Matéria por Tim Murphy publicada originalmente na revista New York
Aprenda mais sobre PrEP ouvindo o Lado Bi #63 – Truvada.
Gabriel e seus amigos gostam de sair para dançar em baladas nos bairros de Chelsea e Hell’s Kitchen como o Viva e o Pacha. Uma noite no último inverno, eles acabaram numa festa de circuito num clube no centro, uma rave gay gigantesca com house music industrial pulsante. O tema da festa era leather e S&M, e Gabriel* estava vestindo um uniforme dos lutadores de luta greco-romana. Ele costuma ser, em seu grupo de amigos, o menos interessado em bebida – ele é o amigo responsável – mas, conforme a noite passava, ele acabou ficando muito bêbado e muito louco e fez pegação com vários homens. “Eu estava sentindo a fantasia daquilo tudo”, ele confessa. Um casal que ele mal conhecia o agarrou. Eles insistiam para ir mais longe. Gabriel de início resistiu e então, conta, decidiu ceder para o espírito da noite. No momento tudo parecia libertador e hedonista.
Mas ele não estava usando preservativo quando fizeram sexo, e pela manhã ele não queria nada mais do que recuperar o controle sobre aquele momento. Gabriel é um corretor imobiliário de 32 anos. Da última vez que havia feito o teste em uma clínica, seu resultado de sorologia viera negativo. Apavorado com a possibilidade disso mudar, ele foi até Callen-Lorde, uma clínica no bairro de Chelsea, onde recebeu a prescrição para um tratamento de 28 dias para medicação contra o HIV. Gabriel não se deu bem com o tratamento: ele sentiu enjoo e exaustão o tempo todo.
Ele não desejava passar por isso nunca mais – nem pela angústia física, nem pela mental. Então Gabriel conseguiu com seu médico uma receita para comprar Truvada. Truvada é uma pílula para o tratamento do HIV que já existe há dez anos, e que, em 2012, silenciosamente se tornou a primeira droga aprovada pela Food and Drug Administration (FDA, órgão regulamentador de, entre outras coisas, medicamentos nos EUA) para uma nova utilização: para impedir a infecção do HIV. A droga tem o potencial para alterar dramaticamente o comportamento sexual – e psicológico – de uma geração. Quando ingerida diariamente, ela demonstrou num grande estudo ser até 99% eficaz. Para Gabriel, foi como passar da pílula do dia seguinte para os anticoncepcionais diários.
Vários meses depois de passar a tomar a droga, Gabriel afirma que ela permitiu que ele fosse mais destemido e sentisse menos remorso por seus desejos, e passar a ter o tipo de sexo promíscuo e liberal cheio de alegria que os homens faziam entre si logo depois de a revolta de Stonewall tirar a vida gay das sombras, e antes que a crise da Aids a envolvesse em outras, mais escuras.
Para alguns homens, o novo uso do Truvada parece ser tão revolucionário para o sexo quanto é para a medicina. “Pela primeira vez eu não tenho medo do sexo. É uma injeção de adrenalina”, comemora Damon L. Jacobs, 43 anos, um psicoterapeuta que vem registrando sua própria experiência com o medicamento no Facebook com tanto entusiasmo que há quem suponha que a Gilead, o fabricante da droga, com certeza o está patrocinando. (Não está, dizem tanto ele como a Gilead.)
“Eu passei a noite com um cara que eu conheci e que eu acredito ser soronegativo”, ele me conta. “Nós desabamos na cama, bêbados demais para trepar.” Pela manhã eles tentaram novamente, sem preservativo. “Ele estava prestes a gozar”, narra Jacobs, “e perguntou, ‘você quer que eu goze fora?’ e eu disse ‘Não’. Eu pensei, Eu quero passar por isso. Eu mereço.”
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Durante os últimos anos, o assunto principal sobre a vida gay foi, em grande parte, o casamento homoafetivo. Esse ano – nas mídias sociais, em Fire Island (ilha na costa de Nova York e point gay), no pier de Christopher Street, e em alguns dos grandes centros urbanos do país – o principal assunto entre os homens gays é o Truvada. E o que é surpreendente é como essa conversa pode ser controversa. Para alguns, como Jacobs, o surgimento dessa droga não é nada menos que um milagre, liberador de corpos e mentes. Para médicos, profissionais de saúde pública, e políticos, essa é uma ferramenta que promete conter a propagação do HIV.
Mas para outros, uma droga que pode retirar tanto da ansiedade a respeito do sexo é ela mesma uma fonte de preocupação. Eles se preocupam que o Truvada vai estimular os homens a fazer sexo sem preservativo desenfreadamente, o que poderia trazer um aumento de doenças como a sífilis. Ou eles se preocupam que nem todo mundo vai tomar o medicamento tão religiosamente quanto deveria, reduzindo sua eficácia e talvez até desenvolvendo resistência à droga caso seus usuários mais tarde tornem-se soropositivos e precisem dela para se tratar. E assim como as pílulas anticoncepcionais fizeram as solteiras dos anos 1960 considerarem se seriam vistas como “vadias” e internalizarem um sentimento de vergonha real ou imaginário, alguns homens gays se perguntam como o Truvada será encarado pelo mundo hétero; a mensagem que ele transmite é bem diferente dos românticos anúncios de casamento homoafetivo nas páginas de domingo. Outros gays ponderam se a existência dessa droga em si é um tipo de traição: contra aqueles que morreram por causa da epidemia; contra a lealdade à camisinha, um objeto que concomitantemente evoca medo e persistência, tesão e fatiga pelo sexo seguro; e contra uma mentalidade de prudência sexual que governou a vida dos gays desde o início dos anos 1980. Mesmo depois dos tratamentos de HIV terem tornado essa doença administrável para muitos, os homossexuais introjetaram a mensagem de que uma camada de látex é tudo que os protege do abismo. Nisso se inclui não apenas a infecção do HIV mas também a perda do autocontrole e da dignidade pessoal, a renúncia da responsabilidade.
Considerando-se que essa fita toca sem parar no inconsciente coletivo gay, é difícil descobrir se o conflito dentro da comunidade a respeito do Truvada é contra os fatos médicos já existentes ou contra os demônios muito reais da história: do que é que os gays têm medo?
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Vários dos meus amigos soronegativos estão tomando Truvada, mas eu não sabia disso até perguntar, e eles só concordaram em responder se eu omitisse seus nomes. A quantidade de receitas médicas está crescendo: “No ano passado estava tudo às moscas”, relata o Dr. Demetre C. Daskalakis, chefe de serviços de HIV do Mount Sinai Hospital, que teve um papel importante como consultor para que o Truvada fosse aprovado pela FDA para PrEP (abreviação de “Profilaxia Pré-Exposição”, o termo médico para a função que o Truvada está desempenhando, muitas vezes usado intercambiavelmente com o nome da droga.)
Nathan, um cabelereiro de 24 anos e amigo de Gabriel, que num primeiro momento disse para ele que o escorregão na festa provavelmente não era nada demais, foi atrás do Truvada mais ou menos na mesma época que o amigo. O homem que é no momento o namorado de Nathan – um homem mais velho e rico, dono de uma cobertura em Chelsea – aconselhou-o para que o fizesse depois que Nathan fez sexo sem camisinha com alguém que havia lhe dito que “estava bem”. Posteriormente, esse parceiro revelou que o que ele queria dizer era que era soropositivo com carga viral indetectável. (Ter carga viral indetectável significa que o soropositivo toma medicamentos regularmente para suprimir o HIV em seu sangue, chegando a níveis tão baixos do vírus que ele não chega a aparecer nos testes, tornando esse indivíduo quase incapaz de infectar outras pessoas.)
“Isso eliminou o tabu que tornava o sexo bareback [termo para sexo sem preservativo] em algo errado”, afirma Nathan. Ele, no entanto, continua, “agora que eu estou fazendo PrEP, eu estou comprando preservativos. Eu não quero ser um dos caras que saem por aí numas de ‘Eu estou fazendo PrEP, então pode chegar, me encontrar vendado e me fuder bareback’.”
Há quem esteja tomando Truvada para fazer exatamente isso – comportar-se sem quaisquer inibições. Essas são as pessoas que estão se apropriando da alcunha “Truvada Whore” (“putinha do Truvada”, em tradução livre), encontrada em camisetas e legendas de Instagram hoje em dia. Mas para outras pessoas essa é uma questão mais simples, que as leva a fazer (quase todas as vezes) o mesmo sexo com preservativo de sempre, mas, pela primeira vez na vida, sem pavor. Para a geração de homens gays que se tornou adulta depois do surgimento da Aids, a ansiedade essencialmente sempre precedeu o tesão quando se pensava em sexo. Um estudo coordenado por Sarit Golub, uma professora de psicologia do Hunter College, indica que metade dos homens gays têm o HIV em mente o tempo todo (ou praticamente o tempo todo) durante o sexo. “Isso, na minha opinião, é uma tragédia psicológica”, ela frisa.
Enquanto tomava café e comia um pedaço de torta no restaurante Blue Stove em Williamsburg há pouco tempo, Adam, 33 anos, um escritor e cineasta que eu conheço, repara que ele tem exatamente a mesma idade da pandemia.
“O terror estava em seu auge quando eu estava me tornando adulto, logo depois da puberdade”, ele lembra. “A mensagem que os programas de TV martelavam na cabeça de nós, jovens gays, era que nós poderíamos pegar essa doença e morrer e deixar nossos pais muito magoados. Eu desenvolvi esse temor intenso mesmo quando não estava fazendo nada arriscado ao transar com alguém. Eu entrava em pânico no dia seguinte apesar de não ter feito nada demais. E se eu fizesse um boquete em alguém e a baba do pau dele tivesse HIV?”.
Quando eu encontrei Adam, ele havia tomado sua primeira dose de Truvada um dia antes. Ele se sentia cansado, mas ele também havia dormido pouco, então não sabia se isso era culpa do medicamento. Na noite anterior ele havia sido convidado para passar a noite com um ficante fixo que sempre lhe disse ser soronegativo. “Eu queria que ele gozasse dentro da minha boca”, conta Adam, “mas eu sabia que a PrEP leva sete dias para fazer efeito completo.”
Matthew, outro amigo de Nathan, que trabalha com tecnologia, também embarcou na PrEP para ter proteção extra. Já aconteceu duas vezes da camisinha estourar com ele. Ele é um pouco mais velho – 48 anos – e diz que viu amigos íntimos que são soropositivos há anos sofrerem com a doença e seus medicamentos.
Gabriel, Nathan e Matthew todos afirmam que até agora não sofreram nenhum efeito colateral. Eles fazem exames a cada três meses para se certificar de que ainda estão livres do HIV e outrs DSTs, e duas vezes por ano os médicos conferem se seus rins estão bem. (O Truvada já foi associado a danos renais leves em uma pequena porcentagem de pessoas que o ingerem como parte de seu tratamento contra o HIV.) Mas o medo do desconhecido foi o que fez outro amigo do grupo, Lorenzo, um estudante de MBA de 23 anos e go go boy, não buscar uma receita para adquirir Truvada. “Eu prefiro deixar que eles sejam as cobaias e aguardar mais alguns anos”, ele admite. “Eu tenho uma atitude muito positiva quanto ao sexo, mas… o preservativo é uma muralha. Ele me mantém protegido, afastado de você.”
Para ele, isso é uma coisa boa.
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Os pesquisadores suspeitavam que as drogas do tratamento do HIV poderiam funcionar como prevenção bem antes do Truvada chegar ao mercado há dez anos, com seu propósito original. (O Truvada, como todos os medicamentos contra o HIV, funciona desativando os estágios que o vírus percorre para tomar controle das células humanas.) Quando a FDA aprovou o uso do Truvada como profilaxia, a companhia farmacêutica que o fabrica demonstrou um autocontrole surpreendente, dado o tamanho em potencial desse novo mercado. A reação da Gilead, a empresa para a qual o medicamento foi um sucesso que rendeu bilhões de dólares ao tratar pacientes soropositivos, tem sido doar dinheiro para organizações sem fins lucrativos que promovem a educação e conscientizam sobre a PrEP. A companhia declara, via um porta-voz, que o Truvada é “uma intervenção de saúde pública importante, não uma oportunidade comercial.” A Gilead também tem um programa para tornar o Truvada disponível a pacientes sem plano de saúde ou incapazes de pagar as franquias do remédio.
Alguns ativistas que trabalham com o HIV, no entanto, ponderam que a Gilead está silenciosamente promovendo uma onda de consumidores soronegativos do Truvada – cujo preço de tabela é por volta de 1300 dólares por mês – ao mesmo tempo que consegue evitar as recriminações dos opositores da PrEP por implicitamente encorajar o sexo sem preservativo. “Se eles saíssem fazendo propaganda, eles teriam sido atacados”, aponta Sean Strub, 56 anos, soropositivo, fundador da revista Poz, destinada a pessoas que convivem com o HIV e a Aids.
A abordagem da Gilead parece estar funcionando. No final de junho, durante o fim de semana da Parada Gay de Nova York, Andrew Cuomo, governador de Nova York, que tem feito dos direitos LGBT uma parte estratégica de sua plataforma, disse que queria tornar o acesso à droga mais amplo como parte de um novo esforço para erradicar a epidemia da Aids do estado de Nova York até 2020. Daniel O’Connell, o czar das iniciativas relacionadas ao HIV do estado, me contou que Nova York espera colocar nas ruas uma campanha de informação pública sobre isso até o final do ano, a primeira do tipo sobre a PrEP.
A maior parte dos planos de saúde – tanto privados como públicos, como por exemplo o Medicaid, mantido pelo governo dos EUA para atender a população carente e idosos – cobre os custos do Truvada para a PrEP (como costumam fazer quando drogas são aprovadas pela FDA para usos específicos), e essa questão potencialmente polêmica ainda está passando despercebida pelo público. Alguns blogueiros estão se perguntando se a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso da empresa Hobby Lobby, que afirma que empregadores podem bloquear a cobertura de anticoncepcionais para seus empregados por causa das crenças religiosas dos donos, poderia levar a que alguns patrões bloqueiem o reembolso do Truvada em seus planos.
O Truvada serve para todos que passam pelo risco de contrair HIV, tanto homens como mulheres. Mas a PrEP tem sido estudada e discutida em maior parte entre os homens gays porque a maior incidência do HIV teima em permanecer entre esse grupo, especialmente entre os jovens gays de cor. Em 2010 a Centers of Disease Control (Centros de Controle de Doenças) relatou que 20% dos homens gays dos Estados Unidos têm HIV, comparado a apenas 0,3% da população geral. Quase metade não sabe disso – uma ignorância que torna-os altamente infecciosos. Em 2012, a agência relatou que a incidência de HIV em homens gays entre os 13 e 24 anos aumentou 22% nos últimos anos. Numa análise independente dessas estatísticas, um pesquisador de ponta projetou que, se as infecções de HIV continuarem nos níveis atuais, metade dos jovens gays de hoje serão portadores do HIV quando chegarem aos 50 anos. O objetivo de Cuomo, portanto, é muito ambicioso.
O Truvada não protege, claro, contra outras DSTs. Especialmente entre aqueles que foram testemunhas do surgimento da Aids, quando o germe misterioso surgiu do nada, há o temor de que retornar aos hábitos pré-camisinha poderia significar dar sorte para o azar mais uma vez. “A Mãe Natureza é uma vaca”, suspira o Dr. Martin Markowitz, um veterano do Centro de Pesquisa da Aids Aaron Diamond. “Não a subestime.”
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A ideia da PrEP pode ser especialmente temerosa para os gays mais velhos, principalmente para os soropositivos. Larry Kramer, hoje com 79 anos, com a saúde frágil e soropositivo desde a década de 1980, foi uma das vozes mais proeminentes em seu desprezo e pasmo. Num artigo no New York Times em maio sobre a versão de sua peça de 1985, The Normal Heart, para o canal HBO, ele deu as seguintes aspas: “qualquer um que por vontade própria tome um antirretroviral todos os dias só pode ter pedras na cabeça. Há algo covarde, eu acho, ao se tomar Truvada ao invés de usar um preservativo. Você está tomando uma droga que é um veneno, e ela reduz sua energia para lutar, para se envolver, para fazer qualquer coisa.”
Os defensores da PrEP explodiram, dizendo, em parte, que Kramer estava exagerando enormemente a toxicidade do Truvada. (Os efeitos colaterais em soronegativos até o momento parecem limitados. Na maior parte das vezes, isso significa algumas semanas iniciais de enjoos e diarreia – apesar de que, como com qualquer tratamento novo, só vamos saber com o tempo se tomar Truvada como prevenção tem efeitos colaterais a longo prazo). Andrew Sullivan, soropositivo, escreveu uma resposta em seu blog: “Imagine uma cena [na peça] em que alguém chega correndo num encontro [do Gay Men’s Health Crisis, que Kramer ajudou a fundar em 1981] e anuncia que agora há um comprimido que vai deixar você imune ao HIV se você tomá-lo uma vez por dia. Sério que Larry teria dito que qualquer um que tomasse o remédio na época tinha ‘pedras na cabeça’? Eu fico pensando como isso teria me salvado”. Michael Lucas, o grande empresário da indústria pornô que, recentemente, deixou de ser um ardoroso defensor dos preservativos para alguém que faz PrEP e agora permite sexo bareback em seus filmes, escreveu no blog da revista Out: “De muitas maneiras Larry Kramer é um herói, mas dessa vez ele está combatendo no lado errado da história.”
Soropositivos veteranos menos impertinentes que Kramer também parecem ter suas dúvidas. Numa entrevista durante o começo do ano na livraria Strand para promover suas novas memórias, Body Counts (“Contagem de Corpos”), o fundador da revista Poz, Strub, fez a seguinte declaração sobre a PrEP: “Ao invés de dar [aos soronegativos] habilidades para toda a vida ao ensiná-los a serem saudáveis com relação a sua sexualidade… a ideia [é estapafúrdia] de que nós vamos colocar dezenas de milhões de gays em PrEP e levar a economia à bancarrota para jogar inseticida nas pessoas”. (Mais tarde ele explicou que é a favor da PrEP como uma opção para escolhas individuais.)
Outro antigo portador do HIV – um gerente de loja em Chelsea chamado Steve, de 58 anos, diagnosticado em 1996 – me diz, francamente, que apesar de ser a favor do uso do Truvada em teoria, na maior parte do tempo isso o deixa profundamente emputecido.
“Eu estava no Eagle alguns meses atrás”, ele lembra, referindo-se a um bar leather em West Chelsea, “e esse latino gostoso e musculoso veio me dizer que ele estava fazendo PrEP e que eu poderia fudê-lo sem capa. Bum, ele falou isso assim na maior facilidade.” Steve perdeu muitas pessoas que amava para a AIDS. Para ele, até as efervescentes celebrações do Orgulho Gay são difíceis de assistir. “Eu queria que as pessoas compreendessem por que eles têm a possibilidade de tomar esse remédio hoje”, ele continua. “Isso vem no lombo de pessoas que morreram e sofreram. Isso tudo precisa ser aprendido e honrado.”
Walter Armstrong, 57 anos, é um veterano do grupo ACT UP que também perdeu muitos amigos para a Aids. (Ele próprio é soronegativo.) “A grande crise da Aids para os gays de classe média acabou nos anos 90”, ele afirma, “mas eu acho que não sou o único gay da minha geração que nunca vai superá-la.” Mesmo assim, ele torce para que a PrEP torne o preservativo obsoleto. “Pronto, falei!”, ele diz, levantando a voz. “Há algo bem feio na maneira como alguns gays mais velhos que viveram pela Aids falam para os mais jovens, ‘Depois de tudo que nós passamos, eu não consigo acreditar que você vai fazer PrEP e arriscar sua vida em troca de sexo’. Quando eu considero tudo por que passei, eu não consigo acreditar que alguém não o tomaria – ou pelo menos não considere”.
Mas hábitos antigos de toda uma comunidade são difíceis de abandonar. O fotógrafo e cineasta Michael Wakefield, 51 anos e soronegativo, promove festas de sexo em que o uso de preservativos é obrigatório há 20 anos. “Eu já vi ele literalmente separar dois caras um do outro se eles não estivessem usando preservativo e expulsá-los da festa”, relata Daskalakis, que já trabalhou ao lado de Wakefield várias vezes para em ações de saúde durante as festas, inclusive oferecendo vacinas contra meningite. “Para falar a verdade, eu já erotizei os preservativos”, confessa Wakefield. “Elas são sinal de que algo excitante está prestes a acontecer. Alguém está prestes a fuder.
“Mas eu tenho a sensação de que eu estou me tornando um dinossauro quando o assunto é camisinha.”
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No fim dos meus 20 anos e no começo dos 30, depois de passar os anos 1990 fazendo sexo cheio de cuidados e ansiedade, eu passei por uma fase de depressão e vícios. Não é que eu conscientemente queria fazer sexo bareback, mas eu queria alcançar o estágio em que eu não estaria mais pensando sobre preservativos e HIV e risco o tempo todo, e poderia relaxar. As drogas levaram até esse estágio.
Esse ano faz 14 anos que eu me tornei soropositivo. Quando isso aconteceu, com a terapia de protease disponível, eu não tinha mais o medo de morrer da doença. Mas eu também me sentia envergonhado, danificado até, como se eu tivesse de alguma forma traído um código de moral pessoal e até da comunidade. Entre os héteros simpatizantes e a maioria dos gays, a primeira onda de homens a contrair o HIV nos anos 1980 eram perdoados, porque ninguém sabia que a doença existia ou como preveni-la. Eu fui parte da segunda onda de infectados, aqueles que “já deviam saber o que fazer”.
Conforme os anos 2000 passaram, muitos dos meus amigos na faixa dos 30 anos também se tornaram soropositivos. Não todos, de forma alguma, mas pelo menos um a cada poucos meses. Em alguns casos eles estavam sofrendo de depressão e abuso de drogas, mas em outros eles simplesmente tiveram muito azar. Nós sabíamos que nós teríamos que encontrar uma maneira de ter acesso a esses remédios caríssimos pelo resto de nossas vidas.
Pior que isso era saber que na hierarquia sexual dos gays, nós agora éramos cidadãos de segunda classe. Claro, alguns soronegativos não teriam problemas em sair conosco, e o que não faltava era homens soropositivos incríveis com quem fazer sexo. Mas nós sempre teríamos que fazer uma escolha: esconder nosso status e ficar se sentindo mal com isso, ou revelá-lo e aguardar ou a aceitação ou a rejeição (ou, muitas vezes, uma mistura complicadíssima das duas).
Nós teríamos sido excelentes candidatos à PrEP.
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Não é muito difícil para um gay empregado e com plano de saúde numa cidade grande dos Estados Unidos ficar sabendo do Truvada e obtê-lo. Isso não é verdade para o grupo que potencialmente mais precisa dele: homens gays e bissexuais negros entre os 13 e 24 anos, que, em 2010, contabilizaram duas vezes mais novas infecções do HIV que seus pares brancos e hispânicos.
Christopher Street e os píeres adjacentes há muito tempo são o ponto de encontro para jovens gays e trans de cor. Eu passei alguns dias ali no último mês, perguntando às pessoas que encontrava o que eles sabiam e achavam da PrEP. De certa maneira, eles não eram muito diferentes dos homens mais velhos com quem eu conversei sobre isso nos bares em Chelsea e Hell’s Kitchen: um sabia sobre Truvada, outro talvez até já estivesse tomando o remédio fornecido pelo centro médico do bairro, mas os outros não faziam a menor ideia de que isso existia. Muitos simplesmente disseram que não acreditavam que esse tipo de comprimido existia, e que as informações que eu tinha eram falsas.
“Os jovens negros são muito resistentes à ideia da PrEP”. Quem tentou me avisar foi Steven-Emmanuel Martinez, 25 anos, filho de negros e latinos, e tem feito um trabalho informando a respeito da PrEP numa ONG. “Eu mesmo pretendo entrar em PrEP apesar de fazer sexo seguro sempre”, ele afirma. “Eu quero que as pessoas que eu educo confiem em mim não só porque eu sou pago para fazer isso, mas também porque eu faço o que recomendo. Para muitos caras, isso parece bom demais para ser verdade.”
Numa tarde quente, eu conversava sentado no píer com um grupo de amigos. Todos estão ou desempregados ou trabalham em empregos que pagam pouco, e não sabem como vão matar o tempo livre desse verão. Todos me dizem que são soronegativos e que já fizeram o teste. Alec, um jovem de 21 anos com cara de bebê e o mais falante, já ouviu falar de PrEP – ele até declinou de participar em um estudo de PrEP, ele diz, mas agora ele gostaria de ser incluído. “Eu vejo porque as pessoas fariam isso. As mulheres usam anticoncepcionais. Por que os gays deveriam ter medo de tomar algo? As pessoas não vão se proteger o tempo todo. De repente eles podem estar trabalhando como garotos de programa.”
“Minha escola também me convidou a participar de um estudo de PrEP”, respondeu seu amigo, Alonzo, 22 anos, cabelos afro. Ele não aceitou.
W., 23 anos, usando um boné do Chicago Blackhawks virado de lado sobre a cabeça, permanece quieto. “Isso não me interessa”, ele diz, incomodado. Ele afirma ser virgem. Alonzo diz que só faz sexo duas vezes por ano: “Eu não confio em ninguém.”
Mas todos admitem que se preocupam com a possibilidade de pegarem HIV. “Muito”, confessa Alonzo. Eles também estão cientes de que os índices de HIV são maiores entre homens como eles. “Acho que só de você respirar por aqui é capaz de você pegar”, brinca Alec, apontando a região dos píeres.
Rudolph, 20 anos, lembra que aprendeu na (já cancelada) série de TV Noah’s Arc, voltada para negros, a estatística alarmante da CDC de que 46% dos gays negros têm HIV. “Minha avó pegou”, ele diz. “Você sabe o que me deixa puto? Existe uma cura por aí, em algum lugar, e alguém está escondendo. Eles jogaram a AIDS aqui por algum motivo.”
Alec diz que eu posso ligar para ele mais tarde para continuar a conversa. Eu descubro que ele jubilou na faculdade e agora vive com a avó no Harlem. E então, depois de conversarmos um pouco, ele confessa: “OK, eu vou ser muito sincero com você.” Ele é um garoto de programa, caçando clientes em East Village. Ele usa o dinheiro para comprar roupas de marca para ele mesmo, ou comida para a avó. Ele descobriu ser soropositivo no fim de 2012 e está fazendo tratamento. Ele tem dificuldade de se lembrar de tomar os remédios, que obtém via Medicaid, porque bebe e fica chapado todos os dias.
“Eu me sinto como um idiota”, admite. “Como se eu fosse uma categoria, uma caixinha. Era exatamente isso que a sociedade esperava que eu fizesse. Eu podia ter me protegido, mas eu deixei que isso acontecesse.”
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Os alvos das propagandas mais sutis do Truvada costumam ser gays soronegativos num relacionamento com gays soropositivos. Muitos experts já me disseram que acham que é redundante que um indivíduo soronegativo num relacionamento sorodiscordante inicie a PrEP se seu parceiro está com a carga viral indetectável. Mas esse tipo de propaganda é bem menos controverso que direcionar a publicidade para quem quer fazer sexo sem preservativo com vários parceiros.
Numa tarde de garoa, eu atravesso alguns quarteirões em Brushwick para visitar Leo Herrera e Michael Beard, que se conheceram por meio do app de pegação Scruff durante o frio miserável do último inverno. Herrera, 33 anos e soronegativo, é cineasta e ativista LGBT, magro e miúdo. Beard, 37 anos e soropositivo, é um escritor de rosto redondo, tatuado, editor de vídeo e barman. Herrera é o mais falante, enquanto Beard preenche as lacunas sem se impor. Sentado na cozinha aconchegante do apartamento de Beard, enquanto seu gato, Chuck, passeia entre suas pernas, eles me contam como, numa noite gélida, Herrera convidou Beard para jantar em sua casa e tomar um vinho, e, depois, perguntou se não gostaria de passar a noite com ele.
“Eu disse que para mim tanto fazia, tudo bem”, lembra Beard.
“Ele estava se fazendo de santinho”, corta Herrera.
“Não, era sério!”, insiste Beard.
Beard dormiu lá. Ele já havia contado a Herrera sobre seu status sorológico durante o jantar (seu teste veio positivo em 2011, depois de ter feito sexo sem preservativo com um homem que não sabia ser positivo), e dividido como ele estava adquirindo seus remédios por meio de um programa assistencial. Leo não viu problema nenhum ao saber disso.
Eles acabaram tomando banho de banheira juntos durante todo o inverno. Mas foi só em março, quando estavam os dois em New Orleans para o Mardi Gras, que eles se apaixonaram. “Eu percebi”, lembra Herrera, que anteriormente tinha pensado que Beard era um pouco rígido demais, “que o inverno de Nova York não é a melhor época para se conhecer alguém”.
Quando eles voltaram para a cidade, Herrera se deparou com um dilema. Ele queria ter relações com o parceiro sem preservativo, mas a contagem indetectável de HIV de Beard não era o suficiente para deixá-lo tranquilo. Herrera foi se informar então sobre a PrEP.
“Eu sentia uma perda de controle terrível, me sentia de mãos atadas”, recorda-se Herrera. “Eu antes pensava que entraria em PrEP para catar todas as biscates de Nova York, e então me peguei considerando iniciar PrEP por causa de um cara só. Eu me senti como se estivesse entrando na enxurrada de uma tendência da saúde pública, sem falar de estar cedendo ao marketing dissimulado da Gilead. Será que essa era mesmo a melhor opção para mim?”
Tudo que Beard disse era que o corpo de Herrera era dele, e a decisão, também. Mas que ele não se sentiria confortável em fazer sexo sem preservativo, como ativo, a não ser que o Truvada estivesse na jogada.
Herrera enfrentou a papelada para conseguir um plano de saúde via Obamacare e entrar em PrEP. “Eu era um imigrante latino que cresceu sem plano de saúde”, ele diz, “e finalmente eu tinha motivo para conseguir um, visitar um médico, e fazer um check-up a cada três meses.” Ele tomou sua primeira dose de PrEP com uma lata enorme de cerveja e postou no Facebook uma foto da breja ao lado do frasco de Truvada. Um amigo respondeu com uma carinha mal-humorada (talvez por pensar que Herrera tenha HIV), mas outro escreveu “O futuro é agora!”, enquanto ainda outro, que também toma Truvada, disse que gostava de tomar seus comprimidos com uma mimosa.
Depois de dez dias, quando já tinham certeza de que o Truvada estava fazendo efeito, Beard penetrou Herrera sem camisinha. “Eu estava com medo de machucá-lo”, relembra Beard. “Eu estava nas nuvens durante o dia seguinte inteiro”, responde Herrera. Ele sorri.
A homossexualidade está separada da heterossexualidade pela simples questão de quem é o alvo de seu desejo. E por 50 anos, os gays passaram por uma série de reviravoltas extremas em sua psicologia sexual coletiva. Os armários da era pré-Stonewall deram lugar ao vale-tudo dos anos 1970, o que deu lugar então à morte, e em seguida à vergonha e ansiedade. E agora? Eu pergunto a Herrera como ele se sentia fazendo PrEP depois da “birra em minha cabeça” que ele disse ter sentido antes de iniciar o tratamento – a birra em que parecia que os vários debates da sexualidade gay do último meio século estavam entrando em colisão, em miniatura, conforme ele se decidia.
Ele faz uma pausa. “Eu sinto como se esse fosse o futuro, um novo capítulo”, ele reflete. E então Herrera nos surpreende quando cai no choro. Afinal de contas, uma história intensa de desejo e pavor não se desfaz facilmente. “Eu me sinto muito orgulhoso, porque muitos homens morreram para que eu fosse capaz de fazer isso”, ele diz.
Beard segura a mão de Herrera. “Leo tem mania de pensar em voz alta”, ele diz. E, então, para mim, “Por que nós deveríamos continuar nos punindo?”.
Caramba, que texto bom! Bem escrito! Parabéns!
[…] http://www.ladobi.com/2014/07/sexo-sem-medo-truvada-prep/ […]
[…] Por Marcio Caparica, publicado pelo site Lado Bi, em 28 de julho de 2014 […]
Somos um terreno bem fértil para quase todo tipo de cultura.
Muito interessante e esclarecedor essa matéria, assim como as outras matérias relacionadas à PrEP que vocês postam por aqui.
Eu gostaria de saber se vocês tem algum conhecimento de como está sendo a PrEP aqui no Brasil. Se o Truvada está sendo distribuída para soronegativos, e como está a realidade hoje no Brasil.
Oi Renato! O Brasil está fazendo programas de teste para avaliar se vale a pena um programa de PrEP bancado pelo Ministério da Saúde. Ele começou faz uma ou duas semanas e vai durar um ano, depois do que os responsáveis vão tirar as conclusões se vale a pena ou não oficializá-lo e abrir para toda a população. Existe uma página no Facebook para esse programa, visite: https://www.facebook.com/PrEPBRASIL?fref=ts
muito informativo…não tinha ouvindo fala do truvana…pode ser ao muito bom…