Traduzido do artigo de Tracy Clarke-Fiory para o site Salon.com
“Cum Dumpster” (“Depósito de porra”, em tradução livre) não é bem o título de que se esperaria para uma canção numa ópera. Mas, até aí, há drama, comédia e tragédia característicos das óperas de sobra na história de Jack, o auto-entitulado depósito de porra do título da canção, que está usando um aplicativo de pegação gay para realizar seu sonho de contrair HIV. “Eu tenho uma boca quente e faminta, e seu sêmen vai alimentá-la”, canta ele. “E então você pode me foder forte até eu sangrar… Sangrar! Eba!”. Assim, meus caros amigos, é Grindr: The Opera, que acabou de completar uma rodada de leituras dramáticas em Nova York na esperança de estrear nos teatros off-Broadway no próximo semestre.
Apesar do título do espetáculo, as canções tendem mais para o pop e o rock. Mas a trama é bastante fiel ao título: ela segue quatro gays que utilizam o Grindr com diferentes objetivos. Além de Jack, há Don, um empresário que vive no armário – “Eu tenho uma boa carreira, uma casa de veraneio, um barco, uma esposa”, canta – e busca garotos “quase menores de idade” e não tem medo de pagar por seus serviços. Há também Devon e Tom, que utilizam o aplicativo para marcarem um encontro que se transforma num relacionamento de verdade. Outro personagem é o próprio Grindr, personificado por uma drag queen sedutora com cabelo louro platinado, vestindo uma máscara que remete à máscara presente no logotipo do aplicativo. É exagerado, sem sombra de dúvida, mas isso não impede o espetáculo de mirar alto. Como diz o website da peça, “apesar de a ópera viver no mundo da paródia, ela toca em algumas questões muito sérias e polêmicas que existem na comunidade gay conforme ela entra numa época de aceitação mais ampla e acesso fácil a oportunidades de encontrar romance e saciar os desejos.”
Eu conversei com o escritor do espetáculo, Erik Ransom, sobre as experiências que teve no Grindr, como o aplicativo mudou a cultura dos encontros e o que ele significa para os relacionamentos gays.
De onde veio a ideia para esse roteiro?
Na verdade essa ideia veio do Manhunt.net, há alguns anos, antes mesmo de o Grindr existir. Eu tinha muitos amigos que estavam no site e eu o frequentei por algum tempo para conferir como era. Alguns perfis me chamaram muito a atenção. Havia os engraçados, outros trágicos. Eu tive a sensação de que havia uma ópera ali. Eu comecei a escrever e, quando eu estava na metade, me ocorreu que já estava meio obsoleto porque a cultura do aplicativo estava em crescimento. O que estava fazendo sucesso na época era o Grindr, então eu me esforcei para adaptar o espetáculo para que tudo ainda funcionasse. Eu percebi que o Grindr poderia se tornar um personagem. No espetáculo, o Grindr é interpretado por uma drag queen que canta em contratenor e funciona como uma sereia mitológica, atraindo os homens para suas sinas sexuais.
É assim que você enxerga o Grindr, que ele está atraindo os homens para a morte?
Eu tenho considerações complicadas sobre o Grindr. Eu não acho que ele seja ruim. Eu sou um usuário ativo do Grindr. Acho que há muitas pessoas diferentes procurando por coisas diferentes e por maneiras diferentes de se conectar à vivência humana. Às vezes isso dá certo que é uma beleza, e às vezes isso acaba em tragédia. É isso que queremos retratar. Há pessoas que encontram o que querem, e há quem encontre decepção e frustração.
Você disse que achou as histórias trágicas e engraçadas no Manhunt. Você tem algum exemplo?
As coisas engraçadas não me vêm à mente agora. Você vê esse tipo de coisa o tempo todo hoje em dia; há artigos no BuzzFeed com os diálogos mais engraçados no Grindr, esse tipo de coisa. Eu lembro de um em que alguém escreve apenas a palavra “near” (“perto”, em inglês) e o outro responde “far, wherever you are” com uma foto da Celine Dion. Coisas assim.
Quanto à tragédia, há alguns comportamentos realmente temerários que eu encontrei: pessoas em busca de sexo bareback. Se você conhece a comunidade de bug-chasers, há pessoas que ativamente buscam contrair HIV por motivos que eu considero fascinantes. Isso me inspirou a explorar esse tema no espetáculo.
Sim, um dos personagens do espetáculo está no Grindr em busca de transas com soropositivos. Ele quer contrair HIV. Você poderia explicar essa trama?
Há muitas razões diferentes por que alguém se torna um bug-chaser. O fio condutor que eu exploro no espetáculo é o de alguém que se sente meio perdido e abandonado, e sente que ao contrair o vírus ele vai ganhar uma comunidade que não está presente em sua vida. Ele sente que há um mundo que lhe é negado e que, se ele pegar HIV, ele vai encontrar alguém que quer ser amado mas pensa que nunca mais vai encontrar ninguém por causa do vírus.
Aqui na cidade há muitos jovens sem teto que se tornam bug-chasers porque assim vão ganhar subsídios para moradia e planos de saúde gratuitos. É um sintoma fascinante de algo que eu acho que é muito bom – acho que é muito bom que essas oportunidades existam para as pessoas que vivem com o HIV. Claro, essas pessoas são uma pequena minoria de uma população muito mais ampla que se beneficia dessas iniciativas. Eu não criticaria a cidade por promover esses benefícios, mas é um efeito colateral interessante.
Eu também quero frisar que esse segmento do espetáculo é uma parte muito pequena. O tema do espetáculo não é essa comunidade. O espetáculo trata de relacionamentos e como eles estão mudando por causa dessa cultura de aplicativo que está cada vez mais forte.
Como essa cultura do aplicativo está alterando os relacionamentos?
Eu observei uma mudança muito veloz na cultura gay, que está se espalhando para o Tinder, Blendr etc. na cultura hétero. Eu saí do armário quando era bem jovem e quando eu me tornei maior de idade, eu passei a frequentar bares. Eu bebia para criar coragem e chegar na pessoa que eu estava a fim, e nós começávamos a conversar. O que eu vejo é que agora as pessoas não fazem mais isso. As pessoas vão para os mesmos bares, abrem o aplicativo e conferem quem está por perto. Se eles encontram uma pessoa no aplicativo, eles chegam junto via app. Ao invés de se arriscarem ao caminhar até a pessoa e se colocar numa posição de ser ativamente rejeitado, eles preferem esse tipo de rejeição blindada, em que alguém pode simplesmente não lhe responder. Tipo, ah, ele não me respondeu, mas quem sabe ele só não está conferindo o app agora, ou quem sabe ele tem um namorado – há tantas desculpas que se pode inventar para amenizar o golpe daquela rejeição.
Depois da nossa primeira apresentação, eu conversei com pessoas que contaram que muitos dos clubes gays estão fechando por causa disso. A gênese da interação moderna entre gays vem de uma época em que realmente era proibido ter esse tipo de encontro, e as pessoas iam para lugares clandestinos; pense em portinhas em inferninhos, com senha para entrar. Daí, com a liberação sexual dos anos 1970, podia-se fazer isso um pouco mais abertamente, e nos anos 1980 os clubes se tornaram lugares públicos. Hoje em dia isso não é mais necessário. O aplicativo facilita uma liberdade sexual que é excelente para muitas pessoas, mas é complicada para outro grupo que pode estar em busca de relacionamentos mais tradicionais e heteronormativos.
Por que uma ópera?
Quando eu estava pesquisando as histórias no Manhunt, eu senti que aquilo rendia uma ópera. Senti que eles poderiam se tornar esses momentos melodramáticos e extremos. Esse é um espetáculo sobre quatro homens gays, é muito íntimo, mas eu também o considero um épico, por causa da música e como nós a tratamos. A piada do título Grindr: A Ópera é essa justaposição do fútil com o dramático. Acho que é isso que nos rendeu a atenção que conseguimos até agora, e me fez pensar em nosso slogan, “When class meets crass comes camp” (“Quando a classe encontra o bas-fond, surge o exagero”, em tradução livre). Ainda se imagina pessoas usando colares de pérola e casacos de pele ao irem para a ópera, e daí você pensa no Grindr, em que do nada pessoas mandam fotos do pau para outras. Aí está a piada. Espero que quando o público assistir ao espetáculo, percebam que ele não é apenas uma brincadeira.
O espetáculo, na minha opinião, trata de uma mudança cultural. É algo sobre o que eu gostaria que as pessoas refletissem e conversassem. Acho que o espetáculo termina não com uma resposta, mas com várias perguntas.
Você quer passar alguma mensagem com essa peça?
Essa é a questão: como as coisas estão mudando? É tudo tão rápido. O Grindr se tornou popular em 2009 – não faz nem dez anos, e ele mudou completamente a cultura. Para melhor e para pior. Mais uma vez, acho que ele trouxe coisas incríveis. Há quem encontre o amor de sua vida com esse app. Mas há esse outro lado, não só da rejeição, mas também de como é fácil rejeitar. Acho que o Tinder é um exemplo melhor disso, é tão simples arrastar o dedo para a direita ou para a esquerda. Você vê a foto de alguém e o desdenha com uma legendinha que diz “não”. Eu acho isso tenebroso.
Falando de efeitos negativos, há na peça um casal num relacionamento estável que começa a sofrer com tentações externas por causa do Grindr?
Isso mesmo. Outro aspecto do Grindr que eu acho interessante pela minha própria experiência e, digamos, pesquisa, é de como ele pode se tornar viciante para algumas pessoas, como se tornou viciante para mim. Eu acordava de manhã e conferia o aplicativo antes de mais nada. Há quem diga que as curtidas do Facebook fazem com que o corpo produza dopamina, o que faz com que as pessoas fiquem felizes. Sobreponha a isso questões de romance, sexo, intimidade. Quando você entra nessa, você se pega pensando “eu vou para a Filadélfia hoje, vamos ver quem me curte por lá? Por que eu sou mais popular numa cidade que em outra?”. É uma questão de aprovação, e quando ela vem, é uma delícia. Mesmo que você não queira pegar ninguém, você pensa “Alguém me acha gostoso!”. Nós fazemos do Grindr um personagem que literalmente interage com um dos outros personagens e o seduz. O Grindr pode se tornar seu namorado. Ele na verdade são várias pessoas dizendo coisas diferentes, mas pode ser considerado como se fosse um relacionamento, em que você tem que comparecer regularmente, e traz um tipo de satisfação que você procura.
Nossa balada romântica no espetáculo se chama “We Met on Grindr” (“Nos conhecemos no Grindr”). O tema da canção é “Até que enfim eu encontrei um cara por quem vale a pena sair do Grindr”. Essa é uma mudança grande em nossa cultura. O status do Facebook também: quando você muda o status no Facebook, quer dizer que é oficial. É oficial no Facebook. Na comunidade gay, apagar o Grindr é um gesto importante – eu mesmo já fiz isso. Durante meu último namoro, chegou o ponto em que eu tomei essa atitude, “agora é algo sério, eu vou apagar o Grindr”.
A peça se apoia em quatro gays que se encaixam em diversas “tribos”. A ideia de se designar tribos pode ser controversa. Qual é a sua opinião a esse respeito?
“Tribos” foi algo que o Grindr lançou faz um tempo, mas acho que não mantém mais. Houve uma época em que ele permitia que você se categorizasse como twink, urso, coroa, normal, atlético. Isso por si só era interessante para mim, e eu quis explorar como essas pessoas são reduzidas a essas tribos. No Grindr, você mal tem um tweet para descrever quem você é e o que quer. Nós temos a vantagem de termos essas canções em que os personagens podem declarar suas intenções, que buscam e por que. Exploramos como as pessoas acabam se metendo nessas tribos, e vêm a aceitá-las ou a desafiá-las.
Sua experiência no Grindr foi positiva, no fim das contas? Acho que sim, já que você continua utilizando.
Foi uma experiência educativa, e agora que eu sei o que eu quero e o que as outras pessoas querem, minhas expectativas se ajustaram, o que é ótimo. Semana que vem eu vou sair com alguém que eu conheci no Grindr.
Seu perfil no Grindr diz que você escreveu a ópera do Grindr?
Meu username é GrindrTheOpera. Para falar a verdade, eu encontrei um dos membros do elenco no Grindr.