Jornalista lança livro que analisa todos personagens LGBTS em novelas da rede Globo

“Bicha (nem tão) má - LGBTs em novelas” faz levantamento inédito sobre o assunto e conclui que, antes de tudo, folhetins educam público sobre o tema

por Marcio Caparica

Há quem diga que hoje em dia “só tem gays nas novelas”, mesmo que, em comparação, os personagens heterossexuais ainda sejam uma maioria esmagadora. De qualquer modo, é inegável a constatação de que os LGBTs passaram sim a ter mais visibilidade na TV, não apenas na brasileira, mas também na americana.

Bicha (nem tão) máNo entanto, nunca havia sido feito um levantamento detalhado sobre a presença de LGBTs nas telenovelas brasileiras até esta quinta-feira (30), quando a jornalista Fernanda Nascimento, mestra em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), lança em Porto Alegre o livro Bicha (nem tão) má – LGBTs em Novelas.

O livro não apenas mapeia, como discute questões de representatividade nestas tramas no período entre 1970 e 2013, quando foi ao ar a novela Amor à vida, da rede Globo, que apresentou o primeiro beijo entre pessoas do mesmo gênero no horário nobre da emissora. Por e-mail, o LADO BI conversou com a autora e debateu algumas questões que o livro apresenta. Leia:

LADO BI – Bicha (nem tão) má mapeia 126 personagens LGBTs  presentes em 62 telenovelas, entre 1970 e 2013. Nesse período, qual foi a maior mudança na maneira de retratar LGBTs, desconsiderando-se o beijo de Félix em Amor à vida?

Félix e Niko em Amor à vida

Félix e Niko em Amor à vida

Fernanda Nascimento – Desde a primeira representação a participação de LGBTs nas telenovelas as mudanças foram inúmeras. Em mais de quatro décadas, as personagens LGBTs passaram de uma representação praticamente assexuada – sem constituição de relacionamentos – para uma vivência de sexualidade que inclui o reconhecimento de direitos sexuais – como o casamento e o direito à adoção –, e o reconhecimento social da necessidade de combate ao preconceito e à discriminação.

As mudanças foram inúmeras e graduais, mas alguns padrões se mantém, como a hegemônica presença de homossexuais masculinos, de LGBTs brancos, de pouca visibilidade de transexuais e travestis, de regulação da sexualidade lésbica – muito mais adequada a norma heteronormativa do que os gays.

Mais alguns números: quantos gays, quantas lésbicas, quantos bissexuais, e quantos transgêneros foram retratados nas novelas da Globo que você mapeou?

Das 126 personagens: 76 são gays; 24 são lésbicas; 13 homens bissexuais; 3 mulheres bissexuais; 8 mulheres transexuais; 1 travesti e uma personagem com identidade de gênero e orientação sexual não definida (Sarita Vitti, em Explode coração).

Antes de Félix, os únicos gays que foram os vilões principais das novelas apareceram em O RebuRoda de fogo e Mandala. Qual a razão da resistência em se colocar gays ou lésbicas como vilões? E por que a sexualidade desses personagens não ganhou proeminência na época que essas novelas foram exibidas?

O vilão Conrad Mahler, de O rebu

O vilão Conrad Mahler, de O rebu

Antes de Félix, tivemos os vilões Conrad Mahler (Ziembinski), em O rebu (1974), Mário Liberato (Cecil Thiré), em Roda de fogo (1986) e Argemiro (Marco Pamio/Carlos Augusto Strazzer), em Mandala (1987). A grande diferença da representação de Félix para as demais personagens é a centralidade da sexualidade da personagem de Amor à vida, em decorrência da maior discussão e visibilidade trazida por uma novela que se passa em 2013.

Nas décadas de 1970 e 1980 os debates sobre gênero e sexualidade eram mais silenciados, as conquistas de direitos sexuais praticamente inexistiam. Félix faz parte deste contexto. É uma personagem que tem tanta visibilidade também pela ampla problematização ocorrida com as participações de LGBTs que o antecederam. Não vejo como negativa a participação de um homossexual como vilão. Este é um papel de destaque nas telenovelas, é a personagem com visibilidade central e isso permitiu com que a homossexualidade também se torna cerne de discussões.

O documentarista David Thorpe, do documentário Do I Sound Gay?, argumenta que até o início dos anos 2000 gays eram muitas vezes os vilões perfeitos porque grande parte das tramas de Hollywood gira em torno do casamento, e, como LGBTs viviam fora desse objetivo, tornavam-se antagonistas ideais. Por que o mesmo não aconteceu nas novelas brasileiras?

É difícil fazer um paralelo porque se tratam de tramas com uma construção muito distinta. Enquanto os filmes trabalham com uma perspectiva de exibição de 2h, as telenovelas são exibidas ao longo de nove meses. É uma visibilidade muito diferente. Assim como é muito diferente o fato da narrativa de novelas ser, por natureza, aberta para mudanças. Ou seja, a forma como o público lê as novelas faz com que a narrativa continue dentro do previsto ou altere o roteiro. O mesmo não ocorre com os filmes. Então, diria que dentro da pesquisa realizada no livro não é possível dizer que há uma semelhança com a análise fílmica norte-americana de Thorpe. 

De que maneira a homossexualidade e a transgeneridade são mais aceitas nas novelas brasileiras? Alívio cômico? Motivo de medo? Tema educacional?

Acredito que em alguma medida a participação de mulheres transexuais e homens homossexuais, com uma performatividade de gênero “pintosa”, possa servir como um alívio cômico em algumas narrativas. O que nos remete a uma questão mais profunda: porque a bicha é motivo de riso? Por que sair fora da norma, ter uma performatividade de gênero que destoa das atribuições designadas para cada gênero é motivo de riso – no caso de homossexuais masculinos? Não há um paralelo dentre as lésbicas “caminhoneiras”, estas são muito pouco visíveis e tem uma sexualidade muito mais regulada dentro de padrões estabelecidos pela heteronormatividade.

Não vejo o temor a respeito da homossexualidade, com exceção dos grupos conservadores. Já o temática educacional é bastante presente. Ao apresentar personagens LGBTs, discutir direitos sexuais, preconceito, sexualidades e identidades de gênero não normativas, a novela é sim, educacional.

Diria que os temas coexistem. Ainda que nos últimos anos tenhamos tido um aumento da discussão em nível educacional, o alívio cômico existe e o medo é apresentado por setores conservadores.

Você afirma que “é possível perceber a inexpressiva presença de negros dentre as personagens LGBTs, a maior regulação das sexualidades lésbicas e a pouca participação de travestis e transexuais”. LGBTs só são aceitos na televisão na medida em que são heteronormatizados e higienizados?

No caso das personagens lésbicas sim. Há poucas personagens “caminhoneiras”. As lésbicas são numericamente inferiores e têm uma sexualidade mais regulada. Já os homens homossexuais têm uma diversidade maior, mesmo tendo nos últimos anos passado por um processo de adequação da performatividade de gênero para uma norma hétero. As personagens travestis e transexuais são muito poucas e sim, passam por este processo de higienização. Se refletirmos sobre a raça, há uma clara desigualdade e discrepância de representação. Apenas quatro personagens são negras. Não acredito que as personagens só sejam aceitas se forem heteronormativas, mas há uma clara regulação da visibilidade. Nos termos do pesquisador Stuart Hall: uma visibilidade regulada.

Você acha que a representatividade de LGBTs em novelas colabora para que LGBTs sejam melhor tratados na vida real? A função educadora da novela acontece de maneiras diferentes entre classes altas e classes baixas?

Certamente colabora. Os estudos de recepção realizados a respeito de LGBTs e telenovelas demonstra que uma boa parcela da população provavelmente não se interessaria por estas temáticas, não consumiria produtos como filmes e livros sobre gênero e sexualidade, mas se informa através das novelas. Na sociedade brasileira a novela é o principal produto de entretenimento e responsável por uma grande tematização do assunto. Não é possível afirmar se ocorre de forma distinta em relação à classe. Todos os estudos realizados até o momento não fazem este recorte e a minha pesquisa trabalha no âmbito do texto.

Téo Pereira, de Império

Téo Pereira, de Império

Depois do beijo de Félix em Amor à Vida, tivemos o blogueiro Téo Pereira em Império, excessivamente caricato, e a marcha-ré dos personagens gays de Babilônia. Como você vê esse aparente retrocesso e temor contra os personagens LGBT depois que a “grande barreira” do beijo gay no horário nobre foi atravessada?

Não vejo como um grande retrocesso. Mesmo com a participação de LGBTs dentro de padrões heteronormativos, a participação de personagens “pintosas” não deixou de existir nestas quatro décadas. E a diversidade de gênero e sexualidade, me parece, deve ser celebrada. As “pintosas” são respeitadas, tanto quanto as heteronormativas. Em Babilônia temos personagens que têm de ser percebidas a partir de seus marcadores identitários, sob risco de realizarmos uma análise superficial. O casal da trama é formado por duas mulheres, lésbicas de terceira idade. Tivemos pouquíssimas personagens desta geração. Nenhuma com este destaque. Tereza e Estela somam, em suas identidades, três marcadores que as inferiorizam: o gênero, a sexualidade e a geração. Félix tinha apenas um marcador que o inferiorizava. O momento também é bastante distinto. Temos uma reação conservadora e mais por que lutar. E me parece que precisamos manter os que conquistamos. A novela está inserida dentro deste contexto. Diria que vivemos sempre de avanços e retrocessos. Tereza e Estela não se beijaram mais na trama. Mas são personagens que discutem direitos humanos de uma forma muito aprofundada e mais ampla do que direitos LGBTs.

 

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5 comentários

Eduardo Peret

Só uma correção: houve, sim, uma extensa pesquisa sobre personagens LGBT nas novelas, realizada por mim durante o mestrado em Comunicação na Uerj, em 2003-2005. Só não tinha publicado como livro, mas tive artigos publicados sobre o tema. De qualquer forma, parabéns à autora por ter conseguido fazer um catálogo completo e uma análise aprofundada.

Fernanda Nascimento

Oi Luis Eduardo Peret, tudo bem? Então, não precisas fazer a correção. Ao longo de todo o texto faço uma referência sobre as pesquisas que me antecederam – inclusive a tua, que cito como uma das mais importantes para o campo. O livro contém um anexo com comentários de todas as pesquisas. 🙂

tom

Delícia de entrevista. Eu ousaria dizer que mesmo o meio gay mal se conhece e muitas vezes consome coisas sobre si mesmo vindas “dos heteros” (em se tratando de arte), já que não temos exatamente literatura nem arte voltada aos gays no Brasil (ok, temos, mas é praticamente irrelevante e invisivel).

pai gay

Excelente iniciativa, primeiro serve para dar uma perspectiva historica, uma cronologia, e em segundo serve para mostra que não é de hoje que tem autor tentando abordar o assunto e transgredir!

fel

o que adianta mostrar gays nas novelas se nao esta representando bem

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