No século passado, o caixa 24 horas realmente funcionava 24 horas. Faz tempo. A gente nem se lembra mais de que houve uma época em que se conseguia tirar dinheiro às duas da madrugada. Mas daí uma onda de sequestros-relâmpago e o racionamento de energia de 2002 fizeram com que todos achassem muito razoável que se desligassem os caixas eletrônicos das 22h até as 6h do dia seguinte. E o que era uma solução de emergência se tornou normal. Sequestro relâmpago! Bandidos estão forçando os usuários dos caixas a retirar dinheiro contra sua vontade! O que fazer? Aumentar a segurança dos caixas? Não! Vamos privar a população do país inteiro desse serviço! E, né, tudo bem, a vida é assim.
Estamos mais uma vez passando por uma onda de ataques homofóbicos na região da rua Frei Caneca em São Paulo. Se bem que, como já dissemos antes, talvez a onda de crimes nunca tenha ido embora – é só que agora voltou a se dar atenção ao assunto. Cumprindo seu papel de amplificar os fatos para vender jornal e ganhar cliques informar, a Folha de S.Paulo publicou uma pequena reportagem entitulada “Medo de agressão faz gays andarem em grupo em SP”. Nela, vários gays lamentam como não se sentem mais seguros, precisam andar em bandos, não beijam o namorado em público porque vai gerar “uma reação absurda” e pegam táxi para percorrer os dois quarteirões da balada até sua casa. Num boxe que está surfando as indignações do Facebook nesse momento, a reportagem oferece dicas de segurança: andar em grupo, evitar locais abertos, não dar “pinta” e não beijar o namorado ou andar de mãos dadas.
Nesse último final de semana eu passei o sábado inteiro com o namorado. Fomos ao Museu do Futebol durante o dia, à região Augusta/Frei Caneca à noite, e depois às festas do SP Na Rua. Em todos os lugares andamos de mãos dadas e nos beijamos como qualquer outro casal. Não presenciei nenhuma “reação absurda”.
Quem lê essa reportagem da Folha fica com a impressão de que os gays estão com medo de botar o nariz para fora de casa. Que consideram se disfarçar de evangélicos quando pisam na calçada para não serem imediatamente espancados pelos skinheads que rondam o centro de SP. Uma impressão errônea causada por uma reportagem disposta a garantir sua manchete inflando um único lado da notícia. Sim, os homossexuais estão sendo perseguidos na noite paulistana, e não, não devemos marcar bobeira e zanzar à noite totalmente alheios e solitários. É inevitável ficar de orelha em pé quando se caminha na região à noite. Mas a Augusta e a Frei Caneca continuam cheias de gente durante as noites dos finais de semana, e boys, patricinhas, putas, viados, todos continuam agindo como sempre agiram.
Ah, mas é apenas um relato sobre um grupo de pessoas que tomam esse tipo de atitude. Não é assim que a matéria se coloca; o título não é “Medo de agressão faz alguns gays andarem em grupo em SP”. É um exercício de metonímia: os gays da matéria representam o todo dos gays. Portanto, as “estratégias de segurança” dadas em tom de conselho não se estendem a alguns homossexuais temerosos, mas a todos. Especialmente lamentáveis são as estratégias-conselhos de não beijar o namorado ou andar em mãos dadas, e de evitar “dar pinta”.
Mais uma vez, como resolvemos o problema da segurança? Punindo os agressores? Não! Vamos tolher a vida dos agredidos.
(E no mais, qual é o nível seguro de “dar pinta”? Falar grosso usando camiseta com decote V profundo já é seguro? Elástico da cueca aparecendo já é hétero o suficiente, desde que a cueca não seja Aussie Bum? E quem pintou o cabelo, como faz? Mas e os héteros de cabelo pintado? Quem garante a interpretação do homofóbico agressor? Diga, quem?)
Há quem argumente que esse é um box descritivo, sem nada demais. Imagine se a situação fosse de skinheads agredindo negros no centro de São Paulo. Seria aceitável sugerir que os negros parecessem menos negros para andar em segurança? “Fazer chapinha: penteados black power podem atrair a atenção dos criminosos”; “Utilizar calças e mangas compridas: esconda a pele negra sempre que possível para aumentar a segurança”. Cada vez que se dá esse tipo de conselho, se prepara o terreno para que mais tarde alguém venha a culpar a vítima por não estar “agindo da maneira certa”. É o discurso de quem coloca a culpa na garota que foi violentada porque ela estava andando de minissaia.
O que me perturba é que dos 14 parágrafos do texto, apenas duas míseras linhas comentam en passant a vergonhosa falta de atitude das testemunhas da agressão contra Juliano Polidoro. Vamos fazer o velho exercício de ponderar discursos alternativos: agressões estão acontecendo nos arredores da rua Frei Caneca. O que acham de entrevistar frequentadores da rua Augusta e especialistas em psicologia para chamar atenção para essa atitude passiva e bovina de quem vê alguém apanhar sem fazer nada?
Que tal entrevistar grupos de gays e casais de homossexuais que continuam frequentando a região à noite e dão tanta pinta quanto sempre deram, para saber por que não se intimidam? Seja por coragem, seja por ignorância, deve ser uma leitura interessante também. Que tal oferecer estratégias de segurança que não pressuponham agir de forma menos gay, como por exemplo carregar um spray de pimenta consigo, fazer aulas de defesa pessoal, ou simplesmente chamar a polícia? Por que não chamar a atenção para o fato de que a 4a. Delegacia de Polícia fica logo ali na rua Marquês de Paranaguá, a um quarteirão da rua Augusta, e que portanto seria de se esperar que a polícia, ciente dessa onda de ataques, patrulhasse a vizinhança de sua própria delegacia?
Por convicção, descuido ou desdém, optou-se por um enfoque que vitimiza gays e oferece como alternativa (para sua própria segurança!) uma postura um pouco mais dentro do armário. É o jeito, né, vamos deixar que um punhado de assassinos alterem a vida de milhares de homossexuais. Pena que para eles não é tão fácil desligar sua homossexualidade das 22h até as 6 da manhã do dia seguinte. Pena que os gays não são como os caixas eletrônicos.
Fantástica a sua visão e colocação das ideias. Parabéns!
Eu não havia pensado por esse ângulo. Agora, sim.
Obrigado.
Marcio, vc ganhou um fã cara.
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Fico feliz!
Perfeito! Argumentos válidos e muito pertinentes. Também achei absurdo esse box e aplaudo seu comentário sobre o quanto se deixa passar perguntas extremamente importantes sobre essa situação, para se concentrar no senso comum, que sempre acaba culpando a vítima pela agressão.
E a reportagem se esqueceu de q nem sempre quem dá pinta é gay: quem se lembra daqueles dois, pai e filho, q estavam caminhando no centro da cidade (eu acho q foi em São Paulo, mas me corrijam se estiver errada) e foram agredidos, pq o pai estava andando na rua com o braço sobre os ombros do filho, num gesto de afeto…