Traduzido da matéria de Itay Hod para o site The Daily Beast
Numa manhã de um dia de semana de agosto, Abdul Rawashda, um palestino de 27 anos de Hebron, exibe seu lar de solteiro via Skype. É um tour breve. Rawashda segura seu laptop enquanto aponta para cada recanto da quitinete em que mora. “Aconchegante” seria o termo usado para descrevê-la num anúncio de aluguel no jornal. “É bem pequeno”, ele diz, como se pudesse ler meus pensamentos, “mas eu gosto dele”.
Faz um dia tenebroso na Noruega apesar de estarmos no meio do verão. “Não para de chover”, ele diz, enrolando-se num cobertor grosso. “Eu nunca vou me acostumar a esse clima.” De sua sacada, debruçando-se sobre a embaixada norte-americana, está pendurada uma bandeira da Palestina. “Eu quero que eles a vejam todos os dias quando chegam para o trabalho”, ele ri.
Ele se encontra muito distante de sua cidade natal na Cisjordânia, o lugar de onde ele teve que fugir. “Eu estou feliz”, afirma. “Eu amo a Noruega. Eu tenho cidadania norueguesa agora. Eu posso ir para qualquer lugar do mundo.” Ele faz uma pausa, então, percebendo a ironia do que acabou de dizer. “Exceto ir pra casa, claro.”
Em 26 de janeiro de 2010 Rawashda foi detido pela polícia secreta da Palestina no meio da noite. Os policiais haviam conferido o telefone de um amigo seu, no qual encontraram mensagens de texto enviadas por Rawashda que deixavam claro que os dois eram gays. Quando deu por si, ele estava numa sala de interrogatório sendo acusado de colaborar com Israel. “Eu nunca tinha sequer ido para Israel. Mas qualquer um que é gay imediatamente é acusado de ser um espião do inimigo.”
Durante as 16 horas seguintes, Rawashda foi espancado e torturado brutalmente. Doze capangas de uniforme enfiaram sua cabeça num vaso sanitário, tentando fazê-lo assinar uma confissão. “Foi a pior noite da minha vida. Eu não gosto de falar disso.” Quando Rawashda não cedeu, eles pegaram o telefone às 5 da manhã, ligaram para seu pai e contaram a ele que seu filho era gay.
“Eles sabiam que isso era do que eu tinha mais medo. Eles queriam me punir.” Sua mãe lhe disse por telefone para não retornar para casa, porque seu pai e seu irmão estavam atrás dele. “Eu tinha ‘desonrado’ a família.”
Com o auxílio de alguns amigos, Rawashda fugiu para a Jordânia, e então para Israel. Ele ficou embasbacado com Tel Aviv, uma cidade gay-friendly cujas paradas gays se equiparam às de Berlim e Amsterdam. Durante nossa conversa sobre sua vida em Israel, Rawashda pede que eu mova a câmera para que ele possa enxergar a rua atrás de mim. “Como está Tel Aviv?”, ele pergunta. “Fiquei com saudade.”
Menos de duas semanas depois de finalmente ter chegado a um lugar seguro, Rawashda foi detido novamente, dessa vez pelo departamento de polícia de Tel Aviv. “Havia uma situação qualquer, e eles estavam conferindo a identidade das pessoas.” Rawashda, um palestino ilegal em Israel sem qualquer documentação, foi levado em custódia. Temendo ser deportado, ele apelou para a compaixão do policial. “Eu chorei. Eu disse que se eles me mandassem de volta para a Cisjordânia, minha vida estaria em perigo.”
Eles então ofereceram um acordo: permissão para ficar, se ele se tornasse um informante. Ele percebeu a ironia disso tudo. “Eu quase fui morto pelo meu próprio povo, acusado de ser um informante para Israel, e agora os israelenses estavam tentando fazer com que eu me tornasse um. Todo mundo queria me usar.”
Quando ele se recusou, as forças de segurança de Israel o escoltaram até a fronteira. Mas Rawashda deu um jeito de retornar, várias vezes. Ele era pego, os policiais o levavam para o outro lado da fronteira, e Rawashda descobriria uma maneira de voltar: um perigoso jogo de gato e rato que ele jogou com as forças de segurança de Israel por mais de dois meses.
Durante esse tempo, ele conheceu um jovem cineasta, Yariv Mozer, que estava gravando um documentário chamado The Invisible Men (“Os homens invisíveis”) sobre palestinos gays que moram em Tel Aviv.
“Eles estão presos numa situação impossível”, explica Mozer. “Eles não podem voltar para casa, porque têm medo de serem mortos por suas próprias famílias, e eles não podem conseguir asilo em Israel porque são vistos como uma ameaça à segurança.”
Mozer, depois de incluir Rawashda em seu documentário, colocou-o em contato com The Aguda, a Força Tarefa Nacional LGBT de Israel, que conseguiu ajudá-lo a encontrar um advogado especializado em pedidos de asilo.
É difícil dizer quantos palestinos gays vivem e trabalham em Israel. Não há qualquer estudo sobre o assunto – não que estudos fossem ajudar. “Quando você entra em modo de sobrevivência, ele toma conta de tudo”, alerta Anat Ben-Dor, da Clínica de Direitos dos Refugiados na Faculdade de Lei da Universidade de Tel Aviv. “Nesse caso, grande parte de sobreviver é ficar escondido.”
Aqueles que conseguem evitar as autoridades vêm em sua maior parte da Cisjordânia. Poucos, se algum, vêm de Gaza, em parte por causa do bloqueio e em parte porque o Hamas enterrou os gays ainda mais profundamente dentro do armário. Até hoje nenhum palestino gay conseguiu receber asilo em Israel. Na verdade qualquer palestino, gay ou hétero, é impedido de sequer entrar com um pedido para receber status de refugiado em Israel.
Em 2002, palestinos da Cisjordânia supostamente utilizaram suas autorizações para auxiliar homens-bomba, o que fez com que Israel aprovasse leis que limitavam a concessão de permissões para residência a palestinos, Desde então, apenas os palestinos cuja vida está em risco porque colaboraram com Israel têm concedidas essas permissões.
Mas os especialistas afirmam que mesmo que houvesse uma maneira de pedir asilo, muitos não podem. “Para conseguir ajuda, palestinos gays têm que superar obstáculos inacreditáveis”, lamenta Ben-Dor. “Eles têm que conhecer israelenses ou outros palestinos dignos de confiança a ponto de poderem contar que são gays e que estão vivendo no país ilegalmente. Essa pessoa, então, tem que estar disposta e ser capaz de encontrar a organização certa que possa indicá-los os advogados apropriados, e, mesmo então, não há qualquer possibilidade de conseguirem proteção contra deportações que os devolvam aos Territórios Palestinos Ocupados.”
Sem dizer que muitos deles jamais pronunciaram as palavras “eu sou gay” na vida. “Eles nem passaram pelo processo interno de sair do armário”, considera Shai Doitsh, do The Aguda. “E nós não conseguimos ajudá-los a não ser que eles venham até nós e digam essas palavras. Nós, como uma força-tarefa LGBT, só podemos auxiliá-los se eles vierem até nós e disserem ‘eu sou gay’.”.
Ainda assim, muitos acreditam que Israel simplesmente não está muito a fim de abrigar quaisquer refugiados, não importa de onde venham eles. A maneira como Israel lidou recentemente com dezenas de milhares de refugiados do Sudão e da Eritreia, que inundaram duas fronteiras ao sul, tornou-se um pesadelo de relações públicas. Milhares foram presos assim que colocaram os pés no país. “Quando os sudaneses vieram, Israel considerou-os inimigos nacionais ao invés de refugiados. Eles foram colocados na cadeia porque foram todos considerados um risco de segurança, simplesmente por causa de sua nacionalidade”, aponta Ben-Dor. “Eles não faziam ideia do que fazer com os refugiados. Quando se deram conta de que muitos deles não eram necessariamente parte do regime, mas sim vítimas, as autoridades israelenses os colocaram em liberdade.” Ela diz que tem a esperança de que a experiência um dia vá ajudar no caso dos gays palestinos. “Assim como Israel aprendeu que nem todos aqueles de nacionalidade sudanesa são um risco de segurança apenas por causa de sua nacionalidade, o país também vai aprender que um palestino que busca proteção não é necessariamente um risco de segurança.”
Outros acreditam que Israel deveria receber melhor aqueles que buscam asilo, considerando que foi fundado por refugiados judeus.
“Não é assim que um país democrático deve se comportar”, afirma Yohana Lerman, uma advogada israelense que representa vários palestinos gays que buscam asilo. “Israel está empurrando a questão com a barriga. A gente continua sendo enrolado enquanto a questão é passada de comitê a comitê.”
“Nós seguimos a Convenção de Genebra, assim como qualquer país”, responde Sabin Haddad, porta-voz do Ministério do Interior de Israel. “Mas de acordo com as leis internacionais, ser gay não é uma razão para se garantir asilo. Nós conferimos cada caso individualmente.” Ela diz que também há a questão da verificação. “Qualquer um pode dizer que é gay para tentar conseguir asilo. Como nós podemos ter certeza que isso é verdade?”
Ben-Dor insiste que isso é bobagem. “Há muitas maneiras de se investigar isso. Outros países que lidam com essa questão treinam seus oficiais que analisam os pedidos de asilo em como se certificar sobre as histórias dos refugiados.”
Mas nem tudo é trevas. “Surpreendentemente, filmes como The Invisible Men e Além da fronteira [sobre um homem israelense que se apaixona por um gay palestino que tem uma família ligada ao Hamas] fazem diferença”, lembra Doitsh. “Além disso, nós trabalhamos com autoridades locais, educando-os sobre essa questão, para que ao invés de devolvê-los para a fronteira, eles tragam-nos primeiro até nós.”
A história de Rawashda tem um final quase feliz. Graças a advogados israelenses e ONGs, ele conseguiu asilo numa pequena cidade da Noruega, de 20 mil habitantes. “Eu abandonei meu país e deixei tudo para trás para que eu pudesse ser gay. Só que não há ninguém gay aqui. Eu sentia falta da minha casa, do clima, da língua. Eu fiquei muito deprimido.”
Depois de algum tempo, Rawashda se mudou para Oslo, uma das cidades mais progressistas do mundo. Ele agora tem um namorado, um emprego, e um apartamento pequeno, mas aconchegante, numa das melhores vizinhanças da cidade. Sua relação com sua família “vai bem”.
Ele não é fã de Israel. Na verdade, Rawashda considera que a ocupação é a culpada pela maneira como o Hamas e a Autoridade Palestina tratam os gays. “Você precisa liberar as pessoas para que elas possam se liberar”, ele me disse, apesar de que os pontos de vista da Autoridade Palestina são consistentes com outros países árabes que nunca estiveram sob ocupação israelense. Mas ele é grato àqueles israelenses, em sua maior parte gays, que tomaram conta dele e salvaram sua vida. “Agora eu assisto o noticiário. Há tanto conflito lá em casa”, ele lamenta. “Se os gays governassem aquela região, nos dois lados, nunca haveria guerra.”
Como ajudar estas pessoas?
[…] Por Marcio Caparica, publicado pelo site Lado Bi, em 15 de agosto de 2014 […]