Em 1992 aconteceram os Jogos Olímpicos em Barcelona; o papa João Paulo II admitiu que a igreja Católica havia sido injusta com Galileu Galilei; o presidente Fernando Collor de Mello sofreu um processo de impeachment e renunciou à presidência do Brasil; Gloria Perez já usava em De corpo e alma vários dos expedientes que ainda utiliza em suas novelas; a epidemia do HIV corria solta, e nos EUA a Aids tornou-se a principal causa de mortes para homens entre os 25 e 44 anos.
Em 1992, também nos EUA um professor de filosofia chamado John Corvino começou a fazer uma palestra em que questionava: “O que há de moralmente errado com a homossexualidade?”. Ao longo de uma hora, o acadêmico levantava todas as objeções que são mais comumente usadas para apontar que a homossexualidade seria algo “imoral” e mostrava as falhas lógicas em cada uma delas. Numa época em que o armário ainda era a opção preferencial para a maioria das pessoas, assistir um filósofo declarar-se gay e, com calma e bom humor, desbancar cada um dos argumentos utilizados contra homossexuais, era inusitado, para não dizer chocante.
Desde então Corvino estabeleceu uma carreira acadêmica de sucesso, tornando-se diretor do departamento de filosofia da Universidade Wayne, em Detroit; publicou um livro de sua palestra; participou de inúmeros debates a respeito do casamento igualitário; e até lançou seu próprio canal no Youtube. O mundo também mudou: o casamento homoafetivo é realidade em vários países, a presença de LGBTs na mídia é cada vez maior, e subir num palco dizendo que é homossexual já não causa mais tanto espanto. Várias das questões sobre a moralidade da homossexualidade, no entanto, permanecem vivas, e as reflexões de Corvino continuam tão necessárias quanto antes. O LADO BI teve o prazer de entrevistá-lo por e-mail para descobrir quais são as considerações que o professor está fazendo agora que a palestra que tornou-lhe conhecido está completando 25 anos.
LADO BI Há vinte e cinco anos você discute a moralidade da homossexualidade. Quais foram as principais diferenças que você percebeu em suas palestras devido às mudanças culturais da última década?
JOHN CORVINO O texto da palestra “O que há de moralmente errado com a homossexualidade” permanece essencialmente o mesmo, pois as questões que aborda continuam basicamente as mesmas hoje. Mas duas mudanças são mais notáveis. A primeira é que, hoje, a maioria dos membros da plateia conhece pessoas que são abertamente gays ou lésbicas, então minha presença como alguém abertamente gay não é mais tão chocante nem tão diferente. A segunda é que agora o casamento homoafetivo foi legalizado nos Estados Unidos. É claro que essas duas mudanças funcionam em conjunto: a maior visibilidade tornou mais fácil para nós argumentar em prol do casamento igualitário, e o casamento contribuiu para uma maior visibilidade.
Há algo na sua palestra que você gostaria que não fosse mais necessário apontar?
Infelizmente jovens ainda são expulsos de casa porque são LGBT; e pessoas de todas idades ainda vivem no armário. É fácil para aqueles de nós, que vivemos nossa sexualidade abertamente, esquecer que muitas pessoas ainda sofrem a vergonha do armário. Eu gostaria de não ter mais que falar sobre isso, pois não queria que isso ainda fosse verdade – mas é.
O debate sobre a moralidade da homossexualidade é muito diferente do debate sobre a moralidade de ser transgênero?
Há similaridades e diferenças. A principal questão em comum é que os dois tópicos envolvem as expectativas sociais rígidas que são criadas tomando por base a forma de nosso corpo quando nascemos – expectativas sobre como deveríamos viver e como deveríamos amar. Os argumentos que são utilizados contra pessoas trans, no entanto, são um tanto diferentes. Acho que a identidade trans é muito mais incompreendida que a identidade gay, lésbica ou bissexual, em grande parte devido à visibilidade desses últimos. Isso está mudando, mas ainda há muito caminho pela frente.
No Brasil, assim como em outras partes do mundo, há esforços de se criminalizar o discurso homofóbico como discurso de ódio. Essas propostas nunca são aprovadas, no entanto, devido aos esforços daqueles que defendem esse discurso como “liberdade de expressão” e “liberdade de crença religiosa”. Como refutar esse argumento?
As palavras têm consequências. Eu defendo a liberdade de expressão com todas as forças, e sou a favor de que as leis a protejam amplamente – até mesmo quando se trata de declarações homofóbicas. As proteções legais da liberdade de expressão realmente são bastante fortes nos Estados Unidos, e isso é bom, na minha opinião. Mas, em questão de moral, acho que é importante reconhecer que declarações homofóbicas podem causar danos a pessoas, não apenas por incitarem a violência física – uma preocupação real – mas também por causarem prejuízos psicológicos profundos. Isso é errado, e disfarçá-lo como “liberdade de crença religiosa” não torna esse discurso menos errado.
Quando LGBTs tomam atitudes que ostentam sua sexualidade para héteros (como aconteceu com essa festa na Itália), os incomodados insistem que “quem quer ser respeitado tem que respeitar primeiro”. Isso faz sentido, moral ou filosoficamente?
Acho necessário fazer duas abordagens. Pelos mesmos motivos pelos quais eu defendo o direito legal de expressão do discurso de ódio, eu também defendo o direito legal de expressão do discurso blasfemador, inclusive o tipo de imagem religiosa sexualmente provocativa que você usou como exemplo. Mas eu também questiono os objetivos das pessoas que criaram esse tipo de imagem. Essas imagens provavelmente despertam o ódio contra a comunidade LGBT, e se elas sabotam a promoção de um ambiente mais seguro e acolhedor para pessoas LGBTs, eu me oponho a elas com convicção. As pessoas podem ter o direito de fazer algo, mas isso não torna essa atitude menos imprudente e tola.
Mas, refletindo menos sobre a imagem em questão, e mais sobre a questão do respeito… O respeito é algo que deve ser mútuo para existir? Ou deveria ser algo absoluto, não importa a atitude do outro? Eu concordo mais com a segunda opção, pois acho que é difícil definir o limiar do que seria uma “atitude respeitosa” – essa ilustração obviamente é algo extremo, mas muita gente se ofende por ações muito menos agressivas, como presenciar dois homens se beijando ou andando de mãos dadas. Acho que exigir respeito mútuo absoluto pode facilmente se tornar um instrumento de opressão.
Mais uma vez, acho necessário fazer duas abordagens. Acredito que todas as pessoas merecem um certo nível de respeito, simplesmente porque são seres humanos; todos devem ser respeitados como pessoas, ao invés de serem tratadas com desprezo como se fossem objetos. Mas se uma pessoa quer mais que o mínimo de respeito – se quer que outros façam um esforço intencional para escutá-la e compreendê-la e levar seus sentimentos em consideração – então sim, é melhor tratar os outros com a mesma consideração.
Identidades sexuais mais recentes, como agênero, pansexual e gênero fluído apresentam novos desafios para os debates filosóficos a respeito da sexualidade?
Na minha opinião, os desafios que essas identidades apresentam são menos de ordem filosófica, e mais de ordem prática e pessoal: as pessoas tendem a gostar de categorias bem delineadas e bem organizadas. Mas nem tudo se cabe numa caixinha.
No fim da palestra que questiona o que há de errado com a homossexualidade, você incentiva que heterossexuais tentem conhecer homossexuais, e que homossexuais saiam do armário. Essa mensagem muda conforme a homossexualidade se torna mais aceita e as novas gerações agem de maneira mais aberta com relação a sua sexualidade?
Bem, uma coisa é saber que existem, e outra é conhecer. Ou seja, uma coisa é saber que seu vizinho é LGBT ou queer; outra é realmente conhecê-lo, compreendê-lo, escutá-lo, e colocar-se em sua posição. Isso ainda permanece um desafio.
O novo livro de John Corvino, Debating Religious Liberty and Discrimination (“Debate sobre liberdade religiosa e discriminação”) já está à venda.