Traduzido do artigo de Laurent Chambon para o Rue 69/Le Nouvel Observateur
Era uma segunda-feira de manhã, no colégio holandês em que eu dava aulas de francês. Na véspera os opositores da igualdade entre héteros e gays na França haviam erguido cartazes com slogans cheios de ódio e vestido chapéus azuis em enormes passeatas. A televisão holandesa havia iniciado o telejornal de domingo à noite com essas imagens espetaculares e um comentário pasmado da correspondente em Paris, dizendo algo como “centenas de milhares de franceses negam a igualdade para os homossexuais”.
Minha turma de ensino médio estava um pouco inquieta, e eu lhes perguntei o que havia de errado.
“Professor, por que é que as pessoas estão indo às ruas na França para negar o casamento aos gays?”
Eu então lhes expliquei que o governo de esquerda, formado depois da eleição presidencial do ano anterior (algo que praticamente a Holanda inteira havia seguido e comentado) havia dado início ao debate sobre estender o casamento aos casais homoafetivos. Eu tentei aproveitar essa oportunidade para falar da oposição entre a esquerda e a direita e dos nomes dos diferentes partidos. Mas a classe continuava febril.
“Mas, professor, a gente não entende por que eles são contra.”
Eu tentei explicar então a influência da Igreja, os problemas que a oposição tem em formar alianças, tudo mais. Eles não engoliram nada disso, o barulho da classe só aumentou, eu sentia que seria obrigado a aplicar algum tipo de castigo para controlar a classe.
Finalmente uma garota um pouco mais articulada que o resto resolveu falar…
“O que eu não entendo, professor, é por que essas pessoas se incomodam tanto que os outros se casem. Isso não é da conta deles. Eles não vão ser obrigados a se casarem com um homem se eles forem homens, ou com uma mulher se elas forem mulheres.”
“Isso aí, você não deve ter explicado direito, a gente ainda não conseguiu entender a razão!”
Em suma, o professor que é incompetente.
E eles estavam certos, eu não fui capaz de encontrar um único argumento que prestasse em favor dos manifestantes da véspera. Eu podia tentar tagarelar sobre as manobras da Igreja ou sobre o partido UMP prestes a explodir sob a ameaça do FN, mas nenhuma dessas razões tem credibilidade aos olhos desses jovens. Eu não sei se a mesma coisa acontece nas faculdades e escolas francesas, mas uma colega minha que também ensina francês na sala ao lado disse que seus alunos tinham as mesmas perguntas, e ela também teve muita dificuldade em explicar-lhes o porquê.
Em 2013 fazia doze anos que os casais homoafetivos podiam se casar na Holanda. Chegou-se a esse resultado graças a um debate, no final dos anos 1980, sobre a questão da igualdade. Esse debate levou a uma emenda constitucional em 1991 (o artigo primeiro da Constituição estipula que todos devem ser tratados de maneira igual) e ao estabelecimento de uma parceria civil aberta a todos os casais em 1997.
Essa parceria civil foi sendo aprimorada a tal ponto que suas consequências jurídicas tornaram-se as mesmas do casamento, o que fez que finalmente o casamento fosse concedido a todos os casais no começo do século 21. A prefeitura de Amsterdam se apressou para casar vários casais homoafetivos no dia primeiro de abril de 2001 às 00:01 h, perante as câmeras do mundo todo. Amsterdam, a cidade mais tolerante do mundo! O departamento de turismo estava exultante.
E depois? Nada.
Quer dizer, quase nada. Nem tudo foram flores. Mas não como esperavam.
Houve o 11 de setembro e o assassinato de Pim Fortuyn, o populista maluco. Os Países Baixos se dividiram sobre a questão do Islã, Rita Verdonk foi a primeira a conclamar os gays a votarem a seu favor, em nome da igualdade entre homossexuais e heterossexuais que estava sendo ameaçada pelos vilões muçulmanos. Geert Wilders tomou o lugar dela, sem deixar de bater nessa mesma tecla.
Acima de tudo, os Países Baixos foram eliminados sistematicamente de todas as competições do Eurovision, mesmo depois de ter experimentado com gente louca, gente velha, uma turca, com negros, com caipiras, mais gente louca, e loiraças. Nada a fazer. Um verdadeiro drama nacional.
Muitos católicos, em grande parte heterossexuais, abandonaram a Igreja por causa de sua atitude intransigente e de seu ódio pelos homossexuais. Os gays e lésbicas não são numerosos, mas entre seus pais, seus irmãos e irmãs, seus amigos e seus colegas, eles têm toda a importância do mundo.
Muitas igrejas protestantes mudaram suas opiniões sobre o assunto. As mais progressistas condenam todo tipo de discriminação como sendo contrário ao espírito da mensagem de Jesus. Outras sofrem para justificar o tratamento distinto entre os casais homoafetivos e heterossexuais, da mesma maneira que sofrem para justificar a posição inferior das mulheres dentro da sociedade, da família e da comunidade.
Os partidos políticos democrata-cristãos já nomearam ministros assumidamente LGBT. O partido CDA chegou até a nomear um gay feio, obeso e incompetente para ministro da Fazenda durante o penúltimo governo, provando que mesmo os homossexuais podem ascender a um posto em que vão chamar a atenção por sua nulidade e sua feiúra, igual aos heterossexuais.
Quando esse ministro anunciou que finalmente havia se casado com seu parceiro, os holandeses aplaudiram educadamente, perguntando-se discretamente que tipo de homem é capaz de gostar tanto de um marido assim tão feio. Será que é a sedução do poder? Ou talvez ele fosse muito, muito carinhoso. Ou quem sabe muito bom de cama. Até hoje ninguém sabe a resposta.
Da parte do judaísmo (uma microcomunidade basicamente limitada a Amsterdam) e do Islã (que existe lá na mesma proporção que na França), nada.
Bem, talvez seja um exagero meu. Os imames homofóbicos foram rejeitados por seus rebanhos e alguns chegaram a ser enviados de volta a seus países de origem. Quanto ao resto, os muçulmanos acharam por bem lembrar que discursos intolerantes são inaceitáveis, e as mesquitas organizaram círculos de discussão para auxiliar os idosos que não falam muito bem o holandês a superar sua homofobia cultural. E mesmo, em alguns casos, a restaurar o contato com seus filhos homossexuais. Ah, a família acima de tudo.
Os protestantes ultrafundamentalistas (reunidos politicamente sob o partido SGP: contra o voto feminino, Bíblia como programa de partido, 2% do eleitorado) se afundam na talibanização. Seus seguidores são o objeto de chacota na imprensa e na internet, e os tribunais lhes impuseram a integração entre homens e mulheres. Os jornais protestantes chamam especialistas regularmente para analisar o isolamento do SGP e seus rebanhos do resto da sociedade, e se preocupam com o fato de que, pela primeira vez, holandeses não são mais bonitinhos ou folclóricos, mas assustadores.
Os dois tópicos de discórdia que ainda existem são a educação e os weigerambtenaren (de weigeren, recusar, e ambtenaar, funcionário). Mas por quanto tempo?
Dentro da educação privada religiosa, uma brecha na lei permite que as escolas ultrarreligiosas demitam professores que saiam do armário. Mas acabou que o único caso desse já ocorrido foi julgado ilegal (principalmente porque a escola não seguiu os protocolos vigentes, em particular realizar uma entrevista antes da demissão). A opinião pública é quase unanimemente desfavorável a essa possibilidade.
Durante toda minha atuação como professor da rede pública, eu nunca escondi que sou casado com um homem. As únicas questões que torturam meus alunos são por que eu ainda não adotei nenhum filho (“Seus filhos teriam notas ótimas de francês!”) e descobrir se o meu marido é bonito.
Dentro das prefeituras, certos funcionários públicos podem se recusar a unir casais homoafetivos em nome de sua liberdade religiosa. São chamados portanto de weigerambtenaren. Há alguns casos de cristãos fundamentalistas dentro de pequenas comunidades da província, o que nunca chegou a impedir nenhum casal homoafetivo de se casar. No fim das contas, ninguém realmente chegou a sofrer por causa disso.
As municipalidades que demitiram os weigerambtenaren receberam ordens de readmitirem esses funcionários, porque os juízes consideraram que era a cidade que tinha a obrigação de unir todos os casais que desejavam fazê-lo, não os funcionários. Basicamente, a cidade tinha a obrigação de substituir esses funcionários intolerantes por outros em caso de discriminação.
Depois de debates acalorados, em que os cristãos fundamentalistas se fizeram de vítimas, o governo (uma aliança entre direita e esquerda sem qualquer partido religioso) decidiu que, passados dez anos, já era hora de acabar com essa bobagem e que os funcionários teriam que concordar em casar todos os casais, ou então o CWI (o centro de busca de emprego local) seria o lugar perfeito para esse chororô de cristãos oprimidos. E sem dinheiro de rescisão.
Num último detalhe, a extrema direita holandesa em sua maior parte passou a explorar a igualdade de gênero e entre gays e héteros como uma maneira de melhor ostracizar os muçulmanos.
Uma extrema direita homofóbica? Não existe mais. Seu público-alvo (sobretudo os brancos jovens de classe média baixa que vivem em subúrbios construídos sobre pôlders) não conseguem mais entender por que você discriminaria o seu vizinho, seu filho, seu irmão, sua irmã ou você mesmo.
Ah, quase me esqueço. Última coisa: a polícia está treinada para inquirir sobre alguma origem homofóbica, sexista ou racista de atos de violência, sejam verbais ou físicos. A consequência disso é que os atos de violência motivados por homofobia levam a condenações duas vezes mais severas. Sem exceções.
Então, sim, as centenas de milhares de fundamentalistas de todas as estirpes que saíram às ruas em Paris têm com o que se preocupar. Está claro, quando se olha para a década passada, que o casamento homoafetivo na Holanda teve consequências palpáveis:
- A maior tolerância a homossexuais;
- A estigmatização da violência homofóbica, verbal e física;
- Uma grande perda de credibilidade da Igreja Católica;
- Pressão pró-mulheres e pró-LGBT dentro das igrejas protestantes;
- Isolamento/talibanização da extrema direita cristã, segregada da extrema direita política e da grande maioria da população…
Um prospecto realmente terrível.
Para os homofóbicos.
Achei fantástico o artigo! Sabia que a Holanda é um país avançado em várias questões, mas não sabia deste avanço na igualdade de tratamento, independente de orientação sexual. Creio que no Brasil seriam necessários mais do que doze anos para se conseguir os mesmos avanços, mas não se começa uma maratona sem dar o primeiro passo!
Excelente trabalho. Parabéns pelo texto.
Os problema de aceitar o casamento homossexual está justamente nas consequências.
O Brasil é um país religioso,ou seja os representantes das religiãos tem poder,religiões precisam ser sólidas,e preservar suas tradições.Se vc abri brecha pra questionar um assunto,pode acabar abrindo pra todos,e se pode questionar,pode modificar.E se a igrejas modificam suas regras,não são donas absolutas da verdade,e perdem o poder.Qualquer pessoa que viva no meio conservador,sabe disso.Casamento gay é reabri uma porta pra liberdade indivudual.
Os problema de aceitar está o casamento homossexual está justamente nas consequências.
O Brasil é um país religioso,ou seja os representantes das religiãos tem poder,religiões precisam ser solidas,e preservar suas tradições.Se vc abri brecha pra questionar um assunto,pode acabar abrindo pra todos,e se pode questionar,pode modificar.E se a igrejas modificam suas regras,não são donas absolutas da verdade,e perdem o poder.Qualquer pessoa que viva no meio conservador,sabe disso.Casamento gay é reabri uma porta pra liberdade indivudual
Olha, ainda temos um longo caminho aqui no Brasil.
Contudo, após ler tal artigo, vejo esperanças, um dia vamos conseguir ser tolerados e tratados de forma igualitária, apenas isso ou apenas tudo isso…….
Mas temos muitos Bolsonaros e Felicianos para enfrentar e nos utilizam para ganhar holofotes ( que não ganhariam, se fosse utilizado como parâmetro a competência profissional).
Além de ter que engolir a folha dizendo para as bichas virarem caixa eletrônico eh fodis, para não levar porrada….é mole? mas prefiro duro memo.
Os Países Baixos foram mesmo brilhantes em darem o ponta pé inicial e fazer com que hoje muitos outros países consigam fazer o mesmo. Muitas destas transformações, creio eu, vieram também por parte da cultura local de maior liberalismo. Segundo li, lá 44% são seculares, não seguem religiões e o percentual só vem aumentando. O número de templos religiosos que fecham é enorme e a população praticante é baixíssima. Não podemos desconsiderar que na prática quanto menos religioso um povo é, menos fundamentalismo existe, então isso é uma notícia boa, os crentes que me desculpem. No entanto, os muçulmanos são muito expressivos, de um total de 16 mi, eles já são 1 mi. Agora quando ainda são uma minoria, se fazem de santos e pregadores da paz, mas depois quando forem mais, aí o bicho vai pegar. Que eles possam evitar que mais estrangeiros assim entrem e estraguem o país.
Muito boa a matéria. Parabéns. E enquanto isso aqui no Brasil temos líderes políticos fundamentalistas que espalham o ódio e a intolerância em nome de Deus. Muito triste.