Moralistas: nos poupem desse papo de monogamia

Longe de ajudar, a superioridade moral de quem se considera monogâmico só traz prejuízos para gays e héteros

por Marcio Caparica

Lá nos idos de 2004, pouco depois do prefeito de São Francisco tomar a atitude polêmica de conceder licenças para que gays se casassem, eu saí com um cara gato que eu tinha conhecido via amigos em comum. O tópico da monogamia surgiu – não no contexto de algum futuro romântico imaginado para nós dois, mas por causa do (muito) barulho que a atitude corajosa do prefeito causou e pela legalização do casamento homoafetivo no estado de Massachusetts alguns meses antes.

Sem ser solicitado, meu acompanhante derramou sua opinião sobre homens gays que satisfazem suas necessidades sexuais abertamente e, digamos, frequentemente. Eu me pus a esvaziar a cestinha de pães enquanto ele insistia nessa ladainha. Em 2004 meu furor sexual já estava um pouco mais contido, mas mesmo assim o desprezo dele me soava presunçoso e ofensivo. Acho que ele pensou que eu ia concordar com ele – claro. Eu me esforcei para que o meu grilo falante interior não o julgasse; opiniões divergentes podem trazer alguns momentos surpreendentemente educacionais. Achei melhor dar minha opinião, mesmo que causasse um debate.

Foi difícil encontrar uma brecha enquanto ele seguia o sermão da superioridade da monogamia. Então eu deixei ele tagarelar até que chegaram os aperitivos.

Em certo ponto eu rebati com minha filosofia de que promiscuidade não é sinônimo de galinhagem, e ser conservador na cama (ou na política) não torna ninguém automaticamente superior. Há gays, eu expliquei, que nem precisam nem buscam o “amor livre” e vivem felizes da vida assim. Há outros que não entram nessa porque, apesar de terem vontade, temem o julgamento de seus demônios interiores. E, por fim, há  os gays que professam sua superioridade por não precisarem de “amor livre” mas mesmo assim fazem isso em segredo; esses a gente chama de “hipócritas”.

Foi nesse momento que eu me arrependi de já ter pedido o prato principal.

Monogamia, eu continuei, é o tipo de relacionamento que eu prefiro, mas eu conheci (e conheço) muitos relacionamentos que dão certo em que os parceiros traçaram limites um para o outro, estabeleceram uma comunicação entre si e construíram uma fundação de intimidade e confiança. Eu disse então “Eu não acho que monogamia é pré-requisito para um relacionamento funcionar…”

Eu não consegui chegar ao fim da frase (que seria “… mas acho que é a escolha que dá mais certo para mim”). Antes disso ele cortou, na defensiva, “Bem, pra mim é“, me olhando como se eu tivesse pedido uma porção de bebê frito.

Foi nesse momento que eu me dei conta que o programa tinha acabado. Infelizmente, nós tínhamos um prato para comer e ele comia bem devagar.

Minhas impressões sobre relacionamentos mudaram ao longo dos anos conforme eu conheci mais e mais “relacionamentos abertos” que dão certo. Pessoalmente, eu conheço mais casos de “liberdade para se divertir” que “poliamor” na comunidade gay, apesar de estar certo que esse último também existe.

Para os iniciantes, distinguir entre um e outro pode parecer procurar cabelo em ovo, mas o poliamor em geral envolve relações amorosas entre duas ou mais pessoas, ou um relacionamento em que o amor (e geralmente o sexo que o acompanha) com alguém além do elo primário é permitido. O outro tipo de relacionamento, em que a “liberdade para se divertir” se torna mais um aspecto recreacional, parece ser mais comum no mundo gay masculino. O casal nesse último tipo de relação permite que o parceiro tenha “tempo livre” longe do elo primário: para explorar outras coisas, outras práticas, e às vezes apenas para saciar o desejo humano, puro e simples. Para alguém como eu que se considera pró-sexo, satisfazer o desejo soa inofensivo desde que seja no contexto de uma relação carinhosa e com boa comunicação. Em geral eu prefiro um tempo de intimidade junto do meu desejo, mas eu nunca achei que minha opinião sobre as proezas de alcova de outra pessoa seja de muito valor para o movimento LGBT. Sua cama é o seu reino.

Eu sempre evito ler os comentários em matérias mais controversas, mas minha curiosidade sobre psicologia e sociologia costuma ganhar no grito a batalha contra meu bom-senso. Eu acabo lendo os comentários mesmo assim. Um amigo compartilhou o link de um artigo entitulado “A Temível Verdade Sobre Monogamia Em Relacionamentos Gays”. É um texto bem-humorado em que o autor dá sua verdadeira opinião: “monogamia é simplesmente melhor”. E apesar dos esforços do autor em trazer leveza ao tema, as reações dos leitores pegaram pesado. As críticas! O medo! O asco! A xenofobia! A projeção!

Eu acho que a maioria dos gays acham que eles têm que ter relações abertas ou que isso é aceitável. Mas se você quer ser biscate, você deveria fazer isso sendo solteiro pq não importa o quanto você mente pra vc mesmo e diz que não tá magoado quando seu parceiro tá mais afim daquele cara que vc trouxe pra casa, ainda dói. E não importa o quanto seu parceiro mente pra ele mesmo que ele sente a mesma coisa e não incomoda ele. nós somos criaturas ciumentas não importa o que vc diga. e independente do quanto vc esconde seus sentimentos, todo mundo fica com ciúme quando outra pessoa põe a mão no que lhes pertence. Nenhuma relação é perfeita, mas eu acho que as abertas estão tentando esconder muito mais que as fechadas.

Eu acho que a maioria dos gays acham que eles têm que ter relações abertas ou que isso é aceitável. Mas se você quer ser biscate, você deveria fazer isso sendo solteiro pq não importa o quanto você mente pra vc mesmo e diz que não tá magoado quando seu parceiro tá mais afim daquele cara que vc trouxe pra casa, ainda dói. E não importa o quanto seu parceiro mente pra ele mesmo que ele sente a mesma coisa e não incomoda ele. nós somos criaturas ciumentas não importa o que vc diga. e independente do quanto vc esconde seus sentimentos, todo mundo fica com ciúme quando outra pessoa põe a mão no que lhes pertence. Nenhuma relação é perfeita, mas eu acho que as abertas estão tentando esconder muito mais que as fechadas.

Acho que eu seria capaz de gastar mais alguns parágrafos só analisando os escombros do que esse cara não entende sobre si mesmo, mas vamos simplesmente ignorar o que ele acabou de revelar para qualquer ser humano com o mínimo de conhecimento da psicologia humana. Bill Maher fez recentemente o seguinte comentário sobre a maneira que a comunicação digital acontece hoje em dia: “Em 1930 ninguém sequer pensaria em mandar um telegrama para Myrna Loy dizendo “Vai tomar no cu, Myrna Loy! Tomara que o Clark Gable te passe herpes!”. Atitudes como a do comentário acima desgastam as bases da sociedade. Claro que um comentário de um sem-noção não quer dizer que a sociedade vai desabar, mas junte dez desses numa sala e você tem um comitê, ou gabinete, ou congresso.

Como eu expliquei para o meu acompanhante naquela noite-fiasco, monogamia não é a única maneira de se relacionar que dá certo. Quem é contra gosta de enumerar relacionamentos abertos que terminaram com prova de que a monogamia é a escolha certa, deixando de lado o número imenso de relações monogâmicas que também desabam. Em abril de 2005 Anne Bancroft deu uma entrevista para Charlie Rose, que, comentando o longo casamento da atriz com Mel Brooks, disse “é algo mágico”. Bancroft, com seu jeito certeiro e implacável, respondeu “É o seguinte. Sabe o que mágica é? Muito esforço. Não passa de muito esforço.” Eu duvido que Bancroft concordaria com relações abertas, mas sua filosofia se aplica a todo tipo de relacionamento: requer esforço. O único jeito de ter um relacionamento bem-sucedido é continuar nele. Relacionamentos às vezes afundam.

Sua opinião sobre sua própria superioridade moral não vai fazer o relacionamento de ninguém melhor ou pior, mas as suas críticas degradam a sociedade e os avanços que nós fizemos nos direitos civis. Claro, você, malafaias e outros pastores têm direito à própria opinião, mesmo que ignorante. Mas quem tem mente pequena não é capaz de compreender que uma opinião não pode se tornar regulação, quando essa regulação é sinônimo de subjugar outros como se não fosse nada. Meu norte moral aponta apenas para o seguinte: suas escolhas são inofensivas para os outros, e elas fazem você mais feliz? Se sim, minha opinião a respeito tem tanto valor quanto qualquer historinha de superioridade moral. Ou seja: zero.

Eu sou um ser humano, assim como você, e a nossa felicidade mútua a maior contribuição para a sociedade como um todo.

Traduzido (com algumas liberdades) do post original de Tom Gualtieri.

Confira também o Lado Bi da Monogamia.

Apoie o Lado Bi!

Este é um site independente, e contribuições como a sua tornam nossa existência possível!

Doação única

Doação mensal:

5 comentários

Jeff

Eu acho que cada pessoa deve viver a modalidade de relacionanento que mais lhe deixa feliz. Eu escolhi a monogamia. E sou taxado de moralista por me posicionar contra a infidelidade praticada por pessoas que se dizem monogamicas. E por achar muita sacanagem quando um cara aceita sair com alguem comprometido, se tornando assim conivente com uma traiçao. A gente nao precisa cair para o moralismo. Mas a empatia tem que existir sempre.

Marcio Caparica

Você pode ser monogâmico, acho super digno e uma opção super válida. Mas você não precisa se posicionar com relação aos relacionamentos DOS OUTROS. Cada um cuida do seu. 🙂

Jeferson

Existem muitos poligâmicos que falam de si com superioridade também. Como se monogamia fosse algo falido, heteronormativo (sim, já li asneiras assim), Construção social etc. Já vi gay dizendo-se contra o casamento homoafetivo porque isso seria uma coisa de héteros. Conheço vários casais monogâmicos e poligâmicos que dão muito certo! E tem também os que eu chamo de poligâmicos unilaterais. Os famosos hipócritas de quem quero distancia. A unica regra que essas pessoas seguem em um relacionamento é “Eu sou de quem eu quiser mas você é só meu”.

Suzana

Opa peraí, o que é que ter várixs parceirxs tem a ver com monogamia e poligamia? Monogamia e poligamia são ter um RELACIONAMENTO com uma ou várias pessoas, relacionamento não é só sexo não, gente.

Comments are closed.