Como a criptografia salva a vida de LGBTs ao redor do mundo

O embate entre o governo dos EUA e a Apple é visto como muitos como o confronto entre a segurança nacional e um ideal de privacidade. Mas para muitos LGBTs ao redor do mundo, a criptografia é uma garantia de sobrevivência

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Evan Greer e Victoria Ruiz para o blog Motherboard

Para a maioria das pessoas, perder o celular ou tê-lo furtado já é tenso.

Fica difícil se livrar daquela sensação horrorosa de que seja quem for pode estar lendo suas mensagens de texto, seus e-mails, conferindo sua conta bancária, vendo suas fotos – inclusive aquelas que você não gostaria que fossem colocadas na internet, ou enviadas para seu chefe.

Mas para membros da comunidade LGBT ao redor do mundo, essas informações acabarem nas mãos erradas é uma fonte de perigos muito maiores que apenas o constrangimento em potencial. Essa questão torna-se, literalmente, uma de vida ou morte.

O FBI está tentando forçar a Apple a criar um software que poderia ser utilizado para invadir qualquer iPhone existente. A luta entre o governo e a companhia fundada por Steve Jobs ganhou destaque na mídia, e a imprensa retrata esse embate como a luta entre um ideal abstrato de privacidade individual e a segurança nacional.

Esse enfoque, no entanto, ignora a realidade de que, para milhões de pessoas, a privacidade e a segurança digital são essenciais para manter sua segurança física. Elas não são luxos, são necessidades.

Apesar de tantos avanços das últimas décadas, as pessoas LGBT, principalmente aquelas que são transgênero ou não são caucasianas, encaram níveis alarmantes de violência, discriminação em questões de emprego e moradia, bullying na escola e no local de trabalho, e são destratadas por policiais. Na maioria dos Estados Unidos, ainda é possível ser legalmente demitido apenas por ser gay. O Brasil também ainda não oferece uma lei nacional contra homofobia nem transfobia.

Todos ficam apavorados ao pensar que seu celular possa estar nas mãos de uma autoridade abusiva ou de um ex-namorado ciumento, mas as consequências do vazamento de dados pessoais para pessoas LGBT podem ser muito mais severas.

Felizmente, a maioria das pessoas coloca uma senha em seu celular.

A tecnologia que importa na questão dessas senhas é a criptografia. É uma segurança básica que protege nossos celulares de bisbilhoteiros em potencial, e também é uma camada de defesa crítica que protege nossos aeroportos, hospitais, usinas de energia, estações de tratamento de água e tantas outras coisas de ataques virtuais.

Pessoas LGBT de todo o mundo dependem da criptografia todos os dias para permanecerem vivos e protegerem-se da violência e da discriminação, contando com as capacidades básicas de segurança de seus celulares para impedir que assediadores online, stalkers e tantas outras pessoas invadam sua vida pessoal e utilizem sua sexualidade ou identidade de gênero contra eles mesmos.

Em regiões em que ser abertamente queer é perigoso, pessoas queer e transgênero estariam forçadas ao isolamento quase total sem a possibilidade de comunicarem-se com segurança por meio de aplicativos, fóruns online, e outras plataforma que manteem-se seguras e particulares apenas graças à tecnologia da criptografia.

Essas situações não são apenas teóricas. Há exemplos aterrorizantes de sobra, como o professor que tornou-se um alvo por ser gay, e depois foi demitido, quando sua conta no Dropbox foi hackeada e um vídeo sexual seu foi publicado no site da escola em que dava aula. Ou quando um site de namoro russo foi invadido, provavelmente pelo governo, e dezenas de milhares de usuários receberam mensagens ameaçando-os de prisão por causa das leis contra “propaganda gay” do país.

O FBI e outras agências legais vêm exigindo softwares de acesso e criptografias enfraquecidas há anos, apesar de experts em tecnologia, e até mesmo ex-oficiais de inteligência, concordarem que estamos todos mais seguros com criptografias fortes que sem elas.

O conflito mais recente com a Apple trouxe esse debate até então obscuro aos holofotes internacionais, e expôs o fato de que a maioria dos políticos e profissionais de mídia simplesmente não entendem de tecnologia o suficiente para compreenderem as ramificações em potencial do que o FBI está querendo que a Apple faça. Não se trata de apenas “destravar” um único celular; o que se pede é que seja criada uma entrada digital clandestina que poderia ser utilizada para invadir qualquer iPhone, de uma maneira que vai criar um precedente que inevitavelmente será utilizado para forçar outros serviços de criptografia a fazerem o mesmo.

A justificativa do FBI para essa exigência é que vidas estão em jogo. Mas eles convenientemente estão omitindo as outras maneiras muito reais em que essas brechas na segurança digital colocam ainda mais vidas em risco.

As tecnologias de criptografia estão mantendo vidas de pessoas LGBT seguras tanto quanto as legislações, se não mais – essas leis não costumam ser cumpridas com muito afinco, e não impedem a violência e a opressão que as populações LGBT mais vulneráveis vivenciam.

Se você se importa com a vida de pessoas queer e trans, você deveria se unir ao movimento cada vez maior que se opõe a que governos tenham acessos a nossos computadores e celulares. Criptografias robustas salvam vidas todos os dias. Se nós as perdermos, estamos colocando em risco muito mais que nossa privacidade. Colocamos em risco nosso direito mais essencial: o de sermos nós mesmos.

Evan Greer é o diretor de campanha da ONG Fight for the Furture. Ela viaja ao redor do mundo como palestrante e artista, e é a mãe orgulhosa de uma criança transgênero. Victoria Ruiz é a vocalista da banda Downtown Boys, uma banda dance punk bilíngue que ganhou as manchetes esse ano com suas performances políticas e energéticas.

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