Traduzido da matéria de Christopher Glazek para a revista Out
“Por que ela seria lésbica? Dá licença!”
Irritada, Madonna torce suas luvas de renda sem dedos, expondo um crânio encrustrado com joias em seu dedo anular. É sexta-feira à noite no alto do inverno, e nós estamos sentados num escritório sem janelas em um arranha-céu anônimo no centro de Manhattan. O espaço tristonho foi aprimorado, a pedido de Madonna, com alguns detalhes culturais: Acossado, de Jean-Luc Godard, é exibido na sala ao lado, ao mesmo tempo que A Paixão de Joana D’Arc passa na que estamos, enquanto a Rainha do Pop puxa a minha orelha por minha ignorância a respeito da Donzela de Orleans. O puxão de orelha é figurado, mas a impaciência de Madonna é real. Eu não faço mais que afirmar o óbvio, acho, ao observar que a guerreira virgem com certeza deve ter sido lésbica. Mas o que essa suposição preguiçosa diz para Madonna é que eu não entendo nada de Joana D’Arc.
E, por consequência, também não entendi nada de Rebel Heart, o 13º disco de estúdio de Madonna, cuja oitava faixa é “Joan of Arc”, uma mistura assombradoramente bela de country e pop. “Joan of Arc” é uma das faixas mais fortes do álbum, que, em sua versão Super Deluxe, conta com 25 canções, uma dúzia de gêneros, uma multidão de colaboradores (do raver Avicii ao boxeador e estuprador condenado Mike Tyson), e quase 100 minutos, fazendo dele o álbum mais longo de sua carreira.
Como um compêndio obsessivamente selecionado das batidas contemporâneas – almejando relevância em virtualmente todos os subnichos musicais – esse também poderia ser considerado seu álbum mais ambicioso. Tudo isso explica por que é importante para Madonna que eu traga algum rigor para minhas considerações sobre a sexualidade de Santa Joana. Rebel Heart não é um álbum dance para clubes gays, e Joana D’Arc não era uma santa.
“OK, ela se vestia como um menino e cortou seu cabelo”, diz Madonna. “Isso foi o que a igreja tentou afirmar. Além disso, que o delfim que lhe deu apoio, que ele era gay.” Ela fica de cabelo em pé quando se equipara um corte de cabelo e uma armadura com orientação sexual, e eu, claramente tão ignorante quanto um cardeal inglês, murcho de vergonha.
É tarde, e eu sou o último em uma procissão de repórteres-devotos, em sua grande parte gays, que fizeram fila para entrevistar sua majestade. Mas o trabalho de uma ícone nunca chega ao fim. Madonna agora tem que me educar quanto à história do século 15 para me impedir de espalhar falácias a uma nação tão crédula: “De acordo com os historiadores, o delfim foi quem forneceu o exército, a cavalaria, para ela atacar a Inglaterra. Eles ficaram gratos a ela por isso? Claro que não. O que eles fizeram foi dizer, ‘Peraí, como uma garota pode fazer isso? Tem que ter alguma coisa errada com ela.'”
Joana D’Arc foi queimada viva ainda na adolescência pelo crime de se vestir como homem. “Eu consigo me identificar”, diz Madonna. “Às vezes me queimam viva metaforicamente. Se bem que não nesse exato momento.” Ao longo dos anos, Madonna já foi acusada de inúmeras heresias, inclusive de corromper a juventude, praticar bruxaria, ser uma discípula de Baphomet (uma divindade com cabeça de bode) e conspirar com os Illuminatti, uma calúnia que ela comenta satiricamente em Rebel Heart com “Illuminatti”, uma canção que ela co-produziu com Kanye West.
Nas semanas que precederam nossa entrevista, Madonna ouviu críticas por divulgar artes promocionais feitas por fãs para seu novo álbum, com imagens de vários rebeldes históricos no lugar de Madonna, que mostra na capa do álbum seu rosto enrolado em um fio grosso e preto que sugere BDSM. Quando Madonna postou em seu perfil no Instagram fotos de Martin Luther King Jr., Princesa Diana, e Nelson Mandela enrolados com o mesmo fio, a Internet se revoltou. Madonna pediu desculpas, mas se recusou a retirar as imagens, confirmando seu talento para transgredir barreiras sagradas mesmo em nossos tempos supostamente mais permissivos.
O que Madonna quer dizer sobre Joana D’Arc: uma mulher forte, uma mulher poderosa, uma mulher com o coração rebelde, não deveria ter seu heroísmo facilmente explicado por um suposto lesbianismo ou qualquer outra coisa. Presumir que uma mulher forte tem que ser lésbica é presumir que uma mulher heterossexual não consegue ser forte. Mas a lição não acaba aqui – ainda tem mais, então Madonna prossegue: “Eu comentei com um amigo meu que sabe muito de história e de cinema, ‘olha, espera um minuto. Por que o delfim não ficou do lado dela? Ele era da realeza. Ele tinha comando. Ele era alguém importante. Se ele tinha o poder de lhe dar as tropas, por que ele não tinha o poder de protegê-la?’, e ele respondeu, ‘Porque ele era gay e ninguém o respeitava’.”
Um clichê sexista invade meus pensamentos: “Por trás de todo grande homem há uma grande mulher, e por trás de toda grande mulher há um grande gay.” Nas circunstâncias descritas por Madonna, o clichê denota uma rede de interações mais complexa: o delfim por trás de Joana D’Arc é gay – um gay por quem ela trava uma guerra; um gay que é coroado em virtude dos esforços dela; um gay que, depois de tudo que ela fez por ele, fracassa em “ficar do seu lado”. Isso me fez pensar, Aos 56 anos, será que Madonna tem medo de ser abandonada por seus fãs gays? Será que ela deveria ter esse medo?
Madonna se mantém conectada intimamente a uma grande comunidade de gays há décadas, como colaboradora artística, aliada política, empregadora, amiga, e irmã. Ela foi uma das primeiras e mais visíveis guerreiras na luta contra a Aids, e sua dedicação ao ativismo contra a Aids pareceu, para muitos, fervorosa demais para alguém que não tem nada pessoal a perder com isso. Consequentemente, ela se tornou gay por tabela, e muitas pessoas acreditam – entre eles Sean Penn, seu ex-marido, dizem alguns – que ela mesma seja soropositiva, apesar de ela sempre tê-lo negado. “Se é isso que eu tenho que tolerar por causa de meu envolvimento para combater essa epidemia”, ela disse durante um evento beneficiente a favor da pesquisa da Aids em 1991, “que então seja.”
A primeira vez que Madonna foi exposta à homossexualidade aconteceu durante uma aula de balé no ensino fundamental. Ao observar seu professor, Christopher Flynn, ela pela primeira vez se tornou “consciente de que havia algo que pode-se chamar ‘gay'”, ela lembra. “Não se chamava disso na época. Eu simplesmente compreendi que ele sentia atração por homens.” Flynn apresentou a Madonna adolescente a uma cultura global que se estendia para além de sua criação suburbana e estreita no Michigan. “Ele me levava para museus. Ele também me levou para meu primeiro clube gay em Detroit, Menjo’s.”
Observar Flynn também ajudou Madonna a perceber que havia algo diferente em seu irmão mais novo, Christopher. “Não era algo que eu conseguia colocar em palavras; era apenas algo instintivo que eu notava”, recorda-se. “Meu irmão vivia cercado de garotas que aparentemente estavam apaixonadas por ele, mas ele não parecia estar apaixonado por elas. E daí eu o vi interagindo com meu professor de balé, e minha mente inconscientemente se ligou, Ah, saquei. Eu não perguntei para meu irmão se ele era gay. Eu sequer sabia que havia um termo ‘gay’. Eu apenas compreendi que ele era diferente. Havia uma compreensão silenciosa, nas entrelinhas, de que eles tinham uma conexão.”
Depois de abandonar a Universidade de Michigan e se mudar para Nova York para dançar com Alvin Ailey, Madonna Louise Ciccone viveria cercada de gays, até mesmo, em certo momento, figuras do mundo da arte como o pintor Keith Haring. Sua imersão na comunidade gay de Nova York tornou-se tão completa que ela começou a desejar ser gay também. “Eu me sentia meio excluída”, afirma. “Eu não sentia que os homens héteros me entendiam. Eles só queriam fazer sexo comigo. Os gays me entendiam, e eu me sentia confortável perto deles. Só tinha um problema, eles não queriam transar comigo! Então… impasse! Eu ficava, ‘como é que eu vou arranjar alguém? Quem sabe se eu cortar meu cabelo e perder bastante peso, alguém vai pensar que eu sou um cara e vai querer sair comigo.'”
Durante a primeira década de sua carreira, conforme Madonna iniciava sua jornada rumo ao superestrelato, sua associação pública com os gays se tornou cada vez mais profunda. Quando ela se lançou no palco mundial em 1982, obcecada com sacrilégios e profanações, a maior parte dos EUA era um deserto de repressão sexual. Engravidar sem estar casada era tabu. Masturbação, vergonhoso. Em muitos estados dos EUA, sexo oral e anal eram crimes, mesmo se você fosse heterossexual e casado. Códigos rígidos regulavam o conteúdo da televisão e das revistas em quadrinhos. Muitas das intervenções abusadas de Madonna tornaram-se menos chocantes com o passar do tempo: hoje, qualquer criança de 11 anos ligada na internet pode explorar um cardápio completo de opções sexuais sem planejamento nem propósito, e alentar seus desvios incipientes com vídeos em HD; no começo dos anos 1990, horas de planejamento eram necessárias para que se conseguisse assistir um mero beijo homossexual. O caminho mais fácil – aquele que oferecia uma possibilidade de negação para quem tivesse curiosidades homossexuais – tipicamente envolvia alguma de várias opções ligadas a Madonna: emprestar uma cópia em fita VHS de seu videoclipe erótico Justify My Love, banido da MTV dos EUA; pegar Na Cama Com Madonna na locadora, o documentário incrivelmente gay e incrivelmente belo sobre os bastidores da turnê Blond Ambition; ou folhear Sex, o livro de Madonna, até hoje o livro de arte mais vendido de todos os tempos e um dos poucos lugares, naquela era antes da internet, em que uma pessoa conseguiria ver uma loira lamber a bunda de um homem.
Em 1990, no auge do que pode-se chamar “período gay” de Madonna, ela lançou o vídeo de “Vogue”, inspirado pelos salões de dança do Harlem, e fez as filmagens de Na Cama Com Madonna, que incluía tomadas de uma parada do orgulho gay, um momento de silêncio por aqueles que morreram de Aids, e sessões de pegação de pijama entre garotos gays e a dona da toca. Até 2002, quando deu lugar a Tiros em Columbine, de Michael Moore, o filme foi o documentário mais rentável de todos os tempos – um fato que pode impressionar os historiadores futuros, já que ele tem por tema a relação entre uma mulher branca e rica com um grupo de dançarinos homossexuais das mais diversas raças.
Na Cama Com Madonna precedeu os reality shows, estabelecendo um padrão de transparência e exposição obrigatória dos momentos mais íntimos que as figuras públicas, cada vez mais, têm que aceitar. De muitas maneiras, no entanto, o original continua sendo o melhor. Como um retrato de um bando de co-conspiradores alegres e liberais trabalhando como se estivessem de férias – o diretor do filme, Alek Keshishian, declarou que o clima dos bastidores da turnê era “fellinesco” e descreveu Madonna como “a matriarca do circo” – Na Cama Com Madonna é muito mais revelador que seus imitadores mais recentes, como Journey to Fearless, de Taylor Swift, Part of Me, de Katy Perry, Life Is But A Dream, de Beyoncé, e a sequência triste da própria Madonna, I’m Going To Tell You A Secret, de 2005, que se dispunha a registrar sua Re-Invention Tour, mas na verdade se concentrava em seu casamento infeliz com Guy Ritchie.
Na Cama Com Madonna provavelmente foi feito muito à frente de seu tempo. Meses depois do lançamento do filme, três dos dançarinos, incomodados pela exposição de suas vidas pessoais para o mundo, processaram Madonna por invasão de privacidade e “imposição intencional de sofrimento emocional”.
O processo foi terminou em um acordo em 1994 por um valor não-revelado, e sugere o tanto que a relação de Madonna com a comunidade gay oscilaa entre a admiração mútua das mais intensas e as suspeitas das mais desconfortáveis. Diferente de Joana D’Arc, que, segundo a narração de Madonna, errou ao colocar sua vida nas mãos de um gay que fracassou em protegê-la, Madonna há muito está alerta para as possibilidades das traições gays. “Eu jamais contrataria bichas que odeiam mulheres”, ela anunciou em Na Cama Com Madonna. “Eu mato bichas que odeiam mulheres. Na verdade, eu mato qualquer pessoa que odeia mulheres.” Essa declaração de Madonna já tem 24 anos, mas faz apenas poucos meses que Rose McGowan foi queimada viva na fogueira virtual por denunciar a misoginia dos gays. Verdade, McGowan não se ajudou muito com a afirmação de que “os gays lutaram pelo direito de subir num trio elétrico vestindo uma sunguinha laranja e tomar drogas”, mas, até aí, ela também não ameaçou a vida de ninguém, a sério ou brincando.
É difícil pensar que qualquer outra celebridade já tenha feito mais que Madonna para promover a consciência pública da cultura gay – especialmente da cultura das minorias gays – mas mesmo quando ela traz os holofotes para seus recantos mais negligenciados, ela é acusada de ganhar dinheiro se apropriando e explorando as subculturas gays. Claro, censurar Madonna por pilhar subculturas gays poderia ser visto como apenas uma variação da velha prática de se tentar tirar o valor dos feitos de artistas mulheres atribuindo-os a colaboradores homens. Esse impulso, que se torna ainda mais sinistro exatamente porque é feito por instinto e sem muita reflexão, esteve nas manchetes recentemente: em janeiro, o site Pitchfork publicou uma entrevista com a cantora Björk, em que a estrela avant-garde expressava sua frustração com os jornalistas que haviam relatado, erroneamente, que seu novo álbum Vulnicura foi produzido pelo músico Arca, de 24 anos, também conhecido como Alejandro Ghersi, quando na verdade a própria Björk co-produziu todas as faixas. “Eu já faço música a, o que, 30 anos?”, Björk reclamou para o site. “Eu entro em estúdios desde meus 11 anos; Alejandro nunca havia gravado um álbum antes de eu trabalhar com ele.”
Quando eu citei para Madonna o que Björk disse, ela simpatizou. “As pessoas sempre dizem, ‘Quer dizer que ele é o produtor’, ou ‘Quem produziu isso?’, e eu tenho que dizer, ‘Fui eu. Eu co-produzi isso com o Diplo. Eu co-produzi isso com o Kanye.’ Dane-se – tudo é uma co-produção. Sou eu quem fica no estúdio durante todo o processo, do começo ao fim – essas outras pessoas chegam e depois vão embora.”
Uma semana mais tarde, durante uma segunda conversa depois de nosso encontro tarde da noite, Madonna declara, “Os direitos dos gays estão muito mais avançados que os direitos das mulheres. As pessoas estão com a cabeça muito mais aberta para a comunidade gay que para as mulheres, ponto final.” Para as mulheres, ela considera, a situação não melhorou muito desde 1983. “As coisas foram em frente para a comunidade gay, para a comunidade negra, mas as mulheres ainda estão vivendo de mostrar a bunda. Para mim, a última grande fronteira são as mulheres.”
Vindo de Madonna, essa análise parece importante. Eu peço para ela elaborar mais. “As mulheres ainda são o grupo mais marginalizado”, ela continua. “Elas ainda são o grupo que as pessoas não permitem passar por mudanças”. Para ser uma mulher bem-sucedida, frisa ela, “você tem que entrar numa caixinha: você tem que se comportar de certa maneira, se vestir de certa maneira.” Imediatamente depois de nossa primeira entrevista, Madonna foi fotografada por um paparazzo ao sair do prédio e teve que aguentar críticas do jornal Daily Mail por vestir “um espartilho transparente, que pouco deixava à imaginação”. Parece que é essa a mensagem de Madonna: trinta e três anos depois que ela se tornou, como ela mesma diz, a primeira pop star a utilizar subculturas e expressar-se “com uma sexualidade escancarada por meio de sua obra” (“Antes de mim, se alguém chegou perto disso”, considera, “foi Debbie Harry, mas ela era menos escancarada”), o figurino de Madonna ainda atrai o abuso dos moralistas de tabloide.
Ela segue: “Você ainda é categorizada – você ainda ou é virgem, ou é puta. Se você passa de uma certa idade, você não pode mais expressar sua sexualidade, ser solteira, ou sair com homens mais novos”. Agora com mais de 50 anos, Madonna se tornou expert em se envolver com homens mais jovens, passando por três namorados modelos com menos de 30 anos em menos de quatro anos. Esse é um comportamento, aponta Madonna, “pelo qual nenhum homem seria questionado ou se tornaria alvo de críticas”. Madonna parece pensar principalmente em homens héteros: bichas velhas com gosto por novinhos, como Liberace – ou Stephen Fry – devem se solidarizar com as reclamações de Madonna.
Em Rebel Heart, Madonna inicia um novo período, e a era de Madonna chega a sua quarta década. Com o passar dos anos, vimos muitas “novas Madonnas” chegarem e passarem, mas a nova Madonna continua sendo a própria. Como brinca Madonna, “Eu sou a nova Madonna velha”. Joana D’Arc, a mulher mais famosa de sua época, morreu como mártir aos 19 anos, traída. Madonna, com meros 56 anos, já deixou claro que ela não vai aceitar nem martírio, nem marginalização, nem ser relegada ao status de “tesouro nacional”. Ela não vai se aposentar silenciosamente ao papel de amigona dos gays como Cher, nem se assentar numa irrelevância à la Paula Abdul. Se os jovens estão usando Snapchat, ela vai usar o Snapchat para lançar seu vídeo. Se seus fãs mais ardorosos estão no Grindr, ela vai conversar com eles ao vivo no Grindr. Madonna vai seguir a cultura pop onde quer que vá – despenhadeiro abaixo e mar adentro, se necessário for. Seu novo álbum é muitas coisas. Acima de tudo, não é seu último.