Out In The Line-Up

“Ser gay e ser surfista são duas paixões sem volta”

Ian Thomson, diretor do documentário sobre surfistas gays “Out In The Line Up”, discute a intolerância no surfe em entrevista exclusiva

por Marcio Caparica

Associações imediatas a surfe: prancha, parafina, bronzeado, calor que provoca arrepio… a lista pode seguir por um bom tempo, mas dificilmente “gay”, “homossexual” ou “lésbica” vai aparecer cedo nela. Isso porque, apesar de ser um esporte pretensamente zen, calcado no companheirismo e no amor ao oceano, o surfe também é um dos ambientes mais intolerantes com os homossexuais. E não é esse rato urbano atrás do teclado quem afirma isso, mas sim Ian Thomson, o diretor do documentário Out In The Line-Up, com previsão de lançamento em 2014.

Out In The Line-Up acompanha dois surfistas gays em uma viagem ao redor do globo. David Wakefield é australiano. Ex-campeão estadual, ele passou 20 anos escondendo sua homossexualidade por medo das reações de outros surfistas, até descobrir o site gaysurfers.net . Lá ele fez amizade com seu fundador, Thomas Castets, que o encoraja a se declarar gay. Quando finalmente toma coragem, ele sai triunfalmente do armário na Sydney Mardi Gras Parade, e se torna o assunto da mídia australiana. Os dois decidem então usar todo esse barulho para tentar mudar a cultura homofóbica do surfe, e unem suas forças na produção desse documentário.

O filme agora está em fase final de produção, com uma campanha no Kickstarter para ajudar com os custos de distribuição e edição. Via e-mail, o diretor Ian Thomson deu essa entrevista exclusiva ao LADO BI sobre a homofobia no surfe e como seu filme pode ajudar surfistas gays a conciliarem suas paixões por ondas e pessoas do mesmo sexo.

OUT IN THE LINE-UP: A Film about Homosexuality in Surfing from Gay Surfers on Vimeo.

Ian Thomsom

Ian Thomson, diretor de “Out In The Line-up”

Talvez eu esteja fazendo uma pergunta imbecil, mas tenha paciência com alguém que nunca surfou na vida. Me parece que surfar é um esporte individual que atrai gente que gosta de ficar sozinho no mar esperando o momento de pegar a onda perfeita. Por que é então que os surfistas se preocupam tanto com o que outros surfistas pensam a ponto de ficar no armário? Esse tipo de preocupação acontece mais entre surfistas profissionais, ou ocorre entre surfistas de todos os níveis? Dá para ser um surfista sem fazer parte da comunidade de surfistas?

Apesar do ato de surfar ser muito individual, socialmente o surfe se tornou uma cultura muito tribal. Como explicou em nosso filme o professor de Estudos de Mídia e Questões de Gênero que nós entrevistamos na China, essa cultura brotou de grupos de homens jovens que pegavam para si as praias locais e saíam para viajar juntos para descobrir e tomar conta de novos lugares onde surfar. Isso levou a uma territorialidade muito forte na cultura do surfe. Para se dar bem nas ondas, além da pressão para se surfar bem, há a de pertencer à tribo local. É por isso que qualquer um que é diferente tem medo de demonstrar essa diferença, por medo da rejeição de sua comunidade local de surfistas. Isso acontece no nível mais roots do surfe; talvez haja menos disso no surfe profissional, já que lá a performance tende a ser o principal indicador de hierarquia e aceitação. É possível se manter fora disso, mas é sinônimo de ter que encontrar algum canto em que se consiga surfar sozinho, o que é cada vez mais difícil já que a popularidade do surfe só aumenta, ou se resignar às ondas menores.

Eu tenho um amigo que pratica artes marciais, e, apesar dele viver fora do armário quase o tempo todo, ele se finge de hétero por vontade própria entre seus colegas de jiu-jitsu porque esse é um ambiente extremamente HT e intolerante. A mesma coisa acontece entre surfistas? 

Eu só posso falar do que outros surfistas gays que nós entrevistamos disseram, não é um estudo científico, mas vários deles contaram que sentiram uma pressão muito grande para não expor sua sexualidade para seus amigos surfistas e essas comunidades. Alguns passaram por rejeições e ostracismo por causa disso. Mas parece que isso tende a mudar. A geração mais jovem de surfistas parece se importar menos com isso que seus predecessores.

Seguindo essa analogia, muito dessa heterossexualidade forçada das artes marciais acontece porque, além da postura de macho que elas exigem, há muito contato físico entre homens – e eles aparentemente se sentem mais confortáveis ao se agarrarem se não há chance do oponente estar curtindo. Qual é a raiz desse padrão de heterossexualidade entre surfistas?

Aquele professor de Questões de Gênero que nós entrevistamos para o filme descreve isso com perfeição: como a essência do surfe teve início no ocidente por meio desses grupos de homens jovens que surfam e convivem muito, eles tinham que enfatizar uns para os outros que toda essa atividade “só para meninos” NÃO ERA homoerótica, o que de um lado levou para a objetificação das mulheres, e de outro, a rejeição de qualquer coisa que pusesse em risco essa percepção deles como héteros; daí ser muito comum o uso de linguagem homofóbica para rebaixar outro surfista homem na cultura do surfe.

Esse tipo de intolerância acontece igualmente para surfistas homens e mulheres, ou é mais fácil ser uma surfista lésbica?

Os problemas de surfistas lésbicas são um pouco diferentes. Muitas das surfistas homossexuais com quem conversamos disseram que, como mulheres surfistas, elas costumam ser repeitadas e protegidas pelos surfistas homens das praias que frequentam – contanto que todos pensem que elas são heterossexuais. Depois de saírem do armário muitas reclamaram de serem constantemente agredidas verbalmente, sendo chamadas de “sapatonas agressivas” – especialmente se elas pegavam uma onda melhor, ou surfavam melhor que os homens ao redor. As surfistas profissionais que entrevistamos relataram haver uma pressão gigantesca dos patrocinadores para que elas NÃO agissem como gays, já que isso torna mais difícil conseguir ensaios fotográficos e mais patrocinadores.

Qual é o efeito que você espera que seu filme tenha entre os surfistas? Viver sua sexualidade abertamente é a maior arma que os gays têm para melhorar suas vidas e seu nível de aceitação?

Certamente a gente torce para que o filme derrube alguns estereótipos e abra o caminho para mais abertura e aceitação. Nossa intenção é iniciar uma conversa que possibilite um futuro em que ser abertamente gay no surfe não seja mais uma questão.

Thomas e David passaram por vários países para fazer esse filme. A intolerância à homossexualidade é igual em todos os lugares?

Não há dúvida de que há níveis distintos de aceitação à homossexualidade nos vários países que visitamos enquanto filmávamos o documentário. Temos a impressão de que nos EUA há mais surfistas mulheres fora do armário que na Austrália, onde, apesar da cultura ser muito tolerante, ainda há uma prevalência masculina à moda antiga no esporte. Sentimos que na América do Sul a tradição religiosa mais forte torna mais difícil para alguns de nossos protagonistas se assumir. Na Ásia, nos parece que a cultura como um todo é menos machista e talvez lá há um potencial maior de se abrir mais rapidamente que em grande parte das culturas ocidentais. Na África, o casal de surfistas gays que nós ouvimos vivem com medo de arriscarem a própria vida se sua homossexualidade vier a público.

Por fim, quando alguém se aceita homossexual, isso se torna uma parte muito importante de sua própria identidade. Pode-se dizer que o mesmo acontece com o surfe? Assim como é impossível “curar” a homossexualidade e se tornar um ex-gay, é impossível se tornar um ex-surfista?

Para alguns de nossos personagens, tanto ser gay como ser surfista são coisas que eles não conseguem nem querem mudar. Para alguns outros, eles se afastaram do surfe por causa da pressão que sentiam por não serem aceitos como são. Mas provavelmente você poderia dizer que a paixão por pegar onda é difícil de negar pelo resto da vida, assim como quando você se aceita gay. Ser gay e ser surfista são duas paixões sem volta.

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4 comentários

Arthur Sacramento

Sou um dos “backers” desse documentário e acho que o lançamento desse filme será extremamente importante para nossa comunidade. Digo “nossa comunidade” porque sou gay e surfista e nunca saí do armário no surfe. Pelo contrário, parei de surfar com medo do poderia acontecer quando eu saí do armário ainda nos anos 80. Hoje voltei a surfar e me sinto mais tranquilo e feliz. Quando vi esse documentário sendo gravado, fiz tudo o que pude para ajudar. Ano passado em Oahu no Hawaii ainda enfrentei preconceito e tive que ir surfar longe de Waimea, Pipeline e Sunset. Fui surfar em Haleiwa, onde as ondas são menores e tem menos preconceito.

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