Veto a beijos entre gays em “Império” reacende polêmica vazia e sabota trama

Tratar relacionamentos gays de forma obscura apenas soterra discussões mais profundas que a novela propõe

por Marcio Caparica

Como já se tornou praxe para todas as novelas das nove que estão prestes a começar, a questão do beijo entre personagens gays foi discutida e especulada à exaustão durante os meses que antecederam a estreia de Império. O autor, Aguinaldo Silva, apesar de antigo militante do jornal Lampião da Esquina durante a ditadura militar e autor do discurso incrível em que Tieta explicava a transsexualidade de Ninete (Rogéria) para o sobrinho na novela homônima, sempre deixou claro que não é fã de mostrar dois homens se beijando em horário nobre. Mas, com a estreia se aproximando, chegou a declarar que o beijo poderia acontecer logo no começo pra acabar com essa questão logo de cara.

A presença de gays nas novelas da Globo já se tornou praticamente obrigatória, e parece que a cada folhetim que começa, a emissora se sente na obrigação de tentar superar o anterior nesse quesito (Regina Duarte mesmo, durante o Lado Bi no. 57, levantou a hipótese de que o aumento de personagens gays lhe cheirava a estratégia de marketing; afinal, o público gay gera buzz sobre as novelas nas redes sociais). Se antes havia um ou dois personagens gays por novela, Amor À Vida teve três; Em Família teve um casal de lésbicas; e agora Império já investiu em quatro personagens LGBT: o bissexual Claudio (José Mayer), a bicha venenosa Teo (Paulo Betti), o gay amante Leonardo (Klebber Toledo) e a travesti Xana (Ailton Graça). Isso sem considerar Robertão (Rômulo Neto), que tudo indica vai se tornar gay for pay.

Tanta energia e tantos personagens deveriam representar uma maior aceitação aos personagens LGBT – mas não é bem assim. Apesar de os gays moverem grande parte das tramas do início dessa novela, o autor e a direção de Império acharam por bem dar alguns passos atrás e voltar a inflar o elefante branco do beijo gay no horário nobre, cortando duas cenas de beijos entre Claudio e Leonardo que estavam programados na história:

A ideia original era mostrar o beijo para o telespectador, mas somente Érika e os três rapazes homofóbicos a verão. A Globo confirma o corte. “A novela aborda o conflito de um personagem que mantém uma vida dupla e não consegue se assumir publicamente. Como a discussão não está na intimidade dos personagens, houve consenso em não ter um beijo na realização da cena”, justifica a Comunicação da emissora.

O beijo de hoje, de fato, não faz a menor diferença na cena. Seria apenas uma demonstração de carinho. Cláudio dirá a Leonardo que terá de deixar de vê-lo por uns tempos. No meio do diálogo, o beijaria. Já o beijo da terça que vem, 12, tem sérias consequências: ele escancarará publicamente a homossexualidade de Cláudio, uma figura respeitada na sociedade carioca retratada em Império.

A reação da Globo aos beijos de Império mostra que a emissora evoluiu ao quebrar o tabu do beijo gay em Amor à Vida. Mas não quer abusar, tornar o beijo entre homens e mulheres tão corriqueiro quanto os dos casais heterossexuais. A emissora não quer melindrar a Igreja Católica e a audiência evangélica.

Apesar de utilizar personagens gays para causar buchicho na mídia, a Globo continua aplicando dois pesos e duas medidas quando o assunto é a vida sentimental de gays e héteros – algo que fica ainda mais incompreensível depois que o frágil telespectador brasileiro já viu dois homens se beijando e o mundo não acabou. No capítulo do dia 1º de agosto, em que o casal Claudio e Leonardo foi apresentado, eu contei quatro beijos entre héteros. Beijos de amor, beijos de pegação, beijos de carinho. Em contextos dentro e fora da “intimidade dos personagens”. O nível de intimidade importa? Só quando são dois homens.

Aguinaldo Silva disse que acha “desnecessário”. Desde quando beijos têm que ser necessários ou não? Essa avaliação não é feita nas dezenas de beijos HT que a Globo transmite todos os dias. Daniel Castro escreveu: “O beijo de hoje, de fato, não faz a menor diferença na cena. Seria apenas uma demonstração de carinho.” Apenas? Mas é exatamente a demonstração de carinho que importa. Ainda mais no contexto da cena, em que o casal está se separando. Qualquer rompimento na teledramaturgia mostraria um beijo final entre os membros do casal (assim como acontece na maioria dos rompimentos na vida real, hétero e homossexuais). Pelo contrário, um beijo entre Claudio e Leonardo faria uma grande diferença na cena e na compreensão dos sentimentos dos personagens.

Como o telespectador entende que o comendador José Alfredo gosta de Maria Isis e não da esposa? Pelos beijos que eles se dão. Que Cristina e Fernando são um grande amor? Pelos beijos. Que há algo estranho na vilã Cora? Pelo fato de que ela não beija ninguém. A presença ou não de beijos demonstra exatamente a humanidade e normalidade dos personagens. Quando se esconde o beijo entre José Mayer e Klebber Toledo, o que se comunica é que o que estão fazendo é condenável, é indecente, é algo que as pessoas de bem não podem ver. Na vida do bissexual Claudio, ficar com a mulher e filhos é saudável, é lindo, é iluminado, é legítimo. Envolver-se com Leonardo é clandestino, é sacanagem, é um distúrbio. Aguinaldo Silva está fazendo um bom trabalho em mostrar que muito disso é mais coisa da cabeça do próprio Claudio do que realidade. Mas a falta de significantes que coloquem os dois relacionamentos no mesmo patamar acaba dando razão para a paranoia de Claudio.

E isso sabota a própria novela. A trama pretensamente quer apresentar o dilema que o personagem Claudio sente, dividido entre o amor que sente por Leonardo e o amor que sente pela mulher e a família. Mas, ao diminuir a humanidade do relacionamento gay, acaba também diminuindo o conflito e, consequentemente, seu impacto. Escolher entre um relacionamento “pleno” e um relacionamento “deficiente” não é difícil. Ver-se obrigado a escolher entre dois grandes amores, isso sim é sofrimento.

Certamente isso é compreendido por autor, diretores e todos os envolvidos na novela das nove. Por que a opção por aleijar a própria história então? Pressão dos influenciadores religiosos? Talvez. Mas também podemos especular um outro motivo: segurando-se o beijo gay, realmente reaviva-se a questão do beija-ou-não-beija. Como conferimos em Em Família, tratar a homossexualidade como algo normal é lindo, mas não rende polêmica. Enquanto conseguir-se manter essa dúvida cansada sobre ocorrer ou não o beijo, o barulho a respeito da novela acontece na mídia. Isso, talvez, se reflita em audiência.

Isso pode ser uma estratégia imediatista para levantar o ibope, mas, honestamente, já deu. Fica feio. E não faz favor nenhum pra história. Ao contrário, se Aguinaldo queria acabar com a polêmica em torno do beijo, simplesmente deu um tiro no pé. Cabeças da Globo, aprendam com o passado. Abusem mesmo. Transformem o beijo gay em corriqueiro. Porque isso vai acontecer mais cedo ou mais tarde (veja os seriados norte-americanos), fiquem os evangélicos e a igreja Católica melindrados ou não. A audiência depende de histórias bem contadas e do envolvimento do telespectador com essas histórias. Mostrem que os gays têm as mesmas demonstrações de carinho que os héteros, e o telespectador não vai conseguir desgrudar da tela até descobrir como esses personagens, tão humanos quanto ele próprio, vão conseguir desatar esse nó. Insistam em tratar os relacionamentos gays como algo de segunda classe, e o público vai logo se enjoar disso, como já se enjoou do batidérrimo “quem matou?”.

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8 comentários

Filipe

“No capítulo do dia 1º de agosto, em que o casal Claudio e Leonardo foi apresentado, eu contei quatro beijos entre héteros. Beijos de amor, beijos de pegação, beijos de carinho. Em contextos dentro e fora da “intimidade dos personagens”. O nível de intimidade importa? Só quando são dois homens.”
Essa hipocrisia dá desgosto.

Cesar

Vocês estão sabendo que há rumores de que Leonardo (personagem de Klebber Toledo) vai se envolver com uma mulher?

Guto

Concordo com o texto. E ainda acrescento que a novela faz um desfavor aos gays, essa polêmica só alimenta os gritos dos homofóbicos, que passam a se sentir desinibidos para adubar pela boca. Quanto mais banal se tornarem os relacionamentos gays e suas manifestação de carinho, menos necessário será aceitar “opiniões” dos contrários.

Marcelo

O que se está vendo com isso é a marginalização de um grupo de pessoas. A novela presta um desserviço nesse quesito. Uma pena.

E a gente só ganha razões pra achar que não está tudo assim tão bem e a aceitação não é tão grande quanto se parece. O beijo gay nas duas últimas novelas criou esta falsa ilusão. Temos ainda um longo caminho a percorrer na TV aberta brasileira. Enquanto isso, na Argentina…

Eddy

Acho que para a Globo isso ainda não parece ser normal. Mas sexo explicito e nudez(entre os héteros é claro) tem quase todas ás noites.

João Vitor @abelunname

Sempre a mesma coisa… Qual a necessidade de um beijo gay? A mesma de um beijo ht a cada três cenas. Como foi explicado é marketing, os gays assistem ansiando o tratamento comum, que nós é devido, mas no fim o que recebemos é sempre o resto do que os “normais” comem. A igualdade gay na televisão vai até o buzz que os gays fazem depois para porque não é conveniente pra emissora exibir algo que ataque a crença de 2/3 da população noveleira que ainda se nega a aceitar o “peso” de um beijo gay.

Flávio

Acredito que a Globo recuou porque o ibope da novela não subiu tanto ainda em relação ao de Em Família. Se estivesse mais consolidada, acho que teria. O medo deles é realmente de perder a oportunidade de elevar os índices depois de um beijo gay, o que é totalmente descabido. E aí estão se alimentando da polêmica. Aguinaldo Silva tuitou dias atrás: “todo mundo falando bem de Império e eu me pergunto: onde foi que eu errei?” Pouco depois veio a notícia do corte aos beijos. Essa justificativa de que o beijo precisa de contexto é VERGONHOSA. Não convence ninguém. A Globo está tomada de gays com homofobia internalizada e que agem com naturalidade frente à ignorância dos que tomam as decisões. Lamentável. Daqui pra frente, tudo vai depender de como a história do casal vai caminhar. Se o público comprar o casal, talvez tenha beijo. Ou seja, sim, andamos pra trás!

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