Recentemente escrevi aqui um post em que eu elogiava a atitude dos americanos ao perguntarem/revelarem seu status de HIV quando vão transar com alguém. Conversando com alguns amigos, descobri o real motivo por trás dessa pretensa sinceridade.
O site ProPublica publicou um artigo chamado “Sexo, Mentiras e HIV” relata a história de Nick Rhoades, um americano de 39 anos, que foi condenado a 25 anos de cadeia por ter transado com Adam Plendl, um rapaz de 22, sem ter informado seu status de HIV.
A acusação? Transmissão criminosa de HIV. Acontece que não houve transmissão nenhuma. Além de Rhoades ter usado preservativo com Plendl, ele faz tratamento com medicamentos antirretrovirais, o que tornam suas chances de contaminar alguém com o vírus HIV quase nulas, conforme médicos que testemunharam a seu favor atestaram à corte.
Após essa alegação, a pena do rapaz foi reduzida para 5 anos de condicional, mas ele permanecerá fichado, para o resto de sua vida, como agressor sexual. Isso quer dizer que ele não poderá ficar sozinho com menores de 14 anos, inclusive sobrinhos e sobrinhas, para o resto de suas vida.
O caso de Rhoades não é isolado. Na última década, houve pelo menos 541 casos de pessoas que foram condenados ou declararam culpa por não ter feito o chamado “disclosure”, ou seja, revelar ao parceiro sua condição sorológica. Pelo menos 35 Estados americanos têm leis específicas para criminalizar pessoas que expõem outras ao HIV. Em 29 Estados é considerado crime e nenhuma das leis exige que haja transmissão para ser aplicada.
Os réus desse tipo de caso são geralmente sentenciados a anos, algumas vezes décadas, de prisão, mesmo que eles tenham usado camisinha e tomado outras precauções para proteger seus parceiros. Em 60 casos examinados pelo ProPublica, apenas quatro envolveram infecção com HIV. Mesmo em tais casos, é difícil provar quem transmitiu o vírus sem testes genéticos que comprovem que o vírus do acusado é o mesmo do acusante.
Algumas pessoas cumpriram pena por cuspir, esfolar ou morder. De acordo com o Centro de Prevenção e Controle de Doenças, cuspidas e esfoladas não transmitem HIV. E a transmissão por meio de mordidas é muito rara e envolve circunstâncias muito específicas.
Essas leis têm causado muita controvérsia. Há os juristas que defendem a lei, porque ela previne que pessoas saiam por aí espalhando o vírus. Jerry Vander Sanden, promotor em Linn County, Iowa, disse ao ProPublica que não punir o cara que sabe do risco e não revela, seria como “punir o estuprado pelo estupro, dizendo que ele deveria ter tomado mais cuidado”.
E embora muitos gays apoiem esse tipo de lei, sabemos que muitos gays se expõem ao HIV deliberadamente conforme discutimos com o jornalista Bruno Machado, que fez um ensaio jornalístico sobre sexo sem proteção no Lado Bi nº 34 – Camisinha. Sem falar que estupro é sexo sem consentimento. O cara que transa com alguém sem proteção está consentindo e sabe do risco que corre ao transar sem. Então essa lei tem uma aplicação extremamente controversa, afinal ela culpa exclusivamente o soropositivo, MESMO QUE ELE NÃO TENHA TRANSMITIDO, e exime o denunciante de qualquer responsabilidade por sua exposição. Minha opinião é a de que ambos têm responsabilidade pela exposição.
Agora, outro aspecto bastante interessante que o texto levanta é como esse tipo de lei pode levar a epidemia de Aids a um descontrole.
Alguns experts em leis dizem que usar pena criminais para deter a expansão do vírus da Aids pode fazer o tiro sair pela culatra. De acordo com o Centro de Controle de Doenças, 1,1 milhão de americanos vivem com HIV, mas 1/5 deles não sabe de seu status. Além disso, estudos comprovam que pelo menos metade nos novos infectados contraíram o vírus dessas pessoas que não sabem de sua situação sorológica.
Segundo esses especialistas, a lei pode exacerbar o problema: Se as pessoas podem ser presas por saber e expor outras ao HIV, sua melhor defesa pode ser a ignorância. Tais leis podem criar um poderoso incentivo para que os cidadãos não façam mais testes de HIV.
“Leis que põe a responsabilidade em apenas uma parte, a pessoa soropositiva, fazem com que as pessoas que não são soropositivas – ou que acreditam não ser – acreditar que elas não têm que fazer nada para se cuidar, apenas esperar que o parceiro lhe conte seu status”, diz Scott Schoettes, um advogado que supervisiona esse tipo de caso para a Lambda Legal, uma associação nacional de defesa dos direitos dos homossexuais. Schoettes diz ainda que essas leis apenas a ajudam a estigmatizar o HIV e reforçam preconceitos sobre quem vive com o vírus. “Não há motivo para que soropositivos sejam tratados dessa maneira, a não ser o medo e o preconceito.”
Outro ponto que o texto discute é o fato de que muitos soropositivos não revelam seu status por medo de serem estigmatizados. Desde julho de 2010, o departamento de Justiça dos Estados Unidos abriu pelo menos 49 investigações sobre acusações de preconceito contra soropositivos em prisões estatais, clínicas médicas, escolas, funerárias, companhia de seguro e até centros de reabilitação de drogas e álcool. Pessoas com HIV nem sempre contam exatamente por medo de rejeição, constrangimento e ostracismo.
No Canadá, a coisa é meio parecida. No programa Lado Bi nº 34 – Camisinha, comentei o que meu amigo Alexandre Weerth, que mora lá falou sobre como funciona a jurisprudência desse tipo de caso por lá: “Você pode ser preso por transar com uma pessoa sem revelar seu status, mesmo que você não a tenha contaminado. Mas, se você for soropositivo e não tiver revelado seu status, mas possuir uma carga viral abaixo de 1.500 cópias (do vírus) por mililitro de sangue, a lei não considera que você tenha posto ninguém em risco. A questão lá, disse esse amigo, tem muito a haver com o aspecto econômico, já que no Canadá o governo não fornece os medicamentos antirretrovirais gratuitamente como no Brasil.
Meio complicado, né? Complicado não, discriminatório mesmo. Afinal de contas, existem muitos outros vírus que podem ser transmitidos de pessoa para pessoa e que também colocam sua vida em risco (como o da gripe suína) e cuja transmissão não é punida com os rigores da lei. Então, por que apenas o HIV, que hoje pode se tratado com remédios que dão longa vida aos infectados e que reduz sua capacidade de transmitir o vírus a quase zero é tratada dessa maneira? Obscurantismo puro.
Mesmo Plendl, o homem com quem Rhoades transou, acha a lei draconiana demais. “Acho que ele tem que ir pra cadeia para sempre? Não. Acho que essas leis precisam ser revisitadas? Sim.”
Mas como a polícia soube do ocorrido? A boa e velha fofoca da bicha maledicente. Um “amigo” de Rhoades contou a Plendl que ele estava “doente” e o rapaz se desesperou. Correu para o hospital para fazer teste e tomar medicamentos que impedissem o alastramento de uma possível infecção. Lá, a enfermeira que o atendeu chamou a polícia e ele deu depoimento. Plendl disse que jamais pensou em prestar queixa à polícia.
A história completa, publicada também no Buzzfeed, está aqui em inglês.
Abaixo, um vídeo com o depoimento de Rhoades à polícia:
Nossa, eu tô muito chocado com isso. Os EUA é o país mais escroto e não deve nada à Rússia e a países dominados por fundamentalistas islâmicos ou ditaduras despóticas no que se refere ao punitivismo do Estado e a querer botar todo mundo na cadeia. A enfermeira é que deveria ser presa por quebrar sigilo médico. Quero pesquisar mais a fundo, pois não é possível que isso ainda não tenha sido questionado na Suprema Corte americana, isso viola vários pontos da Constituição deles e da jurisprudência e doutrina que eles tem por lá, isso falando por alto do pouco que eu conheço do ordenamento jurídico deles. Tô chocado também com esse post não ter tido uma puta repercussão em comentários de leitores. Sobretudo pq na conjuntura política em que estamos desse Congresso ultra conservador presidido pelo homofóbico, machista e corrupto Eduardo Cunha, que já patrocinou vários retrocessos só esse ano uma lei desse tipo passaria facilmente por aqui, ainda que, e aí eu não tenho qualquer dúvida, tal lei não teria nenhuma receptividade pela nossa Contituição e seria derrubada pelo STF, mas o estrago político que isso faria em termos de retrocesso de pensamento, de estigmatização das pessoas HIV+, de aumento da lgbtfobia, de criminalização da sexualidade em geral, de aumento do higinienismo, moralismo e normatividades. Nossa, uma grande affe prá essa história.
[…] 15 – É bom ressaltar, no entanto, que nos EUA, Canadá e Europa quase como um todo, é comum que as pessoas revelem seu status sorológico antes de transar com alguém. Em muitos casos é porque elas querem saber se podem transar sem preservativo, mas em geral é porque a lei obriga que se faça essa revelação antes do sexo para que a pessoa não seja responsabilizada juridicamente por ter transmitido o HIV. Em alguns estados norte-americanos, no entanto, a pessoa pode ser responsabilizada mesmo sem ter tra… […]
[…] É bom ressaltar, no entanto, que nos EUA, Canadá e Europa quase que como um todo, é comum que as pessoas revelem seu status sorológico antes de transar com alguém. Em muitos casos é porque elas querem saber se podem transar sem preservativo, mas em geral é porque a lei obriga que se faça essa revelação antes do sexo para que a pessoa não seja responsabilizada juridicamente por ter transmitido o HIV. Em alguns Estados americanos, no entanto, a pessoa pode ser responsabilizada mesmo sem ter transmiti… […]