Em luto pelo falo nacional: o que resta da identidade brasileira sem o futebol?

As derrotas da Copa de 2014 deveriam ser usadas para eliminar a dependência da nação da cultura machista e homofóbica do futebol

por Marcio Caparica

Traduzido do post de Diego Semerene para o Huffington Post

Eu vi meu pai chorar pela primeira vez em 21 de junho de 1986, no dia em que a França eliminou o Brasil da Copa do Mundo numa disputa de pênaltis dramática. Naquele momento, meu pai se deu o direito de chorar na frente dos filhos, como se fosse para nos ensinar o quanto era absoluta aquela perda: perante uma catástrofe como essa, até mesmo um homem barbado tem permissão para chorar. Suas lágrimas, cheias de constrangimento e alívio, também serviram como uma maneira de extravasar tudo. O choro do pai brasileiro, permitido, mesmo que discretamente, a cada quatro anos em caso de derrota na Copa do Mundo, pode servir como um marco histórico e tanto. Também é oportunidade de alguns homens de botarem para fora tudo que eles carregam atravessado na garganta. Com essa performance do fracasso paterno (um pai que retira sua camisa da seleção para que ela descanse em paz), tornou-se óbvio para mim que a dependência do Brasil na crença de que sua seleção de futebol é um esquadrão invencível, apesar de todos os indícios do contrário, é, pura e simplesmente, patológica.

A Copa do Mundo sempre funcionou como um teste do poder do falo brasileiro, ou dessa ilusão, terceirizada para os 11 jogadores em campo. Esses jogadores trabalham duro para criar o jogo de cena que nos permitirá testemunhar o espetáculo e experimentar o frisson de um orgasmo coletivo, gemendo “Sim! Nós todos nos curvamos diante do mesmo deus invencível!”. Sempre que o Brasil era derrotado, a sensação de castração da nação nunca era completa e absoluta, porque sempre se podia culpar o resultado final em algum tipo de acidente: um juiz ladrão, um jogador perna-de-pau, um técnico teimoso, ou, que seja, a Argentina. Mas o massacre provocado pelos alemães em 2014, numa derrota de 7 a 1, seguida de outra de 3 a 0 contra a Holanda na disputa pelo terceiro lugar (o prego extra no caixão), desenham uma história diferente: algo mais próximo de um trauma nacional, pois o inimaginável aconteceu. E, como se sabe, nós não sabemos como lidar com o inimaginável.

Não foi apenas uma derrota, mas uma broxada lenta e dolorosa do falo nacional perante dos nossos olhos. Diferente da derrota repentina depois de um pênalti final, rápida como uma guilhotina, essa derrota foi particularmente perversa. Ela anunciou a morte do futebol como a grande garantia da heteromasculinidade brasileira, necessária para que a nação entenda a si mesma. Foi como se descobrissem que uma estrutura tão gigantesca quanto o Titanic nunca passou de um embuste, conforme ela encolhia lentamente até se reduzir a uma pequena bexiga de aniversário vazia.

Ao invés de procurar os responsáveis por essa humilhação, nós deveríamos aproveitar essa oportunidade para procurar outra coisa que oriente nossas vidas além da ficção dessa heteromasculinidade de força espantosa. Vamos nos permitir encontrar riquezas e prazeres na derrota, e aceitar o próprio conceito de que a derrota é uma parte essencial de se estar vivo e ser humano. Se o futebol funcionou até agora, no Brasil, como um grande mecanismo de defesa contra a verdade – a de que a partir do dia em que nascemos nós vamos perder (células, fios de cabelo, dentes, amores, tempo) – nós deveríamos enterrar nesse momento o mito de uma masculinidade brasileira invencível, que ganha vida a cada quatro anos para exibir seus músculos e manter tudo no devido lugar, e deixar que o futebol brasileiro se torne algo como uma peça de museu, uma piada. Quem sabe agora nós poderemos retirar de nossas crianças o fardo imposto pelo uniforme da Seleção (seja homem, seja infalível) e permitir a elas que vistam a fantasia que quiserem – mesmo que seja nenhuma. Vamos parar de fazer do futebol a única língua que os homens brasileiros são permitidos (e obrigados) a falar. Vamos rejeitar o futebol como o todo-poderoso marcador das diferenças de gênero, capaz de arbitrar se um garoto é “brasileiro como se deve” ou uma bichinha descartável. Não vamos mais medir o valor do que somos por meio de uma instituição que se sustenta humilhando os perdedores com insultos homofóbicos, do mais sutil “chupa” a estádios inteiros entoando em coro que um jogador é viado.

Vamos deixar de almejar a superioridade, se essa superioridade só é alcançada pelo físico, mas deve ao mesmo tempo repudiar o tesão que esses físicos provocam. Vamos desenvolver outros investimentos que não se resumam à capacidade dos nossos homens de vencerem outros homens, enquanto nossas mulheres servem salgadinhos e servem de saco de pancadas para nossas frustrações. Ao invés de canalizar nossa vergonha atual numa campanha furiosa para vencer em 2018, vamos reconsiderar nossa dependência do futebol (e da vitória dos homens) para nos ditar quem nós somos e delimitar quem nós podemos ser. Vamos também reconhecer como a posição de vitória sempre é precária e fictícia (você tira o Neymar de campo e um time inteiro desaba como um castelo de cartas), e como as vitórias do futebol são infantis: alguns poucos minutos de alegria incomensurável, algumas manchetes cafonas, uma porção de memes de internet deploráveis, e a possibilidade de contar vantagem. Vamos utilizar a grande derrota de 2014 para exorcizar o futebol masculinizador da alma brasileira, olhar bem para o que restar dela, e fazer algo a respeito.

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4 comentários

Guto

Oi Márcio, adorei o novo paradigma do seu texto (sobretudo a conclusão). Mas eu até pensaria que você tivesse exagerado nas palavras se não fosse tão desligado e indiferente ao futebol. Acho muito hipotética essa situação de diminuir a importância desse esporte, seja pela intensa mídia nos bombardeia horrores sobre o assunto ao mesmo tempo que enriquece, seja pelo fato do futebol estar arraigado a nossa cultura (e convenhamos, ninguém mais é penta em um esporte que praticamente todos os países do mundo param pra assistir em um evento que inclusive chega a repercutir mais que os jogos olímpicos que abrange várias outras modalidades incluindo o futebol). Enfim, mesmo não gostando de futebol, entendo que existem méritos no esporte que justifiquem essa dependência toda na nossa população. E sobre homofobia/machismo/preconceitos no geral, não culpo o futebol; acho que o esporte reflete muito mais nossos defeitos que as qualidades.

Marcio Caparica

Oi Guto! Concordo com muito do que você diz! Só queria fazer uma observação: nossos somos penta, somos os primeiros, mas e daí? Dado tempo o suficiente, outras seleções serão penta também. A seleção brasileira foi a primeira tetra, agora já temos Itália e Alemanha, é questão de tempo para que hajam outros pentas… Não vejo mérito em ser o primeiro.

Guto

Que lindo! Márcio me respondeu, rsrs. Eu já discordo e vejo méritos em sermos os primeiros tetras/pentas. Acho muito exagerada uma comparação – mas vale a analogia: existem méritos para quem primeiro inventou a internet, a energia elétrica, o computador, o avião… Mas sendo assim, por que reverenciarmos Santos Dumont se qualquer outro após ele poderia, ao menos teoricamente, fazer a mesma conquista? Eu sei que saiu descabida a comparação, mas dá para adaptarmos ao mundo do futebol. Somos os pioneiros e os únicos em muitas conquistas, somando à importância mundial do esporte, talvez seja essa a razão de inflarem tanto e colocarem isso como elemento fundamental da nossa cultura. Não é que outros países jamais nos alcançarão, mas temos muitos jogadores que entraram para a história e inspiraram e continuaram inspirando quem gosta da modalidade.

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