As eleições norte-americanas tiveram resultados agridoces. Ao mesmo tempo que a população dos Estados Unidos elegeu seu primeiro presidente negro, Barack Obama, na Califórnia uma consulta popular tinha como resultado a aprovação da Proposta 8, que rescindia o direito ao casamento dos casais homoafetivos.
A polêmica teve início em 2004. Em fevereiro o prefeito de San Francisco começou a oficiar casamentos homossexuais, em resposta ao então presidente George Bush, que num discurso de início de ano declarou seu apoio para que o casamento fosse definido como algo apenas entre um homem e uma mulher na constituição do país. Sua lógica era que, como a constituição do estado garantia direitos iguais para todos, não havia porque negar esses direitos aos homossexuais. A iniciativa durou até março, quando foi paralisada pela corte judicial do estado. Por volta de 4 mil casais haviam se casado nesse meio tempo.
Teve início então uma batalha legal que culminou na decisão de que a constituição do estado realmente garantia esse direito a todos. O que os conservadores fizeram, então? Conseguiram colocar essa pesquisa popular nas eleições de 2008, para que a própria constituição do estado fosse alterada de maneira a definir o casamento como algo apenas entre um homem e uma mulher e, portanto, retirando os direitos ao matrimônio dos casais homoafetivos.
(A tática de se promover plebiscitos para que a maioria decida sobre os direitos de uma minoria é uma das mais hipócritas e desprezíveis, utilizada por políticos do mundo todo. Direitos civis não devem ser abertos a votação. Direitos civis são absolutos.)
Alguns dias depois o âncora Keith Olbermann, um dos medalhões na época do canal de notícias MSNBC, encerrou seu programa diário com o comentário que traduzimos abaixo. Sua crítica era simples e contundente: como é que qualquer pessoa pode ter a consciência tranquila ao negar a outros as poucas possibilidades de felicidade a que já têm direito?
A batalha legal continuou, com processos escalando os vários níveis do sistema judicial norte-americano, até que finalmente considerou-se que a própria Proposta 8 ia contra a 14a. emenda da constituição dos Estados Unidos, que garante igualdade para todos perante a lei e proíbe que se volte a retirar direitos civis conquistados por parcelas da população. Desde junho de 2013 os residentes homossexuais do estado da Califórnia voltaram a poder se casar. Espera-se que em não muito tempo a Suprema Corte dos EUA seja forçada a avaliar algum caso que pode acabar por legalizar o casamento homoafetivo no país inteiro.
O comentário contundente de Olbermann continua relevante ainda hoje, apontando a mesquinharia e a falta de caráter de quem deseja negar aos homossexuais a possibilidade de encontrar a felicidade no matrimônio.
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Finalmente essa noite, como prometido: um comentário especial sobre a aprovação, na semana passada, da Proposta 8 na Califórnia, que rescindiu o direito de casais homoafetivos a se casarem, e desequilibrou a balança sobre essa questão, de costa a costa.
Alguns parâmetros, como prefácio. Esta não é uma questão de quem fala mais alto, e não é uma questão de política, e não é sequer realmente apenas sobre a Proposta 8. E eu não tenho qualquer interesse pessoal nisso: eu não sou gay, e tive que fazer esforço para lembrar de um único membro da minha família distante que seja gay. Eu não tenho histórias pessoais de amigos próximos ou colegas que lutam contra o preconceito que ainda se infiltra em suas vidas.
Mesmo assim, esse resultado no plebiscito é horrível. Horrível. Porque essa não é uma questão de quem fala mais alto, nem é uma questão de política.
É uma questão do… coração. E se isso soa cafona, que seja.
Se você votou a favor dessa Proposta ou apoiou aqueles que votaram assim, ou as intenções que eles expressam, eu tenho algumas perguntas a fazer.
Porque, sério, eu não compreendo.
Por que isso importa para você? Do que se trata? Numa época de impermanência e relacionamentos descartáveis, essas pessoas aqui querem ter a mesma possibilidade de conseguir permanência e felicidade que já é opção sua. Eles não querem negá-la a vocês. Eles não querem tirar nada de vocês. Eles querem o que você quer – uma possibilidade de ser um pouco menos solitário no mundo.
Só que vocês estão dizendo para eles: “não, vocês não podem ter isso nessas condições”. Talvez eles possam ter algo parecido. Se eles se comportarem bem. Se eles não causarem muito problema. Vocês lhes dariam até os mesmos direitos legais – ao mesmo tempo que retiram deles um direito legal que eles já tinham. Há todo um mundo ao redor deles ainda ancorado no amor e no casamento, e o que vocês estão dizendo é: não, eles não podem se casar. O que aconteceria se alguém aprovasse uma lei dizendo que vocês não podem se casar?
Eu continuo a ouvir pessoas usando essa expressão, “redefinir o casamento”. Se esse país não houvesse redefinido o casamento, negros ainda não poderiam se casar com brancos. Dezesseis estados tinham leis em suas constituições que tornavam isso ilegal… em 1967. Mil novecentos e sessenta e sete! Os pais do presidente recém-eleito não conseguiriam se casar em um terço do país que seu filho cresceu e veio a liderar.
Mas é ainda pior. Se esse país não houvesse “redefinido” o casamento, alguns negros não poderiam se casar… com negros. Essa é uma das partes mais omitidas e cruéis de nossa triste história de escravidão. Casamentos não eram reconhecidos legalmente, se as pessoas fossem escravas. Como os escravos eram considerados propriedade, eles não podiam legalmente se tornar marido e mulher, ou mãe e filho. Seus votos de casamento eram diferentes: não “até que a morte os separe”, mas “até que a morte ou a distância os separe”. Os casamentos entre escravos não eram reconhecidos legalmente.
Da mesma maneira como os casamentos hoje na Califórnia não são reconhecidos legalmente, se as pessoas são… gays.
É incontável em nossa história o número de homens e mulheres forçados pela sociedade em casamentos com alguém do sexo oposto, casamentos de fachada, ou casamentos de conveniência, ou simplesmente casamentos de ignorância – séculos de homens e mulheres que viveram suas vidas com vergonha e infelicidade, e que, ao mentir para si mesmos ou para outros, destruíram incontáveis outras vidas, de cônjuges e filhos… Tudo porque nós dissemos que um homem não poderia se casar com outro homem, ou uma mulher não poderia se casar com outra mulher. “A santidade do matrimônio”. Quantos casamentos como esses já houve, e como é que eles aumentam a “santidade” do matrimônio ao invés de esvaziar essa expressão de significado?
Do que isso se trata, para vocês? Ninguém está pedindo para que vocês acolham a expressão de amor deles. Mas vocês, como seres humanos, não têm a obrigação de acolher esse amor? O mundo já é árido demais!
O mundo joga contra o amor, e contra a esperança, e contra aquelas poucas e preciosas emoções que tornam possível que sigamos em frente. Nossos matrimônios só têm 50% de chance de durar, não importa a grandeza dos seus sentimentos e quanto vocês se esforcem.
Aqui estão pessoas exultantes com a possibilidade de ter essa mera chance, e esse esforço, apenas pela esperança de terem esses sentimentos. Com tanto ódio no mundo, com tantas divisões sem sentido, e gente em conflito com gente sem qualquer razão, é isso mesmo que sua religião lhe diz para fazer? Considerando sua experiência de vida e esse mundo e todas suas tristezas, é isso mesmo o que sua consciência lhe diz para fazer?
Sabendo que a vida, com seu vigor sem fim, parece trapacear no jogo em que todos nós vivemos em favor da infelicidade e do ódio… é isso mesmo que seu coração lhes diz para fazer? Vocês querem santificar o matrimônio? Vocês querem honrar a seu Deus e o amor universal que ele representa? Então espalhem felicidade – esse grão de felicidade minúsculo, simbólico, semântico – compartilhem-na com todos que a buscam. Podem citar para mim seja o que for que seu líder religioso ou o livro de sua escolha afirmam para que se lute contra isso. E daí explique para mim como vocês podem acreditar nessas afirmações ao mesmo tempo em que acreditam em outra afirmação, uma afirmação que simplesmente diz “façam aos outros o que vocês querem que eles façam a vocês“.
Nesse momento você está sendo convidado, pelo seu país, e talvez pelo seu criador, a se posicionar de um lado ou do outro. Você está sendo convidado a tomar uma posição, não numa questão política, nem numa questão religiosa, nem numa questão sobre ser gay ou heterossexual. Você está sendo convidado a tomar uma posição numa questão de amor. Tudo o que você precisa fazer é ficar quieto onde está, e deixar que aquela pequena brasa de amor vá de encontro a seu próprio destino. Você não tem que auxiliá-la, você não tem que aplaudi-la, você não tem que lutar por ela. Simplesmente não a apague. Simplesmente não a extingua. Porque, mesmo que num primeiro momento pareça que esse amor é entre duas pessoas que você não conhece e não entende e talvez nem quer conhecer… Essa é, na verdade, a brasa do seu amor, pelo seu próximo.
Simplesmente porque esse é o único mundo que nós temos. E o outro também conta.
Esta é a segunda vez em dez dias que eu me vejo usando, para concluir, de tantas coisas, a o pedido final de misericórdia feito por Clarence Darrow num julgamento de assassinato. Mas o que ele disse se encaixa no cerne real disso:
Eu estava lendo na noite passada sobre as aspirações de um antigo poeta persa, Omar Khayyam. Elas me pareceram ser as maiores aspirações possíveis. Eu gostaria que elas adentrassem meu coração, e eu gostaria que elas adentrassem o coração de todos: “Para que eu esteja escrito no Livro do Amor / Eu não me importo com aquele Livro acima. / Apague meu nome, ou escreva-o como quiseres / Para que eu esteja escrito no Livro do Amor.”
Boa noite, e boa sorte.
Sempre me senti não convencional e hoje me sinto não conformista. Não acho que enquanto homem homossexual o amor se mede em termos declarativos face a terceiros, muito menos através de um casamento – a descriminação é pela qual me combato e aceito sim dreitos iguais para todos os casais independentemente de genero ou composição. Vejo mais a perpectiva igualitária como os direitos de minorias e contra a descriminação de genero ou de raça. Colocar a questão entre polos opostos extremos não é construtivo pois dá lugar a extremismos de parte a parte – A sociedade americana mede-se assim, eu sei, reduzindo e infantilizando questões intelectualmente superiores atribuindo polo positivo e negativo: os maus e os bons, os vencedores e os vencidos, como se vê na Fox News; os losers para ser mais exacto, justifica-se tudo assim na opinião pública que rescreve e sintetiza a realidade, e é claro a história.
Não percebo o negacionismo histórico de alguns lobbis que se apelidam de religiosos e até de nacionalistas face ao papel impulsionador que os homossexuais tiveram ao longo dos tempos e como a sua visão de horizontes abertos fez a própria história progredir incomensurávelmente tanto no campo do seu próprio povo enquanto comunidade religiosa como na construção das suas próprias nações enquanto identidade. Até o autor medíocre do seriado DaVinci’s Deamons prefere declarar ignorância a admitir a realidade histórica – DaVinci que foi eleito o homossexual mais importante da história italiana há alguns anos atrás num questionário de um mídia de grande circulação.
Muito bom texto,parabéns