“Tudo que é classificação, para mim, é limite de inteligência”. Conversar com a fotógrafa Vania Toledo é testemunhar a prática desse que é um de seus lemas. Há 38 anos fotografando as pessoas que a rodeiam, Toledo guarda em seus arquivos (“prefiro usar filme, meu mundo ainda é quase todo analógico”) registros das pessoas criativas, libertárias e corajosas que sempre a rodearam. Apenas acontece que várias delas tornaram-se famosas ao longo dos anos. Ela descreve com o mesmo carinho e atenção a drag queen de um show em 1972 e divas do teatro nacional. “Eu gosto de gente de mente aberta”, define.
Na semana passada Vania Toledo inaugurou mais uma exposição de sua obra, agora no Museu da Diversidade Sexual, em São Paulo. Tarja Preta reúne 60 retratos que ela fez nas últimas quatro décadas de pessoas que decidiram viver sua verdade, independente de qualquer tentativa de censura. Lá estão imagens dos bastidores de espetáculos de casas noturnas na época da ditadura militar, retratos de ícones LGBT brasileiros como Cassandra Rios, Ney Matogrosso e Cazuza, e cliques mais recentes de novos destaques da diversidade, como As Bahias e a Cozinha Mineira, Laerte e Luana Hansen. “O nome Tarja Preta foi escolhido por três motivos. Primeiro, ‘tarja preta’ por causa dos remédios que essas pessoas tomavam na época – e tomam até hoje – para se libertarem. Segundo, ‘tarja preta’ significa também aquilo que as pessoas colocam sobre as imagens para censurá-las. E em terceiro lugar vem o luto: o luto por essa caretice vigente que está sendo cultivada amiúde em todas as áreas culturais brasileiras – ou até mundiais.”
Confira a entrevista com Vania Toledo na íntegra!
Ela quer mostrar, com seu trabalho, que a diversidade não é novidade – e que talvez os rótulos que multiplicam-se hoje não sejam tão necessários. “Eu senti a necessidade de mostrar para as pessoas dessa geração, e para todas as outras que a liberdade sexual sempre existiu. A liberdade sexual faz parte de qualquer pessoa libertária, de qualquer pessoa que se entende por gente, por uma pessoa normal. Não precisa que ter esse approach de montagem, de desmontagem, de unhas postiças, cílios postiços, o que quer que seja.” Acostumada a passar por cima de qualquer classificação, ela abomina qualquer tentativa de censura a qualquer tipo de expressão, tanto vinda de conservadores (“detesto essa caretice vigente, essa discussão se pode ou não pode nudez”) como dos modernosos (“odeio o politicamente correto, dizem que agora tem que usar ‘X’ nas palavras, um horror”).
Muitos jovens de hoje, considera, poderiam resgatar a maneira de ser das pessoas com que convivia na noite dos anos 1970. “Os espetáculos que eram montados nas casas noturnas gays eram fantásticos, porque eram de uma verdade, um escracho, um humor exarcebado… Era uma coisa feita para ser deliciosa, feita para rir, para brincar. Tinha uma leveza. Nessa época as pessoas não se levavam tão a sério. A seriedade existia na delícia de viver, de brincar, de se divertir.” Isso apesar das famílias mais estritas e da repressão do governo. “Eram épocas de ditadura, muito duras para essas pessoas. A coragem que eles tinham de serem autênticos, de enfrentarem o que viesse pela frente, era muito maior do que agora, com essa mídia que abraça a tudo e a todos, de uma forma midiática e até excessiva, na minha opinião.”
As saudades das pessoas libertárias do passado se contrasta com o horror às autoridades totalitárias. “Eu fui corrida com cavalos e cachorros durante as passeatas que fiz na Maria Antonia. Já fui parar no DOPS por causa de uma entrevista que fiz com o Ney Matogrosso: ele declarou ‘eu vim homossexual nessa geração pra cumprir uma missão’, e lá fomos eu e o editor da revista para a delegacia. Era liberdade demais falar isso, consideravam ‘uma apologia ao homossexualismo’. Quem viveu aquela época não quer mais. Eu não quero.”
Outro encontro que Vania Toledo teve com a censura foi quando publicou o primeiro livro com retratos de homens nus da América Latina, Homens. “Eu na verdade sou socióloga, e queria investigar esse comportamento masculino muito travado da época. Eles viviam sob uma censura educacional, comportamental e da maneira de se vestir que já não castigava mais tanto as mulheres. Então convidei amigos para serem entrevistados e posarem nus, tenho essas entrevistas guardadas até hoje. Amigos de cabeça aberta, que estavam lá e entenderam, alguns famosos, outros não. O livro foi proibido por causa dos textos. O editor então propôs que publicássemos um livro apenas de fotos, as imagens já falavam por si, e foi o estouro que foi.”
Sua curiosidade pelas pessoas fez com que trilhasse um caminho quase oposto ao investigar o feminino. “Eu tinha um pouco de antipatia pelas mulheres, sempre tive mais amigos que amigas. Até que decidi desvendar esse meandro feminino, o que era ser mulher naquela época, quais são os problemas que elas enfrentavam, como é essa sobrecarga de ter que trabalhar, lavar, passar, dar, fazer tudo, e ainda estar bonita, linda e loira – ou morena?”. Dessa inquietação surgiu o livro Personagens Femininos, em que fotografou diversas atrizes encarnando personagens escolhidos por elas. “Sempre fui muito ligada ao teatro, foi o teatro que me ensinou a fotografar. Eu pensei: ‘uma atriz que sobe no palco, ela pode tudo. Ela pode ser quem ela quiser, do jeito que ela quiser!’. Resolvi testar essa liberdade de comportamento e raciocínio feminino. Foram muitas conversas com ícones do teatro como Norma Bengel, Dina Sfat, Fernanda Montenegro. A confiabilidade delas comigo foi uma coisa absolutamente enriquecedora pra mim.”
Vania Toledo evita amarras aos comportamentos das pessoas mesmo perante às polêmicas do momento, como a discussão sobre o assédio sexual contra as mulheres. “As americanas são muito caretas, sempre foram, sempre serão. E americanos adoram fazer uma caça às bruxas. Se você começa a proibir tudo, você não vai mais poder flertar, não vai poder mais dar a mão com as duas mãos, não vai poder mais abraçar. Você está perdendo a capacidade de sedução de um homem, de uma mulher, dois homens, duas mulheres. Detesto e condeno a invasão física, invadir o espaço do outro, a violência, mas se não encostar em mim, não tem problema. Se eu não puder jogar minha sedução na hora de fotografar, eu estou fudida!”.
A fotógrafa resiste a qualquer tipo de censura e lamenta que tantos cedam à opinião alheia. “A autencidade saiu de moda, né? Há várias décadas as pessoas deixaram de serem elas mesmas e passaram a serem pessoas de grife, de marca. Eu acho essa coisa de ser fashion uó.” Toledo gosta de investigar o que faz de cada um único – qualquer homogeneização das pessoas, a seu ver, é lamentável. “Eu sinto uma eterna curiosidade pelo ser humano. E levo essa curiosidade, com delicadeza, comigo quando vou fotografar. Nesse momento, a pessoa pode revelar para você coisas que você nunca tinha visto. Acho que a curiosidade é o maior elemento que o ser humano tem para se dar bem na vida.”
E depois de tantos registros, qual seria o atual sonho fotográfico de Toledo? “O papa! Que gracinha ele é! Essa espontaneidade dele, essa simplicidade, eu acho comovente.” Resta à gente rezar para que esse encontro um dia aconteça – e que o mesmo olhar fascinado que clicou as pessoas transgressoras do passado nos presenteie com muitos mais registros fascinantes no futuro.
Serviço
Exposição Tarja Preta no Museu da Diversidade Sexual
- Local: Museu da Diversidade Sexual
- Endereço: Estação República do metrô – piso mezanino – Rua do Arouche, 24, República
- Em cartaz até 5 de maio
- Horário de funcionamento: terça a domingo, das 10h00 às 18h00
- Entrada gratuita
- Curadoria: Diógenes Moura