadeirante está amarrado a sua cadeira de rodas, num contexto de BDSM consensual. Cadeiras de rodas podem ser uma parte maravilhosa no processo de se amarrar alguém – simples e perfeito.
Quando se trata de jogos de poder, as pessoas presumem que vocês serão as passivas ou submissas porque vocês são cadeirantes?
Stevens: Dentro das comunidades BDSM, muitos assumem que nós temos que ser as passivas por causa da dúvida ridícula de como nós seríamos capazes de ter a força para sermos as ativas. Com toda a negociação que é necessária para se ter uma vida BDSM saudável, parece lógico que a deficiência se encaixaria nisso – já que na maioria das vezes nós temos que negociar o que nossos corpos e mentes conseguem fazer ou não. Se as pessoas abrissem suas mentes, elas aprenderiam que o poder não existe na fisicalidade, ele existe na personalidade e na expressão. Eu posso dominar quase qualquer pessoa sem jamais ficar de pé, sem ser mais alta que as pessoas, e sem usar quaisquer dos marcadores típicos da dominância.
Seal: Como eu sou feminina, negra, e visivelmente deficiente, especialmente como cadeirante, as coisas vão além de ser considerada passiva. É quase como se me vissem como uma boneca. Eu me identifico como multigênero, e, apesar de não sentir que fui dessexualizada, eu já senti como dói ser infantilizada. Já aconteceu de pessoas ativas de múltiplos gêneros e pessoas masculinas decidirem, sem meu consentimento, interagir comigo de maneiras que eram muito protetoras, ou se adiantarem às minhas necessidades, ou serem cavalheiros demais. Não me leve a mal, assim, se você iniciou o jogo, com aquele sorriso torto, fumando um cigarro encostado na parede e uma jaqueta de couro… e eu passo a ser a garota num baile dos anos 1950… assim sim.
Palikarova: Geralmente eu gosto mais de ficar no lado submisso com minha parceira, mas, surpreendentemente, isso pode deixar as pessoas desconfortáveis, porque aparentemente minha deficiência física já me coloca numa posição vulnerável. Muito da fisicalidade do sexo vem do que minha parceira consegue fazer. Então, se você gosta de ser submissa e você tem uma deficiência, as pessoas pensam que estão se aproveitando de você.
Como sua maneira de pensar sobre deficiência, sexo e sexualidade se desenvolveu com o passar do tempo?
Seal: Minha deficiência cada vez mais se torna uma parte integral de como eu interajo com as pessoas no nível de gênero e no nível sexual. A maneira como eu romantizei a fisicalidade teve que ser forjada tendo por base a realidade do meu corpo e esse é um papel que minha cadeira teve que ocupar de uma maneira incrível – me ajudando a dizer, OK, essa é a maneira como você se move romanticamente pelo mundo, essa é a maneira como você se move sensualmente pelo mundo etc. Eu sinto que minha relação mais duradoura, a com essa cadeira, o Michelangelo, é uma relação de romance e parceria.
Stevens: Sexualizar os equipamentos de apoio de uma pessoa parece ser parte da jornada de empoderamento sexual de uma pessoa com deficiência, pelo menos para alguns. Por muitas luas eu quis me separar da minha cadeira de rodas e da minha deficiência, porque eu precisava destroçar toneladas de preconceito internalizado contra deficientes. Meu processo de me desfazer desse lixo não acabou, mas pelo menos agora eu vejo o valor das linhas da minha cadeira de rodas, e como ela se move com meu corpo. Recentemente eu comprei uma cadeira de rodas nova, depois de esperar por um ano que o seguro aprovasse a compra, e descobri que era como explorar o corpo de um novo amante.