Adaptado do artigo de Sean Ingle para o jornal The Guardian e do artigo de David Walsh para o jornal The Australian
Caster Semenya entrou nas pistas três vezes no sábado, 16 de abril, e a cada passada deixava claro que ela estava retornando a seus níveis extraordinários. Primeiro ela venceu o título sul-africano dos 400 m em 50,78 segundos, não apenas o melhor tempo do mundo nesse ano, mas também seu recorde pessoal, superando sua marca anterior em quase dois segundos. Então, depois de descansar 50 minutos, ela disparou para o título dos 800 m em 1:58,45, outro recorde mundial para o ano de 2016. Finalmente, só para completar, ela destruiu os 1500 m.
Foi a primeira vez que alguém venceu os três títulos sul-africanos no mesmo dia; mais do que isso, foi como ela conseguiu essas marcas que impressionou a todos. Semenya mal se cansou em cada corrida, até a última. Como disse um comentarista durante a corrida de 800 m, que ela venceu por sete segundos, “Deus do céu, isso é algo excepcional. É como se ela estivesse fazendo cooper!”. Como o renomado cientista esportivo sul-africano Ross Tucker afirmou: “é impossível saber com que velocidade ela poderia ter corrido, mas pareceu tudo tão fácil. Ela parecia capaz de correr na faixa próxima aos 49 segundos na prova de 400 metros, e de completar os 800 metros em 1:55 ou menos.”
Fazer previsões é algo perigoso. Mas Semenya parece ser uma das grandes favoritas para o ouro olímpico nos 800 metros rasos. E, se isso acontecer, muitas das controvérsias que despontaram em 2009 – quando sua marca massacrante nos 800 m durante o mundial de atletismo foi ofuscada por acusações e insinuações quanto a seu gênero – certamente tomarão o Rio de Janeiro como um furacão.
Depois daquela vitória, por mais de quatro segundos, o mundo da atleta de 18 anos mudou, e para pior. Ela foi submetida a exames de gênero que nunca vieram a público, mas que supostamente, segundo o Australian Daily Telegraph, demonstrariam que ela não tem útero nem ovários, mas sim testículos internos. A IAAF, a organização que comanda o atletismo internacional, foi acusada de violar seus direitos humanos, de tratar da questão sem qualquer cuidado, e até de racismo. A organização insistiu que estava apenas tentando garantir que mulheres com níveis altos de testosterona não teriam vantagens injustas. As discussões esquentaram, se acalmaram e inflamaram-se novamente; Semenya sofreu em silêncio.
Desde então, ela vem sendo boa, mas não excelente. Ela obteve medalhas de ouro nos campeonatos mundiais de 2011 e nos Jogos Olímpicos de 2012, que podem ainda vir a se converter em ouros já que a russa Mariya Savinova, que a venceu em ambas as ocasiões, corre o risco de ser afastada permanentemente do esporte por acusações de doping. Mas depois de sofrer nos campeonatos mundiais no ano passado, Semenya repentinamente redescobriu sua gana – e sua força. Como afirma tucker: “Parece que ela está ridiculamente magra e atlética. Ela é uma atleta diferente da que competiu ano passado.”
O que mudou? Provavelmente isso não se deve apenas a seu treinamento, mas também a uma decisão de uma corte suíça. O desfecho do caso de Semenya em 2009 fez com que as autoridades esportivas substituíssem suas políticas de “teste de gênero” por um limite máximo nos níveis de testosterona das atletas – e a obrigar que qualquer mulher com níveis que superem esse nível, para competir, tomem hormônios para que eles sejam reduzidos a níveis “normais”. No entanto, em julho, a Corte de Arbitragem do Esporte (CAS) reverteu essa decisão, depois de considerar o caso da corredora indiana Dutee Chand, que estava preparada para competir nos Commonwealth Games até que seus altos níveis de testosterona foram descobertos.
Os advogados de Chand insistiram que ela não pode ser culpada por suas vantagens genéticas, assim como jogadores de basquete não têm culpa por terem dois metros de altura. Eles também argumentaram que essa lei discrimina as mulheres, pois homens não têm que passar por testes para avaliar seus níveis naturais de testosterona. No entanto, como explica a doutora Marjolaine Viret, uma advogada de direito esportivo da Suíça que frequentemente lida com decisões da CAS: “o fator decisivo para o painel da CAS foi se o nível de testosterona acima de 10 nmol/l estabelecido pela IAAF dava a atletas mulheres vantagens competitivas sobre as outras concorrentes, trazendo-as a um nível próximo ao dos atletas homens. Nesse caso, cabia à IAAF comprovar essa afirmação.”
Dada a falta de indícios científicos, a legislação existente sobre hiperandroginismo foi suspensa por dois anos – o que permitiu que qualquer mulher atleta que estivesse tomando remédios para suprimir sua testosterona deixasse de ingeri-los. Pessoalmente, Tucker pensa que a CAS tomou a decisão errada. “A antiga regulamentação era um acordo possível estabelecido com base científica”, afirma. “Era uma tentativa de lidar com uma situação difícil, e a CAS, para todos os efeitos, eliminou essa estratégia. Agora não há qualquer regulamentação, e, em última instância, isso muda a natureza dos esportes femininos.”
Ele acredita que o veredito tem ainda mais uma falha. “A CAS também acabou por afirmar que a testosterona injetada é diferente da testosterona produzida por seu corpo, o que é ridículo, pois elas são a mesma coisa.”
Essa questão, e outras em torno dos direitos dos atletas, costumam ser difíceis de se avaliar, mas para Tucker a principal questão é quando que ser alguém fora dos padrões torna-se um problema, e o excepcional torna-se injusto. “Essa é a cruz da questão. Nós dizemos que você pode e deveria ter algumas vantagens se você quiser vencer, mas em algum ponto o tipo de vantagem que se tem, e sua magnitude, deve ser conferida. Para um boxeador de peso médio, isso acontece aos 75 kg. Mas a linha entre homem e mulher acontece em algum outor ponto. Nós apenas não sabemos ainda onde ele se encontra.”
Na semana passada um website autraliano, The Science of Sport, publicou uma longa entrevista com Joanne Harper, uma médica do Centro Médico de Providence, no Oregon. Harper é transgênero, pois nasceu com o sexo biológico masculino, mas identifica-se como mulher. Ela também era uma atleta de ponta cujo nível de performance caiu drasticamente depois que ela iniciou o tratamento hormonal que ajudou-a a viver como mulher.
Muitos acreditam que uma mulher que nasceu com níveis excepcionalmente altos de testosterona não fez nada além de tirar uma carta vantajosa no jogo biológico, e deveria ter permissão para participar das competições. Harper explicou para Tucker por que ela discorda desse ponto de vista, e, como ela é uma conselheira oficial do Comitê Olímpico Internacional (COI), sua opinião é importante. “Eu apoio o direito de federações como o COI e o IAAF de criarem um gênero desportivo de facto ao impedirem que atletas com níveis de testosterona vantajosos compitam contra a vasta maioria das mulheres… é bem possível que venhamos a ter um pódio composto apenas de mulheres intersexo na competição de 800 m no Rio, e eu não me surpreenderia se houver até cinco mulheres interesexo dentre as oito finalistas”, afirmou.
“Há medalhistas interesexo em potencial em outros eventos, também. As mutações de que estamos falando são muito raras, mas essas mulheres estão desproporcionalmente presentes nessas competições.”
Muitos concordam com Harper, outros discordam, e dadas as questões éticas e morais, é muito mais fácil contemplar todos os pontos de vista que saber o que é o certo a se fazer.
Enquanto isso, a mira de Semenya está firme nos tempos mais favoráveis que estão a vir. “Eu usou uma sonhadora”, afirma. “E meu sonho é me tornar uma campeã olímpica, campeã mundial, e detentora do recorde mundial.”
Esses três objetivos parecem estar a seu alcance, inclusive o antes aparentemente insuperável recorde de Jarmila Kratochvilova de 800 m em 1:53,28. No entanto, não importa a coragem com que ela tenta fazer história, teme-se que ela jamais será capaz de ultrapassar as controvérsias.