Jovem agênero lamenta: “Eu me arrependo de ter me tornado cisgênero”

Lola Olson nasceu com uma deficiência hormonal que o manteve andrógino até os 12 anos. Por causa do bullying, fez tratamento hormonal para ter aparência feminina. Hoje tenta corrigir seu corpo para que se adeque a sua identidade agênero

por Marcio Caparica

Traduzido do depoimento de Lola Olson ao site Huffington Post

Uma pessoa cisgênero é alguém cuja identidade se alinha com o gênero que corresponde a seu sexo biológico. Tanto “trans” como “cis” vêm do latim e da química: “trans” quer dizer “atravessado” e “cis” quer dizer “deste lado”.

Eu nasci com uma disordem chamada  Displasia Septo-Optica. Devido a ela, eu não produzo uma gama de hormônios – estrogênio e testosterona, entre eles. Eu cresci com uma aparência andrógina e sofria de agressões constantes por causa disso. Quando fiz 12 anos e passei a poder fazer um tratamento de reposição hormonal para o estrogênio, eu não pensei duas vezes. Eu só queria ser normal.

Lola Olson antes dos tratamentos hormonais.

Lola Olson antes dos tratamentos hormonais.

Avance uma década. Eu esbarrei no conceito de genderqueer, depois descobri o termo não-binário e finalmente, como se estivesse escolhendo a varinha correta no Olivaras, “agênero”. Quanto mais eu aceitava e compreendia minha identidade, mais eu percebia que os peitos que tinha não cabiam nela. Não estava certo.

Vestir uma cinta resolveu todas as minhas preocupações. Tudo parecia 100% melhor. Apesar da pressão contra meu corpo, apesar dos machucados resultantes da cinta raspando nas minhas laterais, eu me sentia bem. E foi então que, cinco anos atrás, eu decidi oficialmente cair de cabeça e tentei fazer algo para corrigir meus peitos.

Mas meus peitos não são grandes o suficiente para que se faça uma redução, dizem os médicos. Depois de três anos andando em círculos, de médico em médico, eu experimentei visitar uma clínica de identidade de gênero. Eu recebi a recomendação em junho de 2013, mas só consegui uma consulta em setembro de 2014.

Nesses cinco anos em que eu busquei a cirurgia, eu me declarei para meus amigos. Eu não fiz propaganda da minha identidade não-binária no trabalho, mas também não contava para todos sobre minha deficiência hormonal, sobre ser bissexual ou qualquer outra coisa.

De início, pensar que eu nunca seria visto como agênero era deprimente. Mas então eu pensei mais sobre a visibilidade. Pensei nas mulheres trans de cor, que são visíveis ao ponto de serem mortas e lamentavelmente tornam-se a maioria dos assassinatos de transexuais. Pensei na pequena parte de mim que vem da ascendência indígena e que, se eu conhecesse qual é minha tribo, quem sabe pertenceria a uma sociedade em que pessoas como eu são aceitas – e talvez até celebradas.

Mesmo com a cirurgia, o tratamento hormonal que eu recebi aos 12 anos havia cumprido sua função – eu nunca mais seria visto como alguém sem gênero. Tudo que era importante agora era consertar meu corpo. A sociedade poderia esperar bem mais.

Logo antes do Dia da Visibilidade Trans, eu recebi minha carta de dispensa oficial: “… nós não demonstramos aprovação quanto a um procedimento cirúrgico irreversível a não ser que o indivíduo seja capaz de demonstrar uma transição social consolidada, incluindo uma mudança de nome, para o papel de gênero preferido.”

Eu não sabia, mas tinha duas consultas para provar o que eu era. Ninguém jamais me perguntou qual era o pronome de minha preferência, quem sabia que eu era agênero, ou se eu planejava mudar meu nome legal. Eu falei a verdade: as pessoas se referiam a mim como “Lola” e não via razão para mudar isso.

Anos de agressão me ensinaram que se as pessoas não são capazes de ler seu gênero, elas vão exigir sabê-lo. As perguntas constantes sobre o que eu sou me incomodam muito mais do que as pessoas suporem por conta própria meu gênero. Ninguém jamais me verá como agênero. Minha carta de dispensa dizia que eu “aceitava” isso – mas a verdade é apenas que estou conformado com isso. Eu não tenho escolha.

Também não há papel social para o qual eu possa fazer a transição. O que isso quer dizer para uma pessoa agênero? O que isso quer dizer para qualquer gênero? Antes da minha primeira consulta, eu participei de uma pré-consulta em que me garantiram que tratavam de pessoas não-binárias. Mas se ainda baseiam as recomendações para cirurgia nos “papéis sociais” de um gênero, não chega a surpreender que eu não tenha ouvido um relato positivo que seja de uma pessoa não-binária numa clínica de identidade de gênero.

O que o resto da sociedade não percebe ou não enxerga é que pessoas trans também estão muitas vezes presas nesse dilema se querem receber algum tipo de tratamento médico. Se uma mulher trans quer ser “levada a sério”, é bom que ela apareça em suas consultas usando um vestido e demonstrando seu papel social. Se um homem trans quer ser levado a sério a ponto de conseguir sua cirurgia, é melhor que não pinte suas unhas. Os critérios de seleção que nos são impostos são uma versão concentrada dos papéis de gênero dos anos 1950 aos quais nós devemos nos contorcer para conseguir auxílio.

Para muitas pessoas trans, demonstrar nossa “necessidade” de ajuda médica muitas vezes significa caminhar numa corda bamba entre demonstrar o sofrimento e o desconforto que nossos corpos nos trazem, e ao mesmo tempo não parecer instável demais a ponto de fazer tudo parecer mentira. Não chega a surpreender, então, que tantas pessoas, mesmo aquelas com poder sobre os cuidados de saúde de uma pessoa trans, acreditam que nós temos distúrbios mentais.

Alguns acreditam que é deve-se comprovar nossa necessidade. A mídia divulgou exageradamente alguns casos de “arrependimento de transição”, dando a impressão de que são muito mais comuns do que são na verdade. Mas, sério, eu teria aguardado dois anos por essa ajuda se eu estivesse tão confuso? A jornada por que passamos antes mesmo de entendermos quem somos significa que, quando chegamos ao ponto de procurar alguém que nos encaminhe a uma clínica de identidade de gênero, nós, em sua imensa maioria, não estamos mais confusos.

Minha aceitação quanto a minha situação e a maneira positiva com que trato minha identidade chegou a me prejudicar mais do que me ajudar? Só porque a sociedade entende que “Lola” é feminino, não quer dizer que eu faça o mesmo. “Lola” não é inerentemente feminino, assim como eu também não sou. Apesar de eu ter dito que fazer minha cirurgia não era uma questão de convencer o mundo a me ver como agênero, eu não consegui convencer os médicos.

Talvez eu não seja trans o suficiente. A verdade é que eu nasci com um corpo que se alinhava à minha identidade agênero. Eu não produzia hormônios sexuais. Eu já tinha em mim o sonho de todas as crianças trans. Mas eu fui tão agredido por causa da minha aparência andrógina que eu escolhi ser “normal”. E agora eu me arrependo de ter me tornado cis.

Eu só posso ter a esperança de que uma compreensão mais ampla das questões trans e as vivências por que passamos alterem a maneira como pessoas como eu tenham acesso a auxílio médico no futuro.

Para mais informações sobre minha história, visite minha página no YouCaring.

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