A sua liberdade de expressão termina onde começa o meu direito à integridade

Liberdade de expressão não é um direito fundamental absoluto. Nem o direito à vida é. Prova disso é o direito à legítima defesa.

por James Cimino

Em um país em que as pessoas são pouco acostumadas a assumirem suas próprias responsabilidades, fica difícil de explicar o conceito exposto aí em cima. Mas é isso mesmo. Não é porque você estudou numa faculdade “pagou-passou” ou porque seu pai levou seu carro para um mecânico clandestino desamassar depois de você ter atropelado e matado uma pessoa que nossos atos e as palavras que saem das nossas bocas não tenham consequências.

Afinal, somos um povo que está “cansado disso tudo que tá aí”, dessa corrupção toda. Portanto, não reclame quando alguém resolver cumprir a lei e punir o Levy Fidelix por ter cometido algumas violações à Constituição usando como justificativa que “mensaleiro ninguém prende”. O certo não é deixar aquele impune porque este também ficou. Isso apenas aumenta o número de criminosos impunes e, por consequência, a corrupção. O certo é punir os dois e, assim, termos menos dois corruptos no mundo. Matemática básica, que você teria aprendido se não tivesse sido aprovado automaticamente.

Depois deste breve nariz de cera, vamos ao tema da aula de hoje, porque eu tô aqui, não pra dar lição, porque lição quem dá é Deus. Eu to aqui pra dá dica… Coisinha… Sobre direito à liberdade expressão e direito à dignidade humana.

Com auxílio do professor Leonardo Sakamoto, vamos explicar por que Levy Fidelix deve ser punido. E nem comece a dizer que isso é censura ou ditadura. Em primeiro lugar, ele não foi censurado. Ele falou o que quis e o que pensava. A Record não cortou seu microfone. Portanto, não houve cerceamento a sua liberdade de expressão. Se houvesse censura ou ditadura, como muitos adoram papagaiar por aí, ele sairia de lá direto pros porões do Dops. Isso significa que ele tem que ficar impune? Não.

Como explica Sakamoto em seu texto, a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Vamos pegar o caso da Alemanha. Os neonazistas podem se manifestar publicamente, mas não podem exibir símbolos do nazismo, fazer saudações a Hitler, agredir a memória de pessoas mortas na guerra, negar o Holocausto, entre outras violações que podem te colocar por até cinco anos na cadeia.

No Brasil, a Constituição também garante em seu artigo 5º, inciso XLI, que diz que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Quando essa discriminação ocorre na segunda maior rede de TV aberta, cuja concessão é pública, mais um agravante, já que as leis que regem esta concessão também proíbem seu uso de forma discriminatória.

Outro agravante é o fato de o emissor do discurso ser um candidato à presidência da República, que se sustenta com um fundo partidário proveniente dos impostos pagos por toda a população, LGBTs inclusive. Ao dizer o que disse, Fidelix fere a lei eleitoral, que garante o direito de resposta e até a cassação da candidatura por ofender a honra e a dignidade de terceiros ou de um grupo.

Derrame sobre tudo isso uma calda de visão deturpada da democracia, em que apenas quem oprime tem direitos garantidos pelo Estado, a ponto de o referido candidato à presidência dizer que “só quer voto de gente normal” (afinal, em uma democracia só se deve governar para quem é “normal”, né?) e complementando a fala com as ideias de que “devemos enfrentá-los” e “eles que vão se tratar bem longe daqui”, configura-se, além da patologização dos LGBTs, o pensamento fascista. E a palavra não está empregada aqui apenas para efeito de ganhar discussão. É uma analogia muito fácil de se perceber se lembrarmos do Holocausto, em que judeus eram o mal que deveria ser isolado e extirpado da sociedade. Cada vez que um pastor ou um político pastor fala “coloque os gays em uma ilha para que desapreçam” está se reafirmando um discurso fascista, excludente e totalitário.

E não adianta dizer “eu não sou fascista, até tenho amigos gays” como fez a menina da torcida do Grêmio, que diz não ser racista “porque até já namorou um negro”. Essa postura intencionalmente condescendente apenas denuncia aquilo que você está tentando camuflar sob um pretenso discurso de modernidade e tolerância. Quem não é fascista, racista ou homofóbico não precisa ficar o tempo todo afimando isso nem usando sua “amizade” como um grande favor, afinal você é negro ou gay e, mesmo assim, sou seu amigo.

Portanto, se acontecer de a homofobia de Fidelix e de quem quer que seja se tornar crime, você não estará perdendo um direito. Você não tem direito de nos agredir, nem de concordar ou não com nossa sexualidade. O que vai acontecer é que o Estado, que também é sustentado por nós, estará garantindo o nosso direito à integridade física e moral. Você não perde nada, apenas o privilégio de poder nos ofender e ficar impune.

Agora, vamos a uns trechos do texto deesta terça (30) do Sakamoto, em que ele explica tudo isso em tópicos:

  1. O direito ao livre exercício de pensamento e o direito à liberdade de expressão são garantidos pela Constituição e pelos tratados internacionais que o país assinou.
  2. Da mesma forma, as pessoas também são livres para ter sua orientação sexual. Isso sem contar o direito de ver preservada a sua integridade física e psicológica.
  3. O mesmo direito que Levy Fidelix tem de ter suas opiniões, as pessoas também têm de ver garantida sua dignidade.
  4. Liberdade de expressão não é um direito fundamental absoluto. Porque não há direitos fundamentais absolutos. Nem o direito à vida é. Prova disso é o direito à legítima defesa.
  5. A partir do momento em que alguém abusa de sua liberdade de expressão, indo além de expor a sua opinião, espalhando o ódio e incitando à violência, isso pode trazer consequências mais graves à vida de outras pessoas.
  6. Pessoas como Levy Fidelix dizem que não incitam a violência. Não é a mão delas que segura a faca ou o revólver, mas é a sobreposicão de seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna o ato de esfaquear, atirar e atacar banais. Ou, melhor dizendo, “necessários”, quase um pedido do céu. São pessoas como ele que alimentam lentamente a intolerância, que depois será consumida pelos malucos que fazem o serviço sujo.
  7. E o candidato foi bem claro em sua argumentação. Depois de humilhar homossexuais, afirmou: “Vamos ter coragem! Nós somos maioria! Vamos enfrentar essa minoria. Vamos enfrentá-los”. Caberia bem em um filme sobre a Cruzadas ou a Inquisição, mas não em um debate presidencial. (NOTA MINHA: Perceberam a diferença entre as duas coisas? Em um universo ficcional, é até ridículo negar as atrocidades humanas, porque ali elas fazem parte de um contexto dramatúrgico. Naturalizar as atrocidades na vida real é crime).
  8. A liberdade de expressão não admite censura prévia. Ou seja, apesar de alguns juízes não entenderem isso e darem sentenças aqui e ali para calar de antemão biografias, reportagens, propagandas, movimentos sociais, a lei garante que as pessoas não sejam proibidas de dizer o que pensam.
  9. Levy quis falar, Levy falou. A Record, acertadamente, não cortou seu microfone.
  10. As pessoas são sim responsáveis pelo impacto que a divulgação de suas opiniões causam. Como foi o caso de dirigir a um grupo específico (homossexuais) um sentimento de ódio, propor a restrição de seus direitos e até sua extirpação social. E toda pessoa que emitir um discurso de ódio, está sujeita a sofrer as consequências: pagar uma indenização, ir para a cadeia, perder o emprego, ter sua candidatura cassada.
  11. O exercício das liberdades pressupõe responsabilidade. Quem não consegue conviver com isso, não deveria nem fazer parte do debate público, recolhendo-se junto, com sua raiva e ódio, ao seu cantinho.
  12. A responsabilidade por uma declaração é diretamente proporcional ao poder de difusão dessa mensagem. Quanto mais pública a figura, mais responsável ela deve ser. Quanto maior o megafone (no caso de Levy, foi a segunda maior emissora de TV do país), mais responsável ela deve ser.
  13. Certamente há outros candidatos e candidatas que não concordam com a justa equidade de direitos entre heterossexuais e homossexuais. Mas, apesar disso, nenhum deles descarregou essa opinião para o telespectador. Não dessa forma. Isso não é sinal de covardia dos outros. É sinal de estupidez de Levy.
  14. O problema não é ter opinião. Muito menos declará-la. E sim como você faz isso. De forma respeitosa ou agressiva? Privilegiando o diálogo de diferentes e buscando uma convivência pacífica, ou conclamando as pessoas para desrespeitar ainda mais aqueles vistos como diferentes por medo ou desconhecimento?

Entendeu? Ou quer que desenhe?

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3 comentários

Mateus R.D.

Claríssimo! Límpido! Cristalino…….
Por outro lado o que esta sujo é o aparelho buco-excretor e a mente estúpida do candidato Fidélix.
Direito e liberdade de expressão é uma coisa, agressão e incitação a violência é outra coisa.
Só que vivemos no Brasil, o país da impunidade. Deveria, mas alguém acha que vai acontecer alguma coisa com ele?

Vinicius

Belo texto. Mais didático, impossível. E o pior é que pra alguns precisa desenhar mesmo.

Lucas

Excelente texto!
Seria ótimo se o programa dessa semana abordasse esse acontecimento. Amo quando James rasga o verbo, não podemos ficar calados! 🙂

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