Traduzido do capítulo “Sexuality, Diversity and Ethics in the Agenda of Progressive Muslims”, escrito pelo Dr. Scott Siraj al-Haqq Kugle para o livro Progressive Muslims (ed. Omid Safi) e adaptado por Tynan Power
Nota: referências aos profetas da religião islâmica aparecem seguidas do acrônimo SAWS. Essa é uma abreviação da expressão árabe “ṣalla llāhu ʿalay-hi wa-alehe-wa-sallam”, que significa “que a paz e as bênçãos de Allah estejam sobre ele”.
1. Compreendendo a diversidade sexual no Islã
Algumas religiões parecem ver o sexo como algo vergonhoso ou sujo. Esse é o caso do Islã?
Não. Nos primórdios da história islâmica, o sexo era encarado como uma parte positiva da vida humana. O Profeta Muhammad (SAWS) ajudou as pessoas a verem que a vida espiritual e a vida sexual estão conectadas. Os primeiros estudiosos muçulmanos falavam sobre o sexo de uma maneira bastante direta, como uma parte normal e positiva da vida. Al-Ghazali, um estudioso muçulmano que viveu há mais de 900 anos, dizia que o prazer sexual era uma bênção de Deus. Até mesmo o Corão (o livro sagrado dos muçulmanos) descreve o céu como um paraíso de tipo físico. O Paraíso é descrito como um lugar que contém “recompensas” como rios de leite e mel que o tornam aprazível aos sentidos – inclusive aos desejos sexuais.
A sexualidade é a mesma coisa que “luxúria”?
Não. A sexualidade é muito mais que desejo ou “luxúria”. Sexualidade envolve o desejo, mas também inclui pensamentos, atos, e como alguém vê a si mesmo e aos outros. É parte da identidade de uma pessoa. Ela afeta como as pessoas se relacionam. É importante perceber, também, que o desejo em si não é uma coisa ruim no Islã. Há um famoso hadith, ou história sobre o Profeta Muhammad (SAWS), em que o Profeta diz “Três coisas são bem quistas por mim nesse mundo seu: mulheres, perfume e oração.” Esse hadith indica que o desejo sexual é algo que o Profeta aprovava.
A sexualidade só é considerada “boa” se for usada para gerar filhos?
Não. O Profeta Muhammad (SAWS) e os primeiros estudiosos diziam que o “jogo sexual” é uma coisa boa. Para se falar a verdade, em um hadith Muhammad disse que Deus recompensa as pessoas pelos “jogos sexuais”. O termo “jogo sexual” não é definido no Alcorão ou em hadiths. Algumas pessoas o entendem como atos sexuais que não são o coito. “Jogos sexuais” não necessariamente levam à geração de filhos, portanto isso seria indicativo de que o sexo é bom e saudável tendo ou não o propósito de gerar filhos.
Então, no Islã, “vale tudo” quando se trata de sexo?
Não. Há limites. A maioria desses limites têm a ver com relações entre pessoas que fazem sexo. Os limites não têm a ver com os atos sexuais em si, no entanto. Por exemplo:
- No Islã, irmãos e irmãs não podem se casar entre si. Há versos no Alcorão que especificamente mencionam quem pode ou não se casar. Essa limitação impede que homens e mulheres com parentesco próximo gerem filhos com problemas de saúde sérios.
- No Islã, homens e mulheres não devem fazer sexo se não têm uma relação conhecida e clara um com o outro. Essa limitação ajuda a garantir que filhos serão cuidados e sustentados por ambos os pais. Essa limitação foi especialmente importante para as mulhers numa época em que os homens tinham mais oportunidades para trabalhar e ganhar dinheiro. Relacionamentos claros também ajudam ambas as partes da relação a saberem o que podem esperar um do outro – quais direitos e responsabilidades têm.
A lei islâmica é clara sobre o que é e não é permissível?
Em alguns casos – como nos versos do Alcorão que dizem que irmãos e irmãs não podem se casar – ela é clara. Em outros casos, nem tanto. Estudiosos atuais muitas vezes se referem à lei islâmica como se ela sempre fosse clara e simples. Na verdade, a lei islâmica é bastante complexa. A lei vem de muitas fontes, não apenas do Alcorão. Algumas dessas fontes discordam entre si e a maioria é baseada na opinião de seres humanos. Em algumas culturas, a lei islâmica segue os ensinamentos de estudiosos de um ponto de vista, enquanto em outras culturas a lei islâmica pode seguir vários estudiosos com variados pontos de vista.
Na época do Profeta, o sexo era permitido apenas entre um marido e uma mulher formalmente casados?
Não. O sexo era permitido como parte de vários relacionamentos. A maior parte desses relacionamentos envolvia algum tipo de contrato ou acordo. Alguns contratos de relacionamento eram formais. Um casamento formal contaria com a presença de testemunhas e o acordo de casamento poderia se dar por escrito e ser assinado. Outros contratos de relacionamento eram informais – eles eram compreendidos pela comunidade naquele momento mas não necessariamente eram colocados no papel ou incluíam uma cerimônia formal com testemunhas. Na época do Profeta Muhammad (SAWS), o sexo podia fazer parte de um contrato informal de relacionamento, como “casamentos temporários”. Quando a escravidão era legalizada, relações sexuais entre escravos e seus donos também eram permitidas.
Hoje, nós não costumamos considerar casamentos e outros relacionamentos como “contratos”, mas muitos relacionamentos são baseados em algum tipo de acordo. Alguns acordos de relacionamentos são colocados no papel e unem pessoas legalmente, enquanto outros acordos de relacionamento são feitos oralmente (em conversas).
As regras sobre sexo no Islã não tratam apenas de relações entre homens e mulheres?
Não necessariamente. O Alcorão fornece regras para relacionamentos entre homens e mulheres, mas não estabelece regras para relacionamentos homoafetivos (entre gays ou lésbicas). Isso não quer dizer que ele proíbe relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. Há várias razões por que a lei islâmica se concentrou nos relacionamentos entre homens e mulheres. Para começar, os juristas muçulmanos viam os relacionamentos heterossexuais como sua principal preocupação porque podiam levar à gravidez. Casais homoafetivos podem ter filhos ou criá-los, mas, para esses casais, gerar filhos não é um efeito colateral acidental de se fazer sexo.
Os primeiros juristas muçulmanos queriam evitar situações em que um filho nasceria sem o sustento que um pai poderia fornecer. Naquela época, homens ganhavam a maior parte da renda, e poucas mulheres tinham renda própria substancial. Por causa da desigualdade entre homens e mulheres, ter um homem na família ajudava a família finaceiramente e socialmente.
Outra razão por que os juristas islâmicos falavam tanto sobre relacionamentos heterossexuais é que eles estavam tentando lidar com as necessidades da maioria das pessoas. Como a maior parte das pessoas é heterossexual, suas necessidades eram as preocupações primárias dos estudiosos. Isso não quer dizer que outras identidades sexuais não existem. Isso também não significa que outras identidades sexuais são proibidas apenas porque não são mencionadas.
Por que o sexo é um tópico tão polêmico entre muçulmanos?
Há duas razões porque o sexo é um tópico tão polêmico. As regras sobre sexo e gênero podem ser usadas para manter os homens em posições de poder sobre as mulheres. As regras sobre relacionamentos sexuais muitas vezes são distorcidas para beneficiar os homens, ao invés de permanecerem fiéis à regra estabelecida no Alcorão. Por exemplo, em muitas culturas islâmicas, uma mulher fazer sexo com um homem antes de se casarem é motivo de vergonha para ela e suas família. Essa mesma vergonha não recai sobre a família de um homem se ele faz sexo antes de se casar. O Alcorão não faz qualquer distinção entre o pecado das duas pessoas envolvidas, no entanto. Quando a regra é distorcida para trazer maior vergonha e uma punição mais severa para as mulheres, significa que mulheres têm muito a perder se fazem sexo antes do casamento, enquanto os homens não encaram os mesmos riscos. A regra acaba tendo a função de controlar as mulheres, mas permite que os homens façam o que desejarem.
Outra razão por que o sexo é um tópico polêmico entre muçulmanos tem a ver com a política. Muitos países islâmicos foram colonizados por países europeus não-muçulmanos. Os governantes coloniais substituíram os sistemas legais islâmicos pelas leis europeias. Mesmo depois de os governantes coloniais terem ido embora, muitos muçulmanos sentiram que sua cultura estava ameaçada. Alguns muçulmanos que imigram para outros países temem que sua cultura será perdida no novo país. Quando pessoas sentem-se ameaçadas e temerosas, muitas vezes tentam manter controle sobre aquilo que lhes é possível. Limitar a vida sexual e os direitos das mulheres podem parecer maneiras fáceis de sentirem-se “sob controle”.
2. Homossexualidade no Alcorão
O Alcorão trata da homossexualidade?
Não exatamente. A sexualidade é um conceito moderno. O Alcorão faz referência a atos sexuais. O Profeta Muhammad (SAWS) e os primeiros estudiosos também falavam sobre atos sexuais e desejo. No entanto, os estudiosos clássicos não discutiam a diferença entre atos sexuais e idendidade.
Há diferença entre sexo e sexualidade?
Sim – e essa diferença é importante. “Sexo” se refere a atos sexuais. “Sexualidade” tem a ver com sentimentos de desejo e como uma pessoa se relaciona a outras pessoas, assim como os atos sexuais em si. O sexo é, portanto, parte da sexualidade – mas a sexualidade é muito mais que o sexo. Por exemplo:
- Se uma mulher é estuprada, ela fez sexo – um ato sexual aconteceu em seu corpo – contra sua vontade. O espuro não tem nada a ver com sua sexualidade. O ato sexual do estupro não tem qualquer relação com o desejo dela ou sua identidade. (Isso também é verdade quando a vítima do estupro é homem).
- Às vezes um homem sente desejo por outros homens, mas não faz sexo com homens. Sua sexualidade inclui seu desejo por homens, mesmo que seu comportamento não inclua atos sexuais com homens.
A diversidade sexual pode ser parte do plano de Deus?
Sim. O Alcorão celebra a diversidade. Ele até protege a diversidade religiosa, ao instruir que os muçulmanos protejam outros grupos religiosos, como os judeus, que estejam vivendo sob autoridade muçulmana. O Alcorão diz que a variedade humana na aparência, cultura, linguagem e até religião foram criadas pela sabedoria divina de Deus.
Nós sabemos que a homossexualidade existe, entre seres humanos com livre arbítrio. Ela também existe entre animais – e o Alcorão diz que os animais não têm livre arbítrio, eles apenas obedecem Deus. No Alcorão, Surat al-Rum (Alcorão 30:22) diz que Deus criou os seres humanos com diferentes alwan, uma palavra que pode significar tanto “cores” como “gostos”. Os seres humanos com certeza têm diferentes gostos para muitas coisas – inclusive a sexualidade. Parece claro que a diversidade sexual também deve ser um tipo de diversidade humana que foi criada pela sabedoria divina de Deus.
O Alcorão menciona a diversidade sexual especificamente?
Sim. Surat al-Nur (Alcorão 24:31-24:33) menciona especificamente “homens que não têm necessidade de mulheres”. Esses “homens que não têm necessidade de mulheres” podem ter sido gays ou assexuais, mas por definição não eram homens heterossexuais. Eles não são julgados ou condenados em parte nenhuma do Alcorão.
O Islã diz algo especificamente sobre homossexualidade?
Não. Em primeiro lugar, não podemos usar “O Islã diz…” ou “A lei islâmica diz…” porque apenas pessoas são capazes de dizer algo. O Islã em si não diz nada. Onde podemos buscar respostas, então? Nós podemos consultar o Alcorão, que é a base do Islã. O Alcorão sequer menciona a palavra “homossexualidade”, no entanto. Ele não faz referência a gays, lésbicas, ou bissexuais. Na verdade, estudiosos tiveram que criar um termo para homossexualidade em árabe: al-shudhudh al-jinsi, um termo que significa “sexualmente raro ou incomum”. Se o Alcorão mencionasse a homossexualidade diretamente, os estudiosos teriam simplesmente utilizado esse termo.
O Profeta conhecia algum tipo de diversidade sexual ou de gênero?
Sim. Havia homens na sociedade árabe na época do Profeta Muhammad (SAWS) que se enquadravam na descrição do Alcorão de “homens que não sentem necessidade de mulheres”. Um estudo detalhado da literatura islâmica daqueles primeiros tempos também demonstrou que o Profeta aceitava homens chamados mukhanath. Mukhanat eram homens que “agiam como mulheres” – eles poderiam ser considerados transgênero hoje em dia ou poderiam ser gays cuja orientação sexual fazia com que fossem vistos como alguém que “age como mulheres”.
O Profeta Muhammad (SAWS) parecia reconhecer que esses homens eram diferentes dos outros. Sua esposa, Umm Salama, tinha um amigo mukhanath chamado Hit. Diferente de outros homens, Hit tinha a permissão de entrar tanto nos espaços dos homens como no das mulheres – Muhammad confiava no mukhanath a ponto de permitir que ele entrasse no espaço privado das mulheres no lar do Profeta.
O Profeta alguma vez puniu alguém por sua homossexualidade ou seus atos homossexuais?
Não. Depois que o Profeta Muhammad (SAWS) morreu, seus companheiros discutiram uma vez se deveria-se punir uma pessoa por causa da homossexualidade. Se o Profeta houvesse feito isso alguma vez, seus companheiros teriam simplesmente seguido sua decisão. Como eles não sabiam o que fazer, sabemos que o Profeta não lhes deu qualquer exemplo a ser seguido.
No caso de Hit, o amigo mukhanath de Umm Salama, Muhammad chegou a “puni-lo”, mas não por causa de sua sexualidade. Muhammad descobriu que Hit descreveu o corpo de uma mulher para um homem – o que ele era capaz de fazer porque ele tinha permissão para entrar tanto nos espaços dos homens como nos das mulheres. Nesse momento, Muhammad disse que sua esposa não deveria mais permitir que Hit entrasse nos aposentos das mulheres. No entanto, Muhammad não criticou a sexualidade de Hit nem o fato dele “agir como mulher” – ele apenas criticou Hit por desrespeitar a privacidade das mulheres.
O Alcorão não diz que a homossexualidade vai contra a natureza?
Não. Usar termos como “natural” e “ir contra a natureza” para descrever a sexualidade é algo que teve início com os cristãos europeus. Quando os muçulmanos de hoje usam esses argumentos para dizer que a homossexualidade vai contra o Islã, na verdade estão emprestando ideias dos cristãos europeus. A conclusão que a homossexualidade “vai contra a natureza” não tem base em nada do Alcorão. Novamente, a palavra “homossexualidade” não é sequer usada nem existe no Alcorão!
Há palavras utilizadas no Alcorão para se referir a comportamento sexual que não é permitido?
Sim, há algumas:
Fahisha é uma palavra usada com o significado “fazer algo que não é permitido” ou “transgressão”. Fahisha pode significar algo que é sexual ou algo que não é sexual.
Zina é a única palavra utilizada no Alcorão para uma transgressão que definitivamente é sexual. Zina significa “adultério”.
As palavras fisq e fusuq significa “corrupção”. Elas são utilizadas para descrever o estado mental de alguém que está fazendo algo que não é permitido – em outras palavras, alguém que está cometendo fahisha.
Alguns estudiosos tentam conectar fahisha, fisq e homossexualidade. No entanto essa conexão não está clara no Alcorão. Alguns estudiosos tentam também conectar zina e atos homossexuais ao dizerem que a homossexualidade é equiparável ao adultério. O problema é que essa conexão não existe no Alcorão – o Alcorão simplesmente não diz isso! Juristas humanos são aqueles que dizem que há alguma conexão.
O Alcorão fala apenas das relações heterossexuais. Isso não quer dizer que todos deveriam ser heterossexuais?
Não necessariamente. O Alcorão presume que a heterossexualidade é a forma mais comum de sexualidade e discute relacionamentos heterossexuais com certo detalhe. No entanto, só porque algo é incomum não significa que seja errado. Por exemplo:
- O Alcorão se refere a pessoas que são intersexo – aquelas com sinais que indicam que têm ao mesmo tempo o gênero masculino e feminino. Isso não é uma condição normal, mas existe. O Alcorão não diz que essa condição é “errada”. O Alcorão oferece orientações para como tratar pessoas intersexo na sociedade, mas há muitas coisas que não são mencionadas – sua sexualidade, inclusive.
- O Alcorão também se refere a “homens que não têm necessidade de mulheres” – pessoas que poderíamos chamar de “gays” ou “assexuais” nos dias de hoje. E no entanto o Alcorão não os condena.
3. A homossexualidade e a história de Lut
A história do Profeta Lut (SAWS) não trata claramente da homossexualidade?
Não exatamente. A história do Profeta Lut (SAWS) – chamado de “Lot” em português – pode ser lida e compreendida de maneiras diferentes.
Não há apenas uma maneira de se ler o Alcorão?
Não. Há várias maneiras de se ler o Alcorão. Por exemplo:
- Pode-se lê-lo literalmente: ler palavra por palavra, usando definições exatas.
- Pode-se lê-lo semanticamente: pensando sobre o significado de uma palavra numa frase e em outros lugares no Alcorão.
- Pode-se lê-lo tematicamente: encontrar o significado de uma passagem inteira observando como ela se relaciona com temas do Alcorão.
Por que simplesmente não ler-se o Alcorão literalmente?
Ler o Alcorão literalmente não é tão simples quanto parece. Pode levar a compreender de maneira errada uma passagem inteira, e às vezes é simplemente confuso. Por exemplo, a palavra “quente” pode significar:
- Algo que tem alta temperatura: “O forno está quente!”
- Algo apimentado: “Vai querer esse chili quente?”
- Algo sensual: “Essa dança é muito quente.”
- Algo polêmico: “Qual é o assunto quente da semana?”
Para tornar tudo ainda mais complicado, os significados podem mudar com o tempo. Daqui a muitos anos, alguém pode ler a frase “Aquela atriz fez um ensaio quente” e pensar que a atriz estava com febre durante a foto!
Como as palavras “homossexualidade” e “homossexual” não aparecem nunca no Alcorão, nós devemos ler o Alcorão de maneira diferente se quisermos descobrir o que o Alcorão pode nos orientar quanto à homossexualidade. Se insistirmos em ler o Alcorão literalmente, podemos apenas afirmar que “a palavra ‘homossexualidade’ não aparece no Alcorão, portanto o Alcorão não pode dar qualquer orientação quanto a esse assunto”.
Como uma leitura semântica é diferente?
Uma leitura semântica avalia uma palavra em contexto. Acima, nós vimos como uma palavra pode significar coisas diferentes em diferentes contextos. Mesmo quando uma palavra tem o mesmo significado em diferentes contextos, o significado geral pode ser diferente. Nos exemplos a seguir, a palavra “quente” quer dizer sempre “tem alta temperatura” – mas em cada caso o significado relativo é bem diferente.
- uma xícara de café quente -> bom
- um pote de sorvete quente -> ruim
- uma banheira de água quente para um adulto -> relaxante
- uma banheira de água quente para um bebê -> perigoso
Uma leitura semântica do Alcorão permite que o leitor observe o significado das palavras que são usadas na história do Profeta Lut (SAWS). O leitor pode então observar como essas palavras são usadas em outros lugares no Alcorão. A partir disso, o leitor pode saber mais sobre se as palavras se referem a atos sexuais e se as palavras são utilizadas para significar algo bom ou algo ruim.
O que é diferente numa leitura temática?
Leituras temáticas permitem que os leitores reflitam sobre o quadro maior do que estão lendo. Ela permite que os leitores considerem a época e o local das histórias do Alcorão, assim como outras circunstâncias. Uma leitura temática não é uma maneira “nova” de se ler o Alcorão. Ela é, na realidade, algo que muçulmanos fazem automaticamente quando leem algumas partes do Alcorão.
Histórias clássicas dos Profetas, chamadas Qisas al-Anbiya, também contêm leituras temáticas. Essas histórias não são registros exatos das vidas dos Profetas. Elas não têm a intenção de serem lidas como factuais. Elas foram escritas para dar sentido às breves referência do Alcorão às vidas dos Profetas. Sem conhecer a história completa, as referências breves do Alcorão não fazem muito sentido. As Qisas al-Anbiya tentam preencher as lacunas para que as referências do Alcorão façam sentido.
As leituras semânticas e temáticas revelam algo sobre por que o povo de Lut foi punido por Deus?
Sim. Na história, o Profeta Lut (SAWS) primeiramente aconselhou ao povo da cidade de Sodoma que seguisse o caminho de Deus, mas foi ignorado. Posteriormente, os homens de Sodoma ameaçaram estuprar os visitantes homens de Lut, que eram anjos disfarçados de homens. Deus então puniu a cidade inteira de Sodoma por rejeitar seu Profeta (Lut) e por “transgressões”.
Alguns estudiosos interpretam as “transgressões” na história da Lut como referentes à homossexualidade masculina. No entanto, a palavra “transgressões” no Alcorão pode significar algo sexual ou algo não-sexual. Homens não foram os únicos punidos pela destruição de Sodoma. De acordo com o Alcorão, toda a cidade foi destruída. A esposa de Lot foi mencionada em particular. A esposa de Lut, as outras mulheres e as crianças de Sodoma foram punidas por homossexualidade masculina? Essa não parece ser uma conclusão razoável.
Uma leitura temática da história de Lut pode ser encontrada nas Qisas al-Anbiya (histórias clássicas dos Profetas). Uma história escrita pelo estudioso Muhammad ibn Abdallah Al-Kisa’i coloca o comportamento estranho dos homens de Sodoma num contexto que faz sentido. Al-Kisa’i sugere que o povo de Sodoma havia começado a demonstrar sua dominância por meio do estupro dos estrangeiros. Eles estavam demonstrando que conseguiam tomar o que quisessem dos outros. Dessa maneira, outras pessoas ficariam com medo de atacar a cidade. Isso demonstrava agressividade, mesquinharia e ganância – todas coisas que justificariam sua punição. Uma leitura temática também nos conta que o principal propósito da história era mostrar que povos haviam rejeitado seus profetas no passado, assim como alguns rejeitaram Muhammad durante sua vida, e como aqueles que rejeitavam seus profetas eram punidos. Isso é claro do contexto da história de Lut, que está colocada entre outras histórias com o mesmo tema.
O comportamento dos homens de Sodoma era uma expressão do desejo sexual?
Não. O Alcorão diz que os homens de Sodoma queriam fazer sexo com os anjos visitantes à força. Esse é um exemplo de estupro, não um exemplo do desejo sexual. Estupro é uma questão de poder. Ele é usado para coagir, controlar ou punir a vítima.
Há alguma outra razão para se pensar que essa é a maneira correta de se compreender a história de Lut?
Sim. Em dois hadith – ou histórias do Profeta Muhammad (SAWS) – há contribuições para esse entendimento da história de Lut. Em uma, o Profeta Muhammad perguntou ao arcanjo Jibra’il (Gabriel) por que e como o povo de Lut foi destruído. Jibra’il respondeu que eles não haviam se limpado depois de usarem o banheiro ou fazerem sexo, não compartilhavam sua comida, e tinham cobiça (queriam as coisas que pertenciam a outros) e mesquinhez. Em outro hadith alguém pergunta ao Profeta Muhammad sobre qual é a punição para mesquinharia, e o Profeta lhe conta a história do povo de Lut.
Baseando-se nessa leitura, o que os muçulmanos deveriam tomar como a lição da história de Lut?
Baseada nessa leitura, a história de Lut pode instruir os muçulmanos a:
- seguirem o exemplo estabelecido pelo Profeta Lut (SAWS) de hospitalidade, generosidade e proteção de pessoas que são vulneráveis, como os viajantes.
- evitar a mesquinharia e a ganância.
- condenar o estupro – e erguer a voz contra qualquer uso de atos sexuais para coagir ou controlar.
- manter e respeitar relacionamentos baseados no consentimento, justiça, apoio mútuo e amor pelo outro.
É correto tratar a homossexualidade como um crime passível de hadd no Islã?
O que é um crime passível de hadd?
Um crime passível de hadd é aquele em que a pessoa infringe uma lei que:
- está descrita claramente no Alcorão
- tem uma punição clara
Por exemplo, o Alcorão menciona o adultério e define claramente uma punição para isso. Os únicos crimes passíveis de hadd são: assassinato, assalto em estradas, roubo, adultério, e acusação falsa de adultério.
Por que alguns estudiosos dizem que a homossexualidade entre homens é um crime passível de hadd?
Eles fazem uma analogia entre zina (ou adultério) e a homossexualidade entre homens. No entanto, essa analogia não é clara.
A homossexualidade cumpre as exigências de um crime passível de hadd?
Não. Quando estudiosos tentam dizer que ser homossexual é um crime passível de hadd, eles reduzem ser homossexual a “fazer sexo anal com outro homem”. Isso não faz sentido. Ser gay, lésbica ou bissexual não é um ato sexual – é uma identidade sexual. Nem todos os gays, lésbicas e bissexuais fazerm “sexo anal entre homens”. Alguns podem nunca fazer sexo. Lésbicas e mulheres bissexuais também não fazem “sexo anal entre homens”. Ao mesmo tempo, nem é verdade que o sexo anal entre homens é um crime passível de hadd. A primeira exigência para que um ato seja um crime passível de hadd é que a regra deve estar especificamente mencionada no Alcorão – e sexo anal entre homens não é mencionado no Alcorão. Ele também não cumpre a segunda exigência para que seja um crime passível de hadd porque não há nenhuma punição clara descrita.
As principais escolas de pensamento islâmico chegaram a um acordo sobre se o sexo anal entre homens é um crime passível de hadd?
Não. Várias escolas de pensamento islâmico afirmam que esse é um crime passível de hadd, mas juristas hanafi e zahiri discordam. Hanafis concordam que o sexo anal entre homens é imoral, mas insistem que esse não é um crime passível de hadd. O jurista hanafi Al-Jassas cita dois hadith que dizem que é injusto e opressivo aplicar uma punição hadd a algo que não é um crime passível de hadd.
Dentro das escolas de pensamento islâmico que afirmam que a homossexualidade é um crime passível de hadd, qual é a punição que acreditam ser correta?
Apedrejamento, por causa da analogia que fazem entre a homossexualiade e o adultério.
Esse tipo de punição foi alguma vez usada pelo Profeta Muhammad (SAWS)?
Não. O Profeta Muhammad (SAWS) nunca descreveu a homossexualidade como sendo um crime e nunca puniu alguém por ser gay, lésbica ou bissexual.
4. A evolução do pensamento islâmico sobre a homossexualidade
O que levou os muçulmanos a acreditarem que a homossexualidade é algo errado?
Há várias possíveis razões;
- Algumas pessoas consideram a homossexualidade como algo errado por causa de seus preconceitos pessoais. Se alguém é heterossexual e conhece apenas pessoas heterossexuais, ele ou ela pode considerar que essa é a única maneira natural de ser. Quando não se conhece gays, lésbicas e bissexuais, pode-se prejulgar – ou demostrar preconceito – contra a homossexualidade.
- O preconceito contra a homossexualidade também pode vir do sexismo (Mais a esse respeito abaixo).
- Algumas pessoas acreditam que a homossexualidade não existia nos países islâmicos até que os europeus e os americanos a levaram até lá. Essas pessoas pensam que esse é um tipo de corrupção que veio de fora da cultura islâmica.
- A crença de que a homossexualidade é errada pode vir de tentar fazer uma leitura muito literal do Alcorão, como na história do Profeta Lut (SAWS).
- Algumas pessoas acreditam que a homossexualidade é errada porque os primeiros estudiosos muçulmanos concluíram que esse era o caso. Estudiosos posteriores muitas vezes simplesmente acatavam a essas decisões. Dessa maneira, conclusões alcançadas há séculos por estudiosos humanos foram reforçadas e continuam a serem seguidas como se fossem a verdade absoluta de Deus.
Algumas dessas questões já foram discutidas, outras são analisadas abaixo.
Por que o sexismo faz com que as pessoas acreditem que é errado ser gay, lésbica ou bissexual?
O sexismo leva as pessoas a acreditarem que homens devem comportar-se de uma certa maneira e mulheres devem comportar-se de certa maneira. Essas regras distintas para homens e mulheres mantêm o domínio dos homens sobre as mulheres, algo que é fácil enxergar em algumas famílias tradicionais. Uma visão sexista de ser gay compreende que homens são “fracos” se eles entram em relacionamentos com outros homens, considerados seus iguais, e não com mulheres, consideradas suas inferiores. Da mesma maneira, lésbicas podem ser vistas como “poderosas demais” e “independentes demais” porque não dependem de homem algum.
A homossexualidade foi introduzida nas culturas islâmicas por europeus e americanos?
Não. Registros demonstram que a diversidade sexual existia em civilizações islâmicas desde os tempos mais remotos. Na verdade, por muito tempo os cristãos na Europa usaram esse fato contra os muçulmanos, chamando-os de “permissivos” (com o significado de “liberais demais”) e “sodomíticos” (com o significado de “homossexuais”). Essa era uma das razões por que cristãos estavam determinados a reconquistar a Espanha quando ela estava sob o domínio muçulmano. Se os europeus introduziram alguma coisa na cultura muçulmana, foi a homofobia (medo ou ódio à homossexualidade) e a crença de que ser gay, lésbica ou bissexual vai “contra a natureza”.
A lei islâmica não é a palavra de Deus?
Não. Ela foi construída pelos primeiros muçulmanos e tomou por base o Alcorão, hadith (histórias da vida do Profeta) e as decisões dos primeiros califas, ou governantes. A lei islâmica também tem por base normas culturais, leis seculares (não-religiosas), e ideias patriarcais que existiam antes do Islã e perseveram até os dias de hoje.
A lei islâmica não é algo imutável?
Não! Considere esses exemplos:
- Houve um tempo em que muçulmanos presumiam que o Alcorão exigia que os muçulmanos fossem governados por um monarca, apesar disso não ser dito no Alcorão.
- Os muçulmanos já pensaram que a escravidão era parte do Islã, apesar do Alcorão enfatizar que se deve libertar escravos.
- Muitos muçulmanos já presumiram que as mulheres eram inferiores aos homens, apesar dos trechos do Alcorão que empoderam as mulheres.
Em cada um desses casos, a lei islâmica evoluiu, em muitos lugares.
O Islã pode aceitar a homossexualidade?
Sim. No Islã há uma base sólida de respeito a aceitação da diversidade – inclusive da diversidade sexual. Apesar de historicamente muitos legisladores muçulmanos haverem proibido atos homossexuais, é importante lembrar que a lei islâmica não é a palavra de Deus. A lei islâmica é o resultado das reflexões dos legisladores, portanto a lei é feita por seres humanos. Isso não significa que a lei islâmica não é importante para muçulmanos; significa que ela não é uma reflexão perfeita do que Deus quer para os seres humanos. Muitos muçulmanos não aceitam a homossexualidade por causa do preconceito e do sexismo – e muitos juristas compartilham dessa visão. Como resultado, é importante continuar a reexaminar a shari’ah para melhor compreender o verdadeiro significado do Alcorão e o exemplo do Profeta Muhammad (SAWS). Ao reexaminar os princípios da shari’ah, estudiosos – juntamente de outros crentes – podem ajudar a recuperar seu propósito original: proteger liberdades civis, promover os direitos humanos e ajudar as pessoas a viverem de forma ética.
excelente materia! procurei outros textos do Scott e achei coisas muito legais.. mas, pena que os radicais não vão ler, nem aceitar ele!
São teses muito polêmicas para ouvidos islâmicos conservadores, mas apresentadas como uma certa verdade que, no entanto, elimina elementos importantíssimos da história.
Tomei a liberdade de estudar o islã, ler o Alcorão (numa interpretação em português autorizada pela universidade de Riad) e ter contato com gays islâmicos em um e-group por mais de 5 anos, e alguns argumentos do estudioso são rebatidos e “rebatíveis” pelos próprios conservadores.
No entanto, eu destaco pelo menos dois:
(1) O QUE CAUSOU A PUNIÇÃO DE SODOMA NA HISTÓRIA DE LOT
O estudioso do artigo cita corretamente que não se pode dizer que toda a cidade foi punida por conta da homossexualidade, tendo morrido mulheres e crianças no processo, segundo a mitologia.
Na verdade, o pecado que causou a destruição de Sodoma, de seus habitantes e da mulher de Lot em especial foi um só: a desobediência a Deus.
Por não terem ouvido a palavra de Deus para que consertassem seus caminhos, os sodomitas foram punidos, todos eles. Por não ter ouvido o conselho de Deus para que não olhasse para trás, a mulher de Lot olhou e converteu-se em uma estátua de sal.
Até aí, a história de Sodoma no Alcorão e na Bíblia conferem entre si.
A questão é que a desobediência é, necessariamente, um pecado “transitivo”. Se a pessoa desobedece, é porque ela desobedece A ALGO algo que lhe foi dito.
Assim, Sodoma não foi punida pela homossexualidade: foi punida pela desobediência. Mas desobediência AO QUE? O que Deus havia solicitado aos sodomitas que não foi atendido e, portanto, lhes trouxe a maldição? O que os sodomitas faziam de errado que Deus havia solicitado que “consertassem” e, não sendo ele atendido, fez cair fogo do céu?
É aqui que Bíblia e Alcorão começam a divergir.
A teologia inclusiva da Bíblia – e, portanto, os cristãos – tem mais elementos a favor de uma interpretação “pró-homossexualidade” do que o estudioso do artigo dá a entender, ao atribuir a homofobia islâmica à influência europeia e cristã, primariamente: coisa de que discordo diametralmente, por sinal.
Isso porque a Bíblia silencia, no Gênesis, sobre qual era o pecado que Sodoma praticava e que tanto desagradava a Deus.
O que a Bíblia faz é tão-somente contar a história de dois anjos que, vestidos de homens, foram à cidade. Terminaram eles hóspedes de Lot, quando, então, ocorre a tentativa de estupro deles por parte dos habitantes da cidade, que queriam “conhecê-los” no sentido bíblico, ou seja, penetrá-los, em frente à casa de Lot.
Lot, então, oferece duas de suas filhas para satisfazer a lascívia dos habitantes (sim, as mulheres detestam esta parte), mas a oferta foi recusada e os habitantes arrombaram a porta. Então, os anjos utilizaram de seu poder e os cegaram e deram a Lot a mensagem divina de que ele deveria abandonar a cidade com sua família inteira, pois a mesma seria destruída – e sem olhar para trás.
A questão que a Bíblia deixa em aberto é: o pecado dos sodomitas teria sido essa tentativa de estupro? Eu entendo que NÃO. Isso porque a presença dos anjos remete a uma questão anterior: POR QUE os anjos foram à cidade em primeiro lugar? A resposta, induzida pelo capítulo 19 do Gênesis, é que os anjos foram à cidade JÁ PARA AVISAR A LOT de sua destruição.
Em suma, qualquer que tenha sido o pecado de Sodoma, ele já havia desgradado a Deus, que enviou dois anjos para solicitar a Lot que deixasse a cidade. A tentativa de estupro coletivo foi, quando muito, apenas a “gotinha” que faltava.
Essa tese é reforçada porque, antes da chegada dos dois anjos, em outro trecho do Gênesis, Deus informa a Abraão, tio de Lot, que o pecado de Sodoma havia se multiplicado e ele destruiria a cidade.
Segue, então, um embate entre Abraão que, ciente da residência do sobrinho na cidade e aparentemente mais misericordioso que Deus, pergunta: “e se lá houver 10 justos”? E Deus responde: não a destruirei por causa dos 10. “E se houver cinco?”. Não a destruirei por causa dos 5. “E se houver um?”. Não a destruirei por causa do 1.
A lógica e a sequência da própria história diz, então, que o único justo é Lot. Para poupá-lo, então, Deus manda os dois anjos avisá-lo para sair com sua família de lá e, assim, poder destruir a cidade pelo pecado que ela JÁ HAVIA cometido, muito antes dos dois anjos sofrerem a tentativa de estupro?
E qual seria esse pecado tão horrível?
Na Bíblia, um dos profetas maiores, Ezequiel, dá uma resposta e uma lista, no capítulo 16, quando dá a conhecer as abominações de Jerusalém, outra cidade que havia pecado aos olhos de Deus:
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É curioso que nenhum dos pecados citados por Ezequiel é sexual. O pecado de Sodoma teria sido, afinal, a soberba – e a luxúria, no sentido original, que era de “excesso”. A cidade era rica, tinha fartura de pão, mas se entregou à ociosidade e aos excessos de prazeres, enquanto seus pobres morriam de fome à míngua. Parece que Deus se preocupa mais com a injustiça social do que se uma pessoa dá a bunda ou não.
Outras passagens da Bíblia acrescentam a essa lista o maltratamento aos estrangeiros. Com efeito, na lei mosaica, supostamente editada muitos séculos “after” Sodoma, os estrangeiros deveriam ser tratados com respeito e consideração – e não sofrerem tentativas de estupro (era essa a tal “gotinha” que faltava). Essa referência é reforçada por Jesus Cristo que, ao exortar a pregação do Evangelho aos seus apóstolos, diz que, nas cidades em que eles fossem mal-recebidos, deveriam sair dela, sacudir-lhe as poeiras dos pés, porque haveria “mais consideração com Sodoma do que com ela”.
Teólogos inclusivos, como o católico Daniel Helminiak, concordam com essa acepção (fonte: “O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade”).
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E o que o Alcorão diz?
Aqui é que a porca torce o rabo. Se, na Bíblia, Lot era apenas o sobrinho de Abraão vivendo casualmente em Sodoma, a cidade-sede da injustiça social, o Alcorão o converte em PROFETA.
Para o Alcorão, Lot não estava em Sodoma à toa: ele tinha sido enviado por Deus para dar uma mensagem e exortar a cidade para que deixasse seus caminhos.
Vem novamente a pergunta: QUAIS caminhos?
A Surata 29 dá algumas pistas: “E de quando Lot disse ao seu povo: Verdadeiramente, cometeis obscenidades que ninguém no mundo cometeu, antes de vós. Vós vos aproximais dos homens, assaltais as estradas e, em vossos concílios, cometeis o ilícito! Porém, a única resposta do seu povo foi: Manda-nos o castigo de Deus, se estiveres certo” (Alcorão 29:28-29)
Parece que o pecado de Sodoma era a violência, que era praticada depois de se reunirem em gangues… Mas a parte do “vós vos aproximais dos homens” tem, na verdade, um outro sentido.
A Surata 7 meciona novamente a história de Lot:
“E (enviamos) Lot, que disse ao seu povo: Cometeis abominação como ninguém no mundo jamais cometeu antes de vós, acercando-vos LICENCIOSAMENTE DOS HOMENS, em vez das mulheres. Realmente, sois um povo transgressor. (Alcorão 7:80-81)
Parece que Sodoma, segundo o Alcorão, era uma cidade metropolitana como São Paulo, em que as pessoas se reuniam para cometer atos ilícios, faziam confabulações em gangues, assaltavam pessoas – E praticavam sexo gay. Todos esses pecados causaram a ira divina.
Percebam que, em comparação com a Bíblia, o Alcorão deixa pouco espaço para uma interpretação inclusiva, apesar do que o autor do artigo que ora contesto deixa transparecer.
É verdade que “acercar licenciosamente” pode ter várias interpretações. Talvez os sodomitas submetessem homens à prostituição, por exemplo, e contratassem seus serviços (em vez das mulheres). Ao contrário do que dizem os muçulmanos, que pregam que “mulheres e homens são iguais no Alcorão”, isso faria sentido, porque eles não são iguais, não. A mulher muçulmana não pode desposar um homem não muçulmano, seu depoimento tem o valor de metade de um depoimento masculino e sua herança é também metade da do homem.
É plausível considerar que, talvez, aos olhos do Alcorão, a sujeição e contratação de prostitutos homens fosse mais condenável que a de prostitutas mulheres, ainda que, em termos gerais, ele condene a todas. Mas seja como for que se interprete o “acercando-se licenciosamente”, o componente sexual da aproximação fica bastante claro – bem diferente do que acontece na fala de Ezequiel na Bíblia.
O autor também deixa de mencionar algo fundamental em sua argumentação: ele reconhece, como todo islâmico, que a fonte da Sharia não é apenas o Alcorão, embora ele seja a principal: existem as ahadith e a Sunna também, e a lei é bem complexa.
Ele também está correto ao dizer que, no Alcorão, não se menciona diretamente o sexo gay (como vimos na interpretação de “licenciosamente”, que permite outras) – mas e as outras fontes?
Os companheiros de Mohammed realmente se reuniram para saber o que ele dizia sobre o “Povo de Lot”, os homossexuais de hoje ou sodomitas bíblicos. Nisso o autor está correto.
O que ele omite é o que os companheiros de Mohammed concluíram: que o Profeta se opunha, sim, ao sexo gay. Com efeito, as quatro escolas jurisprudenciais do Islã – três sunitas e uma xiita – reconhecem uma longa cadeia de ahadith que atribuem ao Profeta e/ou seus companheiros autorizados mais de uma condenação ao sexo gay. Em uma hadith, Mohammed manda matá-los para extirpar o mal. Em outra, sugere-se que sejam atirados de desfiladeiros (sim, meus caros: o Estado Islâmico não atira gays de prédios à toa, não).
Existentes há milhares de anos, NENHUMA das quatro escolas jurisprudenciais clássicas do Islã – e majoritárias nos países muçulmanos – reconhece o sexo entre homens (embora a identificação de alguém como gay, ou seja, como alguém que tem atração por homens e não tenha necessidade de mulheres, como sugere o texto sagrado, fique em aberto). Elas apenas variam em qual penalidade é mais adequada: da chibata (porque existe a afirmação de que muçulmano não deve derramar sangue aka matar muçulmano sempre que puder ser evitado) ao apedrejamento.
O Islã realmente registra homossexualidade em sua história, como na figura do poeta Abu Nuwas, mas esta ocorria ou era “fechada aos olhos” em períodos de maior licenciosidade e relaxamento de costumes, assim como o consumo de álcool. O próprio Alcorão faz menção a rapazes especiais que agradarão os que entrarem no Paraíso. Uma passagem obscura, mas está lá: não vai ter gente que só vai curtir as virgens.
No entanto, o Islã é uma religião eminentemente política, bem mais que o cristianismo. As benesses de Allah são vistas na bem-aventurança da comunidade (ummah), mais do que no além-túmulo. Se a ummah vai bem, é porque está “de boas” com Allah. Se vai mal, é porque se desviou dos caminhos e precisa ser corrigida – socialmente.
É por isso que, ao longo da história, TODAS as revoluções no mundo islâmico resultaram em sociedades mais conservadoras, porque sempre houve uma tentativa de “restaurar o Islã original”. Um histórico disso pode ser visto no livro “O Islã”, de Karen Armstrong – e olha que ela tende a ver com Islã com mais boa vontade.
A lógica é que a ummah prospera, os costumes se relaxam… Aí vem uma crise. Opa! Hora de “voltar ao islã real” – e dá-lhe revolução conservadora.
A homofobia islâmica, portanto, pode até ter sido reforçada pela homofobia ocidental-cristã no período da colonização… Mas não se enganem: ela é muito mais islâmica e bem menos europeia do que sugere o autor do artigo, que, embora eu admire por apresentar uma visão não homofóbica do Islã (que eu espero que cresça na mesma velocidade que as teologias inclusivas ou o liberalismo religioso judaico), omite a meu ver ELEMENTOS FUNDAMENTAIS que induzem ao erro sobre sua própria religião: bem menos boazinha do que faz parecer.
Pelo menos, para os gays.
Em tempo: a Bíblia não registra também a palavra homossexualidade. Esta, criada na era moderna, inexiste em qualquer livro sagrado. É um argumento apenas do tipo cortina de fumaça.
uau! quase um artigo seu comentario…o lado bi deveria publicar em destaque!
Muito agradecido pelos contra-argumentos (acrescentou muito à discussão). Ando muito confuso com os textos que leio e quero formar uma opinião justa sobre como o mundo islâmico trata a homossexualidade. A ignorância não pode fundar um ponto de vista!
Perfeito! Quase um artigo mesmo, se ainda não publicaram no site, deveriam publicar!
Mas no Alcorão não diz que as pessoas devem se casar e fazer filhos? Se a pessoa é homosexual ela nao vai poder fazer filhos.