Ronda Rousey vs. Amanda Nunes: 48 segundos de luta revelam um novo UFC

O que o confronto entre uma hétero branca e uma lésbica brasileira revelam sobre gênero, sexualidade e raça no MMA

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Eileen G’Sell para o site Salon

Acima da população ébria de uma rua em Las Vegas brilhavam os retratos de duas mulheres. Uma parecia mais uma sedutora modelo de capa de revista, com seus cachos dourados soltos ao redor da face, as sobrancelhas desenhadas erguidas acima de um olhar lânguido. A outra exibia o cabelo penteado para trás e um rosto sem qualquer maquiagem, dona de um olhar penetrante e andrógino, o maxilar preso numa expressão de gladiador. “Ela está de volta”, avisava o letreiro luminoso em caixa alta que separava os dois retratos.

Seria essa uma nova franquia de um reality show? Quem sabe uma nova versão de Project Runway? Não: essas são as novas representantes do Ultimate Fighting Championship (UFC).

Vinte anos atrás, o UFC era considerado violento demais para a TV a cabo; nem mesmo os canais pay-per-view queriam chegar perto. A cadeia de locadoras Blockbuster alugavam as fitas cassete nos EUA para milhões de telespectadores que ansiavam por lutadores que quebrassem os padrões (e, às vezes, alguns ossos). Agora que as artes marciais mistas (MMA) fazem parte do mainstream, parece que o campeonato realmente é um vale-tudo – inclusive no que se refere ao gênero de seus lutadores. É só conferir o UFC 207, estrelado por Ronda “Rowdy” Rousey vs. Amanda “The Lioness” Nunes.

“Ninguém nunca diz que está fazendo história até que ela é feita. Então já é história”, declarou a mãe de Rousey, a campeã de judô AnnMaria De Mars, sobre a ascensão de sua filha como a primeira campeã feminina do UFC em 2012. O que Rousey, seis vezes campeã dos pesos-galo, fez pela imagem pública do UFC – sem falar da luta feminina – é imensurável. Em 2015 ela foi a terceira pessoa mais buscada no Google; ela também é, ao que tudo consta, a lutadora mais bem paga – de qualquer gênero – dentro do UFC.

Levando-se isso tudo em consideração, a maneira impressionante (e impressionantemente veloz) que Rousey foi derrotada por Nunes na noite de 30 de dezembro parece ser o fim de uma era. E também parece indicar o início de outra: talvez mais inclusiva, e complicada, do que as anteriores. “Esse momento é o meu momento”, declarou a campeã Amanda Nunes pouco depois de receber o cinturão, depois de massacrar Rousey em apenas 48 segundos no primeiro round da luta. Nunes, brasileira, é a primeira campeã do UFC abertamente homossexual. As mulheres vieram para ficar no UFC – e não apenas para servir de colírio para os olhos dos marmanjos héteros.

Isso não significa que Rousey queria – ou queira – se colocar nesse papel. Como alguém que sempre evitou usar qualquer tipo de ornamento durante suas lutas, jamais foi possível confundir a lutadora com alguma das garotas que desfilam com os marcadores dos rounds. Nunes também não se limita à figura durona que exibe no ringue (como pode-se ver nas fotos fofas que posta em sua conta no Instagram ao lado da namorada). As duas mulheres trazem um nível de complexidade à imagem do esporte que desafiam as preconcepções de poder, sexualidade e violência – expondo as fundações culturais do racismo latente  e dos padrões heteronormativos de beleza. E é nesse ponto que as coisas tornam-se interessantes – e onde torna-se vital não fugir da natureza interseccional da luta profissional como algo que é, simultaneamente, um esporte e um espetáculo para o público. Rousey vs. Nunes revela mais que apenas as relações entre os gêneros; essa luta exibiu as várias camadas de opressão que cada atleta teve que confrontar antes e depois da luta.

Quando Rousey foi derrotada, a maior parte do público – predominantemente masculino – que lotava a plateia da arena em St. Louis permaneceu em silêncio. Suponho que, para a maioria dos presentes, seria empolgante ver Rousey, uma mulher cuja aparência segue os padrões das modelos fotográficas, vencer repetidas vezes outras lutadoras “menos atraentes”. Suponho também que, para muitos dos pagantes, seja menos emocionante ver a gatinha levar um couro de uma lésbica brasileira de tranças. Vários comentaristas esportivos utilizaram verbos como “maltratar” para descrever o que Nunes fez com Rousey – o que até pode ser correto, mas que remete mais à violência doméstica, quando na verdade o que aconteceu foi uma atleta profissional fazendo algo que foi treinada para fazer contra outra atleta profissional.

“A cabeça de Rousey foi jogada para trás tantas vezes… que a plateia já sabia o que estava prestes a acontecer”, descreveu Josh Gross para o jornal The Guardian. Antes de ser “resgatada… de ainda mais agressões” por um juiz galante, “a noite de Rousey – e quem sabe sua carreira – já havia chegado ao fim por 27 golpes que distorceram o rosto da ex-campeã de maneiras horrendas.”

Maneiras horrendas? Não é essa a intenção de uma luta, em parte (hmmm… completamente)? É difícil imaginar que se usaria os mesmos termos para um lutador, não importa o quanto for inglória sua derrota ou dramática sua expressão. E é duvidoso que esse tipo de comentário também seria feito com relação a um rosto de outra lutadora que não seja tão branquinha e angelical, como Nunes. Também é difícil sentir muita dó de Rousey, quando se considera a diferença gritante entre o cachê das lutadoras. Para cada segundo em que o rosto de Rousey foi “avariado”, a lutadora ganhou 62,5 mil dólares, num total de 3 milhões de dólares pela luta. Nunes levou para casa apenas 200 mil dólares por esse confronto. Num mundo em que o rendimento das mulheres latinas em média é 54% do rendimento dos homens brancos, isso pode até não ser surpreendente, mas mesmo assim é digno de consideração. Assim como é um insulto se reduzir Rousey a nada além de seu rosto, como se sua aparência fosse tudo que está em jogo, também é ofensivo que se retrate Nunes apenas como uma “figura ameaçadora”, impassível e exótica.

A igualdade entre os gêneros é algo que dá pano para manga no mundo do esporte profissional faz tempo, e o fato de que as mulheres estão em ascensão em um dos esportes mais hipermasculinos que existe bastante irônico e digno de reflexão. Para deixar tudo ainda mais interessante, a mesma empresa que comprou o UFC em 2016 também detém os direitos sobre a competição de Miss Universo. O MMA conta com uma performatividade de gênero exagerada e espetacular não muito distante da de concursos de beleza ou de competições de drag queens (ou de filmes pornôs). Certamente a imagem de Rousey como uma mulher dura na queda, e ainda assim aceitavelmente feminina, heterossexual e caucasiana colaborou para sua celebridade, popularidade e para a expansão das mulheres no esporte. Dizer que Rousey é uma feminista apenas por causa disso, no entanto, também é problemático – a maneira como detesta ser chamada de lésbica, por exemplo, soa exagerada na melhor das hipóteses, e homofóbica nas piores. “Quando pensam que, só porque sou uma atleta, eu devo ser lésbica… eu digo, ‘não, eu gosto tanto de homem que fiz da minha profissão bater em mulheres para que eu tenha todos eles para mim!”, ela declarou para a revista Rolling Stone quando foi capa da revista em 2015. Nada contra uma mulher hétero boa de briga, mas às vezes parece que ela se preocupa um pouquinho demais com isso.

Do lado oposto, depois de sua vitória Nunes demonstrou humildade e solidariedade com suas colegas lutadoras. Depois de ter sua vitória declarada, Nunes se aproximou de seus técnicos e treinadores para cumprimentá-los e abraçá-los. Suas primeiras palavras para o locutor Joe Rogan – “eu gosto muito do seu Twitter” – fazia referência à maneira como ele apontou que as duas lutadoras eram promovidas de maneira desigual. Quando perguntada sobre o descaso que sofreu durante a promoção da luta, Nunes não respondeu, e preferiu apontar para sua namorada, a peso-palha Nina Ansaroff, ao lado do ringue, e dizer feliz da vida que ela seria a próxima campeã do UFC.

Em 2009 o cientista político Dan Bousfield argumentou no ensaio “As diplomacias do UFC: masculinidades ressurgentes da militância global” que o sucesso do MMA e do UFC “acompanha uma nova performance de gênero globalizada, que se tornou um momento político e cultural poderoso”, remilitarizando a masculinidade em resposta às críticas feministas aos conflitos globais e às guerras. Oito anos depois, com as mulheres tomando conta do UFC e cada vez mais exércitos admitindo mulheres em todas as posições, vale perguntar se as mulheres não estariam efetivamentente feminilizando a masculinidade de dentro para fora. Assim como as mulheres tornaram-se o segmento de audiência mais importante das competições de futebol americano, é bem possível que o público feminino se interesse cada vez mais pelo UFC, especialmente conforme as lutadoras conquistam a atenção e respeito que merecem. “Tem muita gente talentosa na nossa divisão, sabe?”, frisou Nunes de dentro do octógono. “Vocês têm que ver como as meninas trabalham duro”. Não importa se Rousey realmente era capaz de vencer a boxeadora Floyd Mayweather (como afirmou em 2015); ela, e Nunes, e Ansaroff – sem falar da lutadora trans Fox Fallon – estão transformando não apenas a maneira como a luta profissional é vista, mas como se vê as lutadoras como algo digno de se assistir por si só – não importa se são femininas, caminhoneiras, desleixadas ou enfeitadas.

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