Começou ontem a novela A força do querer, mais uma obra teledramatúrgica em que, entre amores impossíveis e trapaças mirabolantes, a autora Gloria Perez vai salpicar temas atuais e até considerados polêmicos por muitos. Os homens trans são o primeiro dessa vez, representados por Ivana, vivido por Carol Duarte.
A escolha de uma atriz cisgênero está longe de ser a ideal para interpretar na televisão o primeiro homem transgênero das novelas brasileiras. A autora Gloria Perez já chutou uma bela bola fora quando, para defender a escolha de atores cis para os dois personagens transgênero de sua trama, declarou ao jornal O Dia que “Ser trans não é sinônimo de ter talento para representar uma trans”. Para quem ainda não percebeu o erro dessa declaração, imagine o que significaria se ela dissesse que “ser negro não é sinônimo de ter talento para representar um negro”.
Escolhas como essas só reforçam a ideia – muito errada – de que um homem trans é apenas uma mulher que gosta de se vestir de homem, ou que uma travesti é apenas um homem afeminado que gosta de se vestir de mulher. A identidade de gênero é algo muito mais profundo e essencial que sua aparência exterior – algo que atores cisgênero nunca realmente conseguem reproduzir, por muito que se esforcem com a melhor das intenções. Num futuro não muito distante, as escolhas de elenco que estão sendo feitas hoje serão vistas como tão absurdas como a escolha de atores caucasianos para compor o elenco nipônico da novela Sol nascente.
Há muito que, infelizmente, as pessoas cisgênero ainda não compreendem sobre homens trans. O Lado Bi conversou com três deles no episódio mais recente de seu podcast. Confira o que Lam Matos, Miguel Ângelo de Simone e João Henrique Machado gostariam que o mundo compreendesse sobre suas vidas.
- Lésbicas masculinas não são homens trans. “Para alguns, pode parecer que a linha entre a identidade de gênero e a vivência do masculino é muito tênue”, aponta Lam Matos. “Mas elas são bem distintas.” Identidade de gênero é uma coisa, orientação sexual é outra, separada e independente. Homens trans podem ser heterossexuais, bissexuais, homossexuais ou pansexuais, assim como todos os outros homens do mundo. “Cada um sabe de sua própria identidade”, continua Matos.
- Homens trans são alvo de violências silenciosas. “As mulheres trans sofrem violências explícitas”, lamenta Miguel Ângelo de Simone. “Muitas são violentadas, fisicamente agredidas e assassinadas. Os homens trans são atacados de formas mais sutis, mas não menos prejudiciais: não são reconhecidos e são constantemente invisibilizados.” Homens trans não são representados na mídia em lugar nenhum. A imensa maioria da população sequer sabe que essa identidade de gênero existe. Por terem sua identidade negada pelo mundo, homens trans muitas vezes acabam sofrendo com depressões profundas.
- Nem todos os homens trans são gostosos e sarados. Os poucos homens trans que ganham destaque na mídia internacional, como o ator pornô Buck Angel e os modelos Aydian Dowling e Laith Ashley, são celebrados porque têm músculos que causam inveja em muitos dos musos cis de qualquer parte do mundo. A indústria cultural só aceita um homem transgênero se ele reproduzir, de forma extrema, a masculinidade mais padrão e normativa – algo que também acontece com mulheres trans. “Cada um de nós tem suas peculiaridades, como todos os outros homens”, lembra de Simone. “Algumas vezes um homem trans não deseja fazer um tratamento hormonal completo, mas sente que é obrigado a isso porque a sociedade espera ver um homem viril.”
- Homens trans são testemunhas diretas do sexismo da sociedade. “Agora que minha transição está avançada, quando eu vou no mecânico e digo que tem um problema em uma parte do carro, o mecânico confere exatamente aonde eu aponto”, ironiza Matos. “Antes ele me ignorava completamente porque ‘mulher não entende nada de automóvel’.” De Simone percebe o tratamento diferenciado em coisas ainda mais cotidianas: “depois que você faz a transição você vira ‘chefe’, ‘capitão’. Você vai comprar algo na padaria e o atendente te chama: ‘ô grande!’. Eu tenho 1,65 metros de altura!”.
- Para um homem trans negro, o efeito é ainda mais intenso. “Como sou negro, passei a ser visto como suspeito”, alerta João Henrique Machado. “O carro da polícia agora volta e meia passa bem devagar por mim quando estou na rua”. Matos concorda: “a gente passa de mulher negra violentada para homem negro opressor”.
- Homens cis sentem-se ameaçados por homens trans. Homens trans representam uma maneira de ser masculino diferente daquela que os homens cis passam a vida inteira aprendendo. Isso abala o sempre frágil homem cis hétero. “Eu não nego que já tive uma vivência feminina, que já tive cólica, que já menstruei…” conta Matos. “Quando as mulheres descobrem o meu passado, passam a dar muita atenção a esse masculino trans, e os homens cis ficam mordidos. Acho que eles pensam que a gente tem acesso facilitado às mulheres por sermos trans.”
- Sexismo e machismo não são questão de testosterona. “Quando estou numa roda de conversa com outros homens, eles esperam que eu faça comentários tipo ‘essa mina, mó gostosa, mano!’,” espanta-se Machado. Aprendemos que a objetificação das mulheres que muitas vezes leva ao assédio são decorrências automáticas dos hormônios masculinos. Homens trans estão aí para provar que isso não é verdade, que homens não precisam rebaixar mulheres para se elevarem, por mais testosterona que tenham circulando em seu sangue – e, acredite, homens trans podem ter níveis bem elevados desse hormônio durante sua transição.
- O pênis não faz o homem. “É impressionante como a vida do homem cis gira ao redor do peru”, constata De Simone. Mas os homens não são os únicos com essa fixação: “as mulheres sempre me perguntam como é que a gente faz na cama se não temos pinto”, relata Matos. “Minha resposta é: você namora um homem ou namora um pinto? Porque, se você namora um pinto, é mais fácil ir pra sex shop, lá tem um monte.” Homens trans, na verdade, têm um repertório sexual muito maior que grande parte dos homens cis – o que, mais uma vez, faz muitos deles tremerem nas bases. “Já vieram me dizer que eu jamais faria uma mulher feliz na cama”, continua Matos. “Eu respondo: será? Além de ser mestre em usar língua e dedos, eu tenho uma coleção de pênis em casa.”
- Fazer a transição de sexo não significa perder os direitos reprodutivos. Homens trans podem manter os úteros com que nasceram, e, se desejarem, até mesmo as mamas. Isso significa que podem dar à luz se assim desejarem. “Quero ter filhos com minha esposa”, compartilha Matos. “Não sabemos qual de nós dois vai engravidar. Só sabemos que gestar o bebê não fará de mim menos homem.”
- A comunidade LGBT ainda não se livrou da transfobia. O preconceito contra homens trans entre a população queer vai além da recusa em reconhecer a existência dos homens trans que ocorre entre as pessoas em geral. “Ainda é raro que representantes do movimento dos homens trans sejam chamados para reuniões da militância LGBT”, denuncia Matos. “Já ouvi muitos gays e lésbicas chamarem homens trans de ‘sapatão evoluída’. Quem sofre de preconceito deveria saber lidar melhor com a diversidade.”
sinceramente, sou bissexual, e afirmo que se um dia eu vier a conhecer um homem trans que goste de homem e eu der a sorte dele se interessa por mim eu seria o cara mais feliz do mundo.
A matéria é muito boa, porém novamente leio sobre críticas em relação a Gloria não ter escalado um homem trans para dar vida a Ivana, pois se não foi encontrado um homem trans capacitado para dar vida a Ivana não deve haver essa “montueira” de questionamentos, acredito que não foi escalado um homem trans, não preconceito, mas por falta de alguém que se enquadrasse no personagem, como a Gloria disse, pois temos uma mulher trans na novela (Maria Clara Spinelli ), temos o Silvero Pereira que da vida a uma travesti e esta previsto a participação de homens trans nos capítulos posteriores.
Não pude deixar de reparar na utilização do adjetivo “gostoso”. Achei desnecessário. Poderia ter utilizado algum termo menos vulgar. No que se diz respeito à matéria, achei bastante interessante e até esclarecedora.
Curti a matéria! realmente é uma realidade a ser mudada, as pessoas trans tem que ser felizes!
Parei de ler aqui “Para quem ainda não percebeu o erro dessa declaração, imagine o que significaria se ela dissesse que “ser negro não é sinônimo de ter talento para representar um negro”. Competência e pronto…sem mais.
Eu entendo a importância da representatividade trans e sempre critiquei a tendência de transformar o movimento LGBT em GGGG, contudo, vamos analisar por outro lado a escolha da atriz cis: a novela vai contar o processo desde o ínicio antes da personagem transicionar. Vendo por esse lado, entendo que neste contexto a escolha é possível. Li em outras fontes que atores trans irão participar da novela como, por exemplo, Silvério Pereira que fez BR Trans. Então acredito que teremos certa representatividade de homens e mulheres Trans na obra.
Nada impede que um ator trans interpretasse a fase pré-transição, com cabelos longos etc. Quem melhor para transmitir a ansiedade de alguém antes da transição que alguém que já viveu isso?
um detalhe bobo mas que acho importante a gente ressaltar no ponto 3, é parar de usar a palavra gostoso como sinônimo de homem musculoso, pois homens gordos e não musculosos também podem ser considerados como gostosos, vai a cargo do gosto de cada um achar alguém gostoso ou não.
Na verdade nenhum adjetivo como “gato”, “sapão”, “homão da porra”, e até o que mais tentam exclusivisar como algo nato de homens musculosos que é chamar de “saudável”, deveriam ser usados como um sinônimo de corpos musculosos. Isso acaba contribuindo pra naturalização de caras assim como o padrão de beleza e desejo.
???????????? ???????? ameiiiii a matéria com todos os pontos vírgulas etc…
Alias o urso da foto é um homem trans? Ele tem telefone?
Sim, é o ator Chance Armstrong. https://www.instagram.com/chancearmstrongftm/
Como não amar?
Eu namoraria um homem trans de boa. O Chaz Bono é fora dos padrões e ele é um homem bonito, pra mim…
De fato tenho dificuldades para entender as realidades TRANS. E isso é compreensível, na medida em que percebemos que, se a realidade trans é de sempre, o espaço de visibilidade, e portanto, de discussão, é novo. Algo transformador mesmo. Isso me encanta e me faz entender que tenho que aprender sobre essa realidade e o aprendizado, como todo aprendizado, não é instantâneo. É processo. Não podemos esperar que realidades tão impactantes sejam acolhidas com toda a naturalidade. Como também não podemos aceitar nenhum tipo de violência que possa comprometer as relações desse aprendizado. E o mais incrível e encantador de tudo é reconhecer que os melhores mestres para nos ensinar sobre TRANS são os próprios… Da minha parte, quero que a maturidade no acolhimento dessas verdades TRANS sejam uma expressão de amor que possa contagiar a todos que, como eu, se percebam humanos. Simplesmente humanos até no reconhecimento da própria ignorância em relação à criação.