Traduzido do relato de Vanessa Mártir para o site Huffington Post
Houve uma vez em que eu dei um soco na cara de uma menina porque ela me disse “Você é tão imunda quanto suas mães lésbicas”, só porque um garoto de quem ela gostava estava interessado em mim. Eu nem pensei sobre isso; eu simplesmente lhe meti a mão. E então eu a desafiei que repetisse aquilo. Ela não repetiu. Ela tinha aprendido.
Eu fui criada por um casal homossexual nos anos 1970 e 1980, muito antes do tema cair na mídia nos anos 1990 e apenas alguns anos depois de a Associação Americana de Psiquiatria ter retirado a homossexualidade da lista de distúrbios mentais em 1973.
Por anos eu ouvi que minha família vivia em pecado, que minhas duas mães eram imorais e asquerosas e que iam para o inferno, que ninguém nascia gay.
Quando eu fui para o colégio interno aos 13 anos, eu não contava para ninguém sobre minha família. Eu dizia para mim mesma que eu apenas não queria lidar com aquilo. O que as pessoas diriam? Como elas me tratariam? Eu carregava a minha própria vergonha.
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Eu me tornei órfã quando minha mãe Millie morreu nove anos atrás. Minha mãe biológica voltou a ser uma Testemunha de Jeová e agora diz que se arrepende por ter vivido com Millie por mais de 20 anos. “Les di un mal ejemplo”, diz ela. Quanta merda. Millie é a razão por que eu mantive minha saúde mental.
Compreenda, Millie era quem me amava – com um amor carinhoso, incondicional, cheio de fé. Minha mãe biológica não fala comigo há meses. Ela já fez isso tantas vezes durante minha vida – quase 39 anos. É assim que ela me pune. Ela me nega seu amor.
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Millie sempre vestia um chapéu de pano preto e um par de jeans surrados – tão surrados que o contorno de sua carteira era visível em seu bolso traseiro esquerdo, como se alguém houvesse feito ali uma marca de giz. Ela carregava consigo um chaveiro com milhares de chaves preso ao cinto no lado direito da cintura, e ela sempre tinha gotas de suor sobre seu lábio superior e sobre seu nariz castelhano pontudo, não importava qual a estação, verão ou inverno. Ela sorria exibindo a falha de seu dente quebrado, parte tão importante de seu rosto, tocava a aba de seu chapéu e dizia “Yo soy butch”, utilizando o termo em inglês para “caminhoneira”. Mas a maneira como ela dizia isso era como se ela estivesse dançando salsa, apenas com seus ombros.
Ela tinha orgulho de ser quem era, tinha orgulho de ser boricua e caminhoneira. “Yo soy del monte. Yo soy Lares.” Pelo menos era isso que ela me demonstrava – a não ser quando ela e minha mãe brigavam. E quando ela estava prestes a morrer.
Minha mãe e Millie eram vis entre si quando discutiam. Elas lançavam o ódio uma contra a outra como adagas. Mas quando minha mãe sacava sua Uzi e chamava Millie de “maricona“, Millie se encolhia. Seu lábio inferior tremia, e seus olhos se enchiam d’água. Ela batia em seu peito e gritava “¡Yo no soy maricona, coño! ¡Yo soy butch!” Sua voz se embargava, e ela chorava. “Yo soy butch.” Repetidas vezes, como se estivesse tentando convencer a si mesma. Daí ela limpava seu rosto desajeitadamente com a frente de sua camiseta laranja, pegava seu molho de chaves e saía. “Me voy pa’l carajo.“
O que devia se passar em sua mente? Como deve ter sido para ela crescer sendo lésbica nos anos 1950 e 1960 em Lares, onde a igreja Pentecostal tem raízes tão profundas quanto as mangueiras selvagens? Será que foi essa a razão para você abandonar sua querida isla, Millie?
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Uma vez eu cheguei em casa durante a primeira série e disse para ela que os outros alunos estavam querendo me bater. Ela me levou até o quintal e me ensinou a lutar, como dar um gancho e um soco no meio da cara. “Pero ten cuida’o con esas manos de madera”, ela disse sobre minhas mãos pesadas.
Quando eu desenvolvi uma obsessão por basquete, ela transformou uma roda enferrujada num aro, pregou-a numa placa de compensado e a ergueu no quintal. Depois saiu para comprar uma bola de basquete oficial da Spalding para mim.
Quando eu quis uma bicicleta, ela saiu recolhendo peças nas casas de todos seus amigos e nos terrenos baldios da vizinhança, e construiu para mim minha bicicleta multicolorida: uma roda era amarela, a outra era azul, o assento era branco e o guidão era azul-água, com a tinta descascando. Eu passeava com aquela bicicleta como se fosse a carruagem de um rei.
E quando eu contei para ela, enquanto ela murchava deitada por causa dessa merda de doença que é o câncer, “Millie, eu acho que quero escrever um livro”, ela se ergueu sobre um braço, com a respiração difícil, e disse “Pero negra, você sempre foi uma escritora”. Nessa mesma noite eu fui para casa e comecei a escrever meu primeiro romance.
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Eu visitei Millie todos os dias enquanto ela esteve no hospital. O hospital Calvary ficava a apenas quatro quilômetros de onde eu morava. Eu ficava em casa, vivendo de seguro-desemprego enquanto tomava conta de Vasialys, minha filha, que tinha apenas alguns meses de vida. Todas as manhãs eu agasalhava minha nena, carregava o carrinho e caminhava até o hospital, rezando para que Millie tivesse dormido bem, que ela estivesse vibrante e risonha, que sua respiração estivesse suave, que sua dor houvesse diminuído.
Millie havia recebido o diagnóstico de câncer de mama seis anos antes. Sua mama direita havia sido removida, e ela encarou repetidas sessões de quimioterapia. Mas a mastectomia e a químio não salvaram sua vida. O câncer já havia se espalhado para seus nódulos linfáticos quando ela sentiu o caroço durante o banho, portanto Millie já sabia que era apenas questão de tempo até que ela morresse dessa doença. O fardo da mortalidade que ela tinha que carregar massacrou sua força de vontade e sua fé, e até mesmo seu orgulho.
Ela dizia que o seio que lhe restava parecia uma almofada de borracha vazia. Ela dava tapas nele para que balançasse junto com sua pança. “Si yo fuera una mujer femenina, esto me molestaría”, ela dizia sobre a quelóide de sua cicatriz, que borbulhava e caía para um lado.
Uma vez eu a encontrei observando sua reflexão nua no espelho. Ela tocava a ferida com os dedos e mordia os lábios. Quando reparou que eu estava observando, ela riu. “Yo sí estoy gorda, negra.”
Quando eu limpava o corte, ela se fixava em meu rosto, tentando perceber alguma reação. Nojo, imagino. Eu nunca demonstrei nada disso. Essa era a mulher que havia me limpado quando eu caguei nas calças aos 8 anos de idade, quando eu tive um caso sério de diarreia. Ela me levava nos ombros quando eu tinha apenas 3 anos e minha mãe nos fazia ir a pé para o Knickerbocker Park, a 3 quilômetros de casa. Ela havia me ensinado como encarar a vida. “¡Con puños, Vanessa! ¡Con puños!”. Eu não fazia mais que fazer para ela o que ela havia feito por mim desde que eu tinha dois anos de idade. Eu estava amando-a.
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Um dia, quando eu cheguei no hospital, ela estava choramingando sobre seu travesseiro. Eu fui correndo até ela. “O que está acontecendo? ¿Te duele algo?” Eu tentei alcançar o botão para chamar a enfermeira, mas ela agarrou meu braço com a mão que ficou para sempre inchada depois da mastectomia, como uma luva de látex inflada.
“Não, eu estou OK.” Ela limpou a lágrima que se agarrava à ponta de seu nariz. “Oi, negra.” Ela me beijou e me abraçou. Ela tremia. “Pásame la nena.” Eu coloquei Vasia em seus braços, sentei-me sobre a cadeira ao lado da cama e observei.
Eu sabia que era melhor não fazer perguntas. Millie não falava muito quando ficava abalada. Ela tinha um tempo próprio. Eu peguei dela minhas tendências de processar tudo a meu tempo.
Depois de ter bebido um café (con leche y dos azucar) e comido o doughnut à antiga que eu lhe trazia todas as manhãs, depois de segurar Vasialys e brincar com ela, depois de explicar para Vasia o que estava acontecendo em seja que programa de TV que ela estava assistindo, e entre suas histórias sobre sua vida e amor e como Vasia era abençoada por ser minha filha, “porque yo la crié“, ela olhou para mim. “Tengo miedo, negra“, ela disse.
“Por que? Do que é que você tem medo?”
“Ay, na’. Não é nada.”
Eu peguei o controle remoto e desliguei a TV. Eu era a única que tinha a permissão de fazer isso. Qualquer outra pessoa teria recebido um olhar gélido e um objeto jogado sobre sua cabeça, qualquer coisa que estivesse próximo a ela. Eu ergui uma sobrancelha e aguardei.
Ela olhou para baixo, para Vasia, que dormia sobre a cama, a seu lado. Ela arrumou o macacãozinho e passou as mãos nas costas da menina. Sua mão tremia. E então ela disse, “E se for verdade? Que eu vou para o inferno?”
“Como assim?”
“Vanessa, la Biblia dice – “.
Eu a interrompi como eu sempre fazia quando ela falava de Bíblia. Esse tipo de conversa nunca acabava bem entre nós. Eu ouvia por um tempo, rolando os olhos. E então eu ficava frustrada e começava um sermão sobre como a Bíblia não chegou na Terra via fax, que ela era tendenciosa, machista, e contraditória. Millie me chamava de “ateia”, e nós encerrávamos a discussão. Mas essa conversa parecia diferente, então eu fiquei quieta, ou pelo menos tentei. “Millie, você não vai para o inferno.”
“Como é que você sabe?” Ela fixou os olhos para além da janela, uma mão ainda acariciando a cabeça de Vasia.
Eu me inclinei e passei os dedos pelos cabelos de Millie. Ele já havia crescido de volta desde sua última sessão de químio, mas ele agora era cinza e áspero, não grosso e negro como costumava ser. Ela começou a chorar suavemente. Eu segurei sua cabeça contra meu peito até que ela se acalmasse.
“Como Deus poderia mandar você para o inferno? Você me mostrou o que é o amor, Millie.”
Ela afastou meu cabelo de meu rosto. “Tú eres mi negra. Você sabe disso?”
Eu segurei as lágrimas. Ela precisava que eu fosse forte. Essa não era a hora de me perder no meu pesar. “Você está mesmo aterrorizada, não está?”
“Sí, negra. Eu vivi em pecado.”
“¿Quién dice? Que Deus é esse de quem você está falando? O Deus que eu conheço ama você.”
“Sí, pero la Biblia dice que yo viví en pecado, Vanessa, y Papá Dio’ não perdoa essas coisas.”
“Que pecado, Millie?” Eu estava ficando fora do sério. Eu me sentia perdida. Eu sabia que não conseguiria fazer nada para salvá-la do que ela havia aprendido quando era uma criança em Lares. Seus três irmãos eram pastores, e um em particular era especialmente vaidoso em seu fervor porque havia encontrado Deus depois de 20 anos de alcoolismo. Se ele era capaz de se redimir com Deus, qualquer um seria, ele pensava. Além disso havia a mãe de Millie, que havia morrido lhe implorando, “Deja esa vida, hija. Te quiero ver en el cielo un día.“
O desamparo tomou conta de mim. Nós não falamos mais sobre isso. Algumas poucas vezes eu a encontrei chorando baixinho no banheiro e soluçando sobre seu travesseiro. Às vezes, antes de um exame ou depois de uma noite muito difícil, ela confessava estar com medo. Eu a abraçava até que ela parasse de tremer. Era tudo que eu podia fazer.
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Eu visitei Millie todos os dias por quase dois meses. Eu ia a pé con la nena durante o auge do inverno, mesmo que estivesse nevando ou chovendo. Até que Vasia ficou muito doente, com febre, tosse e congestão, e então eu não pude visitar Millie por uma semana, apesar de conversarmos todos os dias. Um dia eu senti que havia algo errado. Quando eu liguei, ninguém atendeu. Finalmente, depois de tentar cinco ou seis vezes, a enfermeira pegou o telefone. “Ela está dormindo”, ela me disse. “Ela dormiu o dia inteiro.”
A mí se me metió algo. Eu tinha que vê-la. Então quando o pai da minha filha chegou em casa, eu insisti para que ele me levasse. Eu gritei e berrei e não deixei que ele trocasse de roupa. Eu fiquei em cima dele, gritando enquanto ele comia o jantar que eu havia preparado, chili de peru com arroz e salada. Eu surtei até que ele finalmente concordou, e me levou até lá reclamando durante o caminho inteiro. Ele cantou os pneus quando eu saí do carro.
Millie abriu os olhos quando eu entrei no quarto. Pela primeira vez no dia, minha mãe disse. Ela estava recostada sobre o travesseiro, com a cabeça descansando sobre seu braço. Ela tinha uma máscara de oxigênio sobre o rosto. A essa altura o câncer já havia invadido seus pulmões. Ela puxou a máscara para baixo e deu um tapinha no travesseiro. “Pónmela aquí.” Eu deitei o bebê a seu lado. Lágrimas pingavam sobre o travesseiro. “Cuídamela.” Ela brincou com os dedos de Vasia e sorriu enquanto Vasia chutava e observava. Millie olhou para mim. “Eu te amo, negra.” Essas foram suas últimas palavras.
Sou filha de pastor, evangélica, desde pequena gosto de meninas, sempre fui assim. Mas devido a religião me casei com homem, tenho um filho q eu amo, mas infeliz no casamento. O instinto falou mais alto, me envolvi com uma mulher e hoje estou perdida.Não sinto mais prazer pelo meu marido, casei sem amor, casei por pressão. Como me assumir nesse meio? Família e religião. ..
Testemunhas de Jeová não acreditam em inferno.
achei essa historia muito triste e ao mesmo tempo muito bonita pelo amor de vanessa com millie
amor de mae e filha.
Nada que vem de Deus é mal e na bíblia ele diz que se você se arrepender dos seus pecados e crê, será salvo. A Religião é muito distorcida, por isso que alguns acham ruim, eu tenho orgulho do Deus que eu sirvo e sei que ele é amor e justiça.
Ah, toca o fundo da minha alma, como a religião, uma força tão poderosa, tem a capacidade de destruir vidas e sonhos, e deixar seres humanos presos em culpa e autocomiseração…
Sinto por Millie, sinto por todos nós.
Triste , mais muito linda a vida dessa pessoa.
O mais triste mesmo é o que a religião fez com ela.
Tenho certeza que Deus não é assim.
CULPA! CULPA! CULPA!
RELIGIÃO: O MAL DA HUMANIDADE E O INFERNO DOS ANIMAIS!!!