Não é novidade que nós aqui do LADO BI somos feministas. Primeiro pelo princípio básico de justiça: o sexo não deve ser razão para se discriminar quem quer que seja. Além disso, rezamos pela cartilha que a homofobia é um dos filhotes monstruosos do sexismo: machões não entendem como alguém pode “optar” por ser “mais feminino” (e portanto, a seus olhos, inferior) e consequentemente se sentem justificados em colocar em ação seu ódio contra aqueles que, pensam, não quiseram preservar sua sacrossanta masculinidade.
Itali Collini é uma graduanda de Economia que decidiu usar fundamentos de gênero das Ciências Sociais para estudar as relações de gênero no mundo empresarial. Quando participou do Lado Bi do Mercado Financeiro, explicou com convicção e fervor como as mulheres ainda sofrem descriminação no mercado de trabalho (muitas vezes de maneira velada), por mais que teoricamente tenham os mesmos direitos garantidos. Há pouco mais de duas semanas ela lançou uma campanha de financiamento coletivo para conseguir representar o Brasil no 38º Congresso Anual da Associação Europeia de Contabilidade. A campanha já arrecadou os fundos necessários (parabéns!), mas nós recomendamos que quem puder ainda colabore – estamos certos que esse é apenas um investimento bem direcionado para um mundo melhor, com retornos garantidos. Por e-mail, Itali nos contou sobre sua pesquisa, o papel do feminismo e dos estudos de gênero no mundo moderno, como as mulheres ainda não são tratadas igualmente no mundo empresarial e, de quebra, nos deu um puxão de orelha. E ainda pediu: “Gostaria de deixar um grande abraço para minhas orientadoras Tania Casado e Silvia Casa Nova”. Sem problema!
LADO BI O que são estudos de gênero?
ITALI COLLINI São o conjunto de pesquisas, artigos e produções acadêmicas sobre as relações sociais na construção dos estereótipos de gênero em cada sociedade. O termo “gênero” surgiu para assinalar o caráter social das distinções baseadas no sexo, isto é, para estudar as expectativas sobre os indivíduos que não estão biologicamente conectadas ao fato de possuírem genitália de macho ou fêmea. Por exemplo, muitos ainda acreditam que mulheres são piores em matemática simplesmente por serem mulheres. O estudo de gênero nos ajuda a questionar se isso é um fato ou não, e, se for um fato, se está ligado ao fato de serem mulheres ou ao fato de terem sido socializadas como mulheres. Esse foi só um exemplo, mas existem outros que envolvem homens também, como a crença de que eles não têm talento natural para serem cuidadores. É importante lembrar que os estudos de gênero também contribuem para o entendimento dos transgêneros e sua inclusão na sociedade.
Por que é importante que eles sejam desenvolvidos?
Esses estudos são importantes porque as relações humanas em sociedade tem natureza mutável. Sem entendermos como se dão determinadas diferenças e como alguns grupos acabam sendo socialmente prejudicados ou excluídos, não conseguiremos fazer com que a sociedade evolua em termos de direitos humanos e respeito à cidadania de cada um.
O ramo da economia é particularmente mais machista que outras áreas de humanas? Por quê?
Eu diria que esse ramo é mais fechado a discutir desigualdades do ponto de vista feminino, e me refiro particularmente ao Brasil porque é o que conheço. Por exemplo, há uma Associação Internacional pela Economia Feminista, que nada mais é que pesquisadoras do mundo todo desenvolvendo estudos econômicos sob o ponto de vista feminino, e não há brasileiras fazendo parte dela. A Argentina e o Chile estão sendo representados e nós não estamos.
Existem muitos fatores que podem explicar o caráter mais masculinizado da economia, a começar pela socialização de homens e mulheres em relação ao dinheiro e ao poder. Há também a própria relação estereotipada das mulheres com a matemática, matéria que pesa cada vez mais nos cursos de economia. Mas eu gostaria de comentar um pouco sobre a linguagem econômica e suas derivações: a ciência econômica usa a racionalidade como seu pressuposto principal, assim como as matérias de finanças na administração e na contabilidade. Eu tive oportunidade de cursar duas matérias estrangeiras, Teoria Feminista na Contabilidade e Gênero na Educação Superior com os professores Dr David Carter (University of Canberra) e Dra Rebecca Ropers-Huilman (University of Minnesota). Eles analisam o discurso machista clássico, “o homem é um ser racional e a mulher um ser emocional”, e avaliam como essas determinações podem ser linguisticamente excludentes dentro das ciências como a economia e a contabilidade. Isso também mostra como os estudos de gênero são importantes em qualquer área do conhecimento, porque revelam conceitos dentro da linguagem que nós não percebemos e tampouco questionamos.
Como esse tipo de estudo pode beneficiar também a homens gays? E homens héteros?
Antes de responder essa pergunta eu gostaria de fazer uma observação: é um pouco incômodo para o movimento feminista, e me incluo nele, o fato de termos sempre de explicar porque o feminismo é benéfico também para os homens. É quase como se eles não quisessem olhar para nossa vivência e reconhecer que algumas coisas precisam mudar, independente se eles terão benefício direto ou não! Eu entendo que essa pergunta tenha surgido e gosto de deixar essa observação, não para evitar a resposta, que darei logo a seguir, mas para incentivar a empatia masculina. Queremos que mais homens troquem ideias conosco tentando ao máximo absorver a vivência feminina,que se coloquem no lugar de quem fala antes de questionar sob o ponto de vista de sua própria vivência, e entendam que ainda há bastante coisa a se fazer.
Os estudos de gênero beneficiam também os homens héteros porque questionam estereótipos que são impostos a eles, como o do “macho provedor” ou o do dever de sentir atração por mulheres e “comparecer” com uma ereção, mesmo que não esteja à vontade. O feminismo e os estudos de gênero buscam dar base para propostas de melhoria social que beneficiam a eles também, afinal homens hoje conseguem admitir melhor que querem participar mais da família. A licença à paternidade aumentou, e é provável que seja ainda maior com o passar dos anos. O reconhecimento de que eles têm tanta capacidade como cuidadores de seus entes queridos quanto as mulheres, se assim desejarem sê-lo, está se estabelecendo. Acho ótimo que mais homens se interessem em saber sobre as teorias de gênero e também sobre o feminismo, porque eles podem ultrapassar os estereótipos e ver que não pregamos o ódio a eles (risos). O que queremos é uma sociedade mais fraterna e respeitosa para nós todos.
Para os homens gays é ainda mais visível o benefício dos estudos de gênero, porque a homofobia está intrinsecamente ligada ao machismo, à ideia de que ser gay é ser menos homem, mais afeminado e menos merecedor de respeito. O pai que agride o filho por ter comportamento afeminado está exercendo homofobia com uma base machista: a de que o filho deve ser dominador, agressivo, impositor como um homem “de verdade” seria (na mentalidade dele). Sempre é bom ressaltar que com os estudos de gênero foi possível separar conceitos de genitália, identidade de gênero e orientação sexual. Os homens cis gays podem afirmar não serem menos homens apenas por sua orientação sexual. Transsexuais homens e mulheres podem se identificar como homens ou mulheres, possuírem a genitália do sexo oposto e ter orientação sexual diferente da que seria esperada: por exemplo, um homem trans (nascido com genitália feminina) pode ser gay (sentir atração por homens) ou uma mulher trans (nascida com genitália masculina) ser lésbica (sentir atração por mulheres). Um leque inteiro de conceitos, e consequentemente de direitos, se abriu graças aos estudos de gênero.
Muita gente considera que as mulheres já vivem em pé de igualdade com os homens, e que isso tudo não passa de paranoia e mimimi. Como responder?
Costumo dizer a essas pessoas que elas se baseiam na legislação e não nas estruturas sociais. Sim, nós podemos votar, estudar, opinar e trabalhar. Mas isso não encerra o debate da igualdade de gênero porque há pilares sociais mais profundos do que a legislação pode dar conta. Uma mulher pode ter direito a licença maternidade de 6 meses, mas se sentir ameaçada no trabalho porque seus colegas acreditam que, mesmo quando ela voltar, sua produtividade será menor apenas por ser mãe. Na minha pesquisa coloco trechos de entrevistas em que houve discriminação, porém ela não se mostra como uma regra institucional. Acontece quando uma mulher numa posição de liderança é alvo de comentários do tipo “ela deu bem”, ou quando uma rede de networking não se abre porque homens fazem amizades com homens mais facilmente. A inclusão da mulher se torna mais difícil em áreas em que o relacionamento interpessoal influencia no fechamento de negócios.
Quando as mulheres começaram a lutar pelo direito de votar os principais argumentos contrários eram que elas não eram racionais o suficiente para entender política e escolher um candidato; seus maridos decidiriam por elas, duplicando o voto. Hoje em dia ninguém mais fala isso, mas ainda ouvimos que somos emocionais demais para liderar uma equipe, por exemplo. A luta por direitos é importantíssima, porém não encerra a questão cultural e por isso devemos continuar questionando e informando.
Você relata que chegou a ser questionada se “uma mulher pesquisando sobre mulheres não seria algo apaixonado demais para produzir uma pesquisa consistente”. Soou condescendente para você também? É impressão minha, ou paixão só é visto como algo negativo quando se trata de uma mulher?
Na época me soou ofensivo. A ciência foi historicamente construída por homens, e eles estudaram temas masculinos entre todos os temas, e eu não tenho relatos de que foram considerados apaixonados demais para estudar sobre si mesmos e a sociedade. Veja, novamente bate na nossa porta o estereótipo de que o homem é mais racional, e portanto mais capaz de fazer ciência para ele mesmo ou para sociedade, seja na área de humanas, exatas ou biológicas. Uma das coisas que aprendi nas leituras sobre metodologia para pesquisas foi que o pesquisador pode de fato ser apaixonado, e eu duvido que ganhadores do Premio Nobel não fossem efetivamente apaixonados por seus temas de pesquisa. Mas você deve aplicar a metodologia de modo a não viesar o que você acha que pode ser a resposta da sua pergunta de pesquisa com o que ela realmente pode ser. No meu caso, como a minha pesquisa envolvia entrevistas em profundidade (duraram entre 40 minutos e 01h30), a minha orientação era não perguntar sobre machismo, não perguntar sobre discriminação, quase não perguntar! (risos) Apenas puxar um assunto como “Como começou sua carreira?”, “Como era seu ambiente de trabalho?” e a pessoa traz o que ela recorta como relevante na resposta, se eu quiser detalhar eu peço para falar mais sobre determinado assunto, mas não há a imposição de um conceito meu. Poderia ter acontecido de as pessoas não tocarem no tema, ou não terem exemplos de experiências discriminatórias, mas das 16 pessoas (14 mulheres e 2 homens) que entrevistei apenas uma não relatou experiências que eu pudesse, de acordo com minha bibliografia de gênero, classificar como discriminatórias.
Quais foram as conclusões da sua pesquisa? Você pode adiantar algo?
Posso adiantar que ao que minha pesquisa se propôs, que foi descrever o ambiente para mulheres em posições ligadas a negócios no mercado financeiro, ela foi muito bem sucedida. Conseguir mapear no cotidiano profissional das entrevistadas e entrevistados comportamentos que podem ser objeto de melhoria. Foi muito gratificante para mim, e acredito que a principal conclusão foi a de que as medidas legais ou institucionais não encerram o problema das mulheres. É possível por analogia imaginar que também não encerram o problema dos gays, dos negros, das pessoas trans. Eu cheguei a propor uma rede de networking maior entre as mulheres do mercado financeiro, porque isso pode levar mulheres qualificadas a conhecerem outras e as indicarem para cada vez mais posições. Não digo que é a única solução e nem a melhor, apenas digo que informar, empoderar e unir mulheres é um grande primeiro passo para quebrar uma cerca invisível feita por relações masculinas dentro do mercado de trabalho.
Talvez o melhor resultado até agora tenha sido justamente ter a pesquisa aceita no maior congresso europeu de contabilidade. Com isso pude provar para a academia brasileira que os pesquisadores internacionais já olham para esse tema com seriedade, não deboche, e que ser mulher não deveria ser impeditivo de pesquisar sobre e para mulheres. Poderei ainda ter insights de acadêmicos experientes para, quem sabe, estruturar uma proposta prática e inclusiva.