10 lições que aprendi com outros quadrinistas LGBTQ

Kris Barz, o autor da HQ “Torta de Climão”, conta o que observou em duas conferências sobre quadrinhos queer de que participou nos EUA

por Kris Barz

Criar quadrinhos é uma atividade meio masoquista. São horas e horas de trabalho investidos em algo que vai ser lido em um minuto. No entanto, ser capaz de criar seu próprio universo, personagens e situações é algo que traz muito prazer, principalmente com personagens que não são comumente explorados no mundo dos quadrinhos. Como criador do Torta de Climão, preciso estar sempre pensando, repensando e entrando em contato com coisas e pessoas diferentes.  Nas últimas duas semanas tive a oportunidade de participar de dois eventos nos Estados Unidos voltados para quadrinhos e ambos eram direcionados à parte menos mainstream da área: o DINK e o Q&C Conference.

O DINK (Exposição de Arte e Quadrinhos Independentes de Denver) é um evento para quadrinistas e zineiros independentes que rolou nos dias 8 e 9 de abril. Quadrinhos e estúdios mainstream como Marvel ou DC não têm vez lá. Foram dois dias com mais de 200 quadrinistas e suas respectivas mesas, todos expondo seus trabalhos, fazendo amizades, participando de workshops e mesas-redondas. Eu tinha minha mesinha lá, expondo/vendendo minha produção independente do Torta de Climão em inglês (Out&About). Também participei de uma mesa-redonda cujo tema era “A influência cultural da comunidade LGBTQ na arte indie”.

A Queers & Comics Conference teve sua segunda edição no final de semana seguinte, 15 e 16 de abril, em San Francisco. Apesar de ser aberta ao público, essa conferência bienal voltada para quadrinhos LGBTQ  é bastante direcionada para os criadores (desenhistas e escritores), também LGBTQs. Não havia mesas para venda de zines, pois o foco do evento era a discussão sobre o nosso próprio trabalho, com palestrantes-chave (Gengoroh Tagame e Mariko Tamaki nesta edição) e mesas-redondas. A Prism Comics era o único estande para venda de títulos e se encarregou de vender o trabalho de quem levou cópias de seus trabalhos. Ver 3 mesas lotadas de gibis exclusivamente LGBTQs foi emocionante.

O evento foi um sonho: dois dias de discussões bem profundas acerca de assuntos variados de nosso trabalho em 5 salas, acontecendo simultaneamente. Eram aproximadamente quarenta temas dos mais diversos: “Redefinindo a masculinidade por meio de quadrinhos queer”, “Bissexualidade em quadrinhos”, “História do mangá queer”, “Criando personagens além da sua própria identidade”, “Trabalhar com interseccionalidades da Teoria Queer e Pedagogia dos quadrinhos”, “Criando personagens não-brancos”, “Quadrinistas trans navegando na indústria”, “Criando personagens trans e não-binários”, “Falando de sexo queer em quadrinhos”( com um painel dedicado para cada gênero), “Os super-quadrinistas: artistas LGBTQ latinos” (do qual fui um dos convidados) e muitos outros. Foi bem difícil escolher quais palestras assistir!

A diversidade nunca me pareceu uma realidade tão gritante como nesse evento. Vi pessoas de todos os gêneros (cis, trans e não-binários), de todas as cores (de pele e de cabelo), idades, estilos, sexualidades e também com deficiências (os painéis tinham intérpretes). Vi painéis inteiros formado por mulheres discutindo temas que iam além do óbvio “mulheres nos quadrinhos” – na conferência, aliás, havia tantas mulheres quanto homens, como deveria ser. Talvez até mais. A diversidade estava presente tanto no corpo de convidados quanto na platéia. Dentro e fora dos painéis pude conversar com muitas pessoas, e me senti profundamente tocado pela experiência toda.

De tudo o que aprendi nesses dois eventos, posso destacar:

  1. Nem todo quadrinista LGBTQ que cria personagens LGBTQs coloca isso com destaque na história – e isso também é válido. A sexualidade pode ser um elemento essencial na história ou apenas uma entre várias características dos personagens. Ambos caminhos são formas válidas de representatividade e de ativismo. Há espaço e público para ambas. Sabe quando o simples fato de andar de mãos dadas é um ato político? É tipo isso.
  2. Tomar lugar de fala é algo que acontece – e isso é péssimo! Muitos quadrinistas e escritores, no entanto, também escrevem sobre temas e pessoas que não necessariamente correspondem a sua realidade pessoal. Pesquisa e empatia possibilitam que isso seja feito de uma forma muito humana e verossímil. Mas adentrar a realidade de outros grupos por meio do seu trabalho traz muita ansiedade e medo: é fácil cometer erros ou reforçar estereótipos.
  3. Panelinhas existem. Por mais unida e plural que a comunidade LGBTQ possa parecer, ainda dá pra se perceber homens gays andando com homens gays, lésbicas com lésbicas, etc. Não necessariamente pela falta de união, mas talvez pela presença de mais afinidades.
  4. Quando se sabe pelo que o outro passa, se passa a ter mais compaixão antes de fazer acusações. Um tema muito recorrente entre esses quadrinistas era o medo de cometer alguma gafe em suas obras na hora de apresentar sexualidade ou identidade de gênero, e ser julgado nas redes sociais por estar tentando criar algo que traga visibilidade para além do seu próprio umbigo. Rola até ameaça de morte vinda de grupos ativistas mais radicais! Esse medo em comum, que traz muita ansiedade, ganhou o nome de “representation sweat”. Eu me identifico horrores com esse sentimento. No entanto, muitos quadrinistas aprendem a lidar com isso com bom humor.
  5. Quatro entre 5 quadrinistas sofrem de fobia ou ansiedade social (eu inclusive). Mesmo não parecendo exteriormente, muitos artistas não levam o menor jeito para serem sociáveis. Talvez seja esse um dos motivos porque nossa habilidade artística se desenvolveu mais. Em eventos como esses conseguimos falar abertamente sobre essa falta de traquejo sem termos medo de sermos julgados – o que não evita silêncios constrangedores, nem conversas que não vão pra frente, nem climões ao tentar puxar conversa. No fim do evento em San Francisco, eu tinha acabado com as minhas unhas de tanto nervoso.
  6. Papéis de gênero estão enraizados na nossa cultura. Em lugares com diversidade de fato e inúmeras pessoas trans, a gente percebe que lê a identidade de gênero das pessoas apenas pelo que vestem (como somos ensinados a fazer). Também percebe que saber se se uma pessoa é homem, mulher, cis, trans ou não-binário não deveria ser uma informação essencial para você antes de se relacionar com alguém. Nem sempre isso tem a ver apenas com a aparência. Essa informação simplesmente não é da sua conta até que ela seja compartilhada.
  7. Ninguém está nem aí se você é um homem cis e está usando uma saia. É lindo saber que isso não precisa ser algo relevante, pode ser apenas um pedaço de pano que você acha bonito.
  8. O que move o mundo é o amor, mas também o dinheiro, infelizmente. O apoio do público, principalmente financeiro, ainda é a melhor alternativa para vermos representatividade LGBTQ nos quadrinhos e outras mídias. É ingenuidade esperar que as grandes editoras de quadrinhos tenham mais do que um mero personagem homem e gay (mas que ainda age “feito homem”), ou algumas personagens lésbicas ou bissexuais. Isso pode mudar um dia, mas vai levar muito tempo para acontecer nas editoras mainstream. É possível fazer disso realidade apoiando projetos de criadores LGBTQ independentes. Ainda somos considerados um mero “nicho” para a maioria das editoras, e não leitores. Nós, quadrinistas independentes e pequenas editoras “fora da curva”, é que estamos criando a nossa literatura para a nossa comunidade. Apoio financeiro e direto de leitores e leitoras faz toda a diferença para que a nossa produção não mingue. Não podemos apenas reclamar raivosamente no Facebook que falta representatividade, compartilhar projetos levados nas costas por poucos sem apoiar de fato, e esperar as coisas caírem do céu. A mudança, a representatividade e a visibilidade estão nas nossas mãos. E no nosso bolso.
  9. Cultura LGBTQ brasileira é rainha, né, mores? Durante as participações que fiz nesses dois eventos, assim como em outras palestras que tenho dado sobre o Torta de Climão aqui nos Estados Unidos, o jeito brasileiro de ser queer lacra. O que mais gera interesse sobre a cultura LGBTQ brasileira entre os estrangeiros é o nosso PAJUBÁ, e como um dialeto rico e poderosíssimo surgiu da marginalização sexual, racial e de identidade de gênero.
  10. Nossas histórias são o futuro. A cultura LGBTQ ahaza, e nossos quadrinistas/escritores, de países e culturas variadas, são maravilhosos. Nós arriscamos contar histórias, biográficas ou fictícias, que saem do lugar comum – não do “normal”. Essa diversidade é o que faz da nossa produção tão única, transgressora e afinal, humana.

Kris Barz é um shuffle de ilustração, comics, samba, viagens, astronomia, caipirinha e pão de queijo. Criou a série Torta de Climão pra contar a história de um grupo de amigos imersos (ou não) na cultura da comunidade LGBT brasileira. A primeira coleção das histórias do Torta foi publicada em 2016 pela Hoo Editora e está à venda nas livrarias. Apoie seu trabalho no Patreon, acompanhe suas criações no Instagram e assista a seus vídeos no Youtube!

 

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