Orientação sexual não é questão de escolha. Religião é

Quem argumenta que gays querem "privilégios" faz questão de esquecer que são eles mesmos recebedores de privilégios sem igual

por Marcio Caparica

Ela é uma das coisas mais importantes na vida de cada ser humano. Nenhum ser humano nasce com a sua definida. Todos os pais querem e esperam que seus filhos sigam a mesma que têm. Não há qualquer evidência de que ela seja definida geneticamente. Alguns trocam a própria várias vezes. Há muita gente que se interessa muito pela dos outros, e gasta muito tempo e esforço para convencer pessoas para viverem de acordo com aquela que consideram ser “a correta”.

Não se trata da orientação sexual. Estou falando da religião.

Estamos passando por uma mudança cultural que, por causa do fanatismo de alguns, coloca religião e orientação sexual num antagonismo desnecessário. A população LGBT, que historicamente ficava relegada à marginalidade, agora reivindica uma posição de igualdade na sociedade. Lideranças religiosas, que sempre encontraram em homossexuais e transexuais alvos fáceis, se esforçam ao máximo para desqualificar esse movimento e, assim, manter intacto seu controle sobre aqueles que, apropriadamente, chamam de “rebanho”.

No Brasil uma das maiores preocupações dos cristãos fundamentalistas é frisar que a orientação sexual é uma escolha. Declarações que demonstram isso são fáceis de se encontrar; vou citar apenas uma, de Silas Malafaia, feita durante uma entrevista com o co-autor desse blog, James Cimino:

Mas o senhor acha que uma pessoa pode mudar de orientação sexual?

Claro! É comportamento…Onde que na ciência alguém diz que nasce gay? Me diga quem é o gênio que provou que é genético?

Não existe comprovação nem que sim nem que não. Vários estudos dizem que sim, outros vários dizem que não…

Ahn? Querido, deixa eu falar uma coisa: tem um cara chamado Francis Collins. Ele é o geneticista que comandou o grupo do genoma humano. Ele disse que não existe nenhum indício de gene homossexual. A casa caiu…

Foi publicada recentemente uma reportagem sobre um estudo feito pela professora Jenny Graves, doutora pela Universidade da Califórnia em Berkeley, que aponta evidências genéticas na homossexualidade

Filho… Filho… Suposição filho… Teoria filho… Não fala isso não… Quem determina é a genética. Eu estou falando de um dos maiores caras da genética do mundo. O maior cientista vivo da atualidade. Não tô falando de pastor de igreja evangélica. Eu vou falar de ciência com você. A criança quando nasce tem uma predisposição de herdar características psicológicas do sexo que tem em seu nascimento. Homossexualismo é um comportamento. Qual é a prova de que é um comportamento? Ele pode deixar de ser.

Existe uma lógica por trás desse esforço em desqualificar a orientação sexual como apenas “comportamento”. Se a homossexualidade é apenas uma escolha, não haveria por que  se garantir direitos que são negados a um indivíduo porque ele fez uma “opção errada”. Se você não consegue se casar, a razão não são as legislações antiquadas – a razão é sua teimosia. Basta “mudar de ideia”, abandonar o “caminho do mal” e passar a se relacionar com alguém do sexo oposto. Não quer apanhar na rua? Deixe de insistir em ser desse jeito.

Existem duas falácias no raciocínio de Malafaia e tantos outros fundamentalistas cristãos. A primeira é a de que, se um comportamento não é genético, então ele é obrigatoriamente aprendido. Existem várias características que não são totalmente genéticas e nem totalmente aprendidas (desenvolvimento intelectual e doenças são alguns exemplos). A segunda falácia é argumentar que uma característica necessita ser inata, ou até geneticamente definida, para que seja merecedora de proteção em lei. Muitas características totalmente desvinculadas da genética são protegidas pelas leis. Como, por exemplo, a religião.

Existe qualquer indício de que a religião é definida geneticamente? Não. A própria ideia é absurda. Até porque parte importante do trabalho de pastores evangélicos é exatamente alterar a religião das pessoas. Dizer que um bebê tem pais umbandistas, portanto ser umbandista está em seu código genético, e consequentemente ele jamais poderá se converter a outra religião seria considerado heresia (não apenas) por evangélicos. Muitas vezes filhos seguem a religião dos pais por causa da educação que receberam, mas mudanças de crença são bastante comuns.

E, mesmo assim, a crença religiosa é merecedora de várias proteções e regalias em nossa legislação. Está no artigo 5o., incluso VI da Constituição Brasileira: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. A discriminação por religião é considerada crime pela lei 7716, assim como a descriminação por raça, cor, etnia, ou procedência nacional – mas não orientação sexual, graças a nossa bancada evangélica.

Seria de se esperar que a orientação sexual tivesse a mesma proteção, pois é uma característica do indivíduo tão ou mais importante quanto sua crença religiosa. Mas as instituições religiosas movem mundos e fundos para negar à população uma proteção que lhes é garantida, e em nenhum momento é ameaçada.

Os religiosos fundamentalistas insistem que homossexuais querem “privilégios” por desejarem casarem-se e adotarem crianças como qualquer outra pessoa. Privilégio é quando alguém tem algo que é garantido a poucos outros. Algo que quase todos têm ou podem fazer não é um privilégio. A maioria das pessoas pode casar-se e ter filhos. Portanto ser incluído nesse grupo não é privilégio. Por outro lado, a maioria das pessoas paga impostos, e muitos. Mas existe um pequeno grupo de instituições que são isentas de impostos: os templos. Uma regalia garantida na Constituição, inclusive: o artigo 150, incluso VI B assegura que não se pode cobrar impostos de templos quaisquer. Esse tipo de mimo deve ter ajudado bastante para que Edir Macedo acumulasse mais de 1 bilhão de dólares, conforme a revista Forbes. Imaginem o que diriam esses mesmos empresários da fé se instituições LGBT ganhassem a mesma imunidade?

Orientação sexual não é uma opção. Nenhum ser humano, um dia, depois que se torna adolescente, decide ser gay, hétero, ou bi, ou assexual. Existe, no entanto, uma escolha que cidadãos tomam depois que se tornam adolescentes (pelo menos, oficialmente): casar-se. Ser casado não é ligado ao código genético. Ser casado é algo completamente voluntário e opcional. Forçar alguém a se casar, pelo contrário, é absolutamente mal visto hoje em dia. E, no entanto, o casamento é considerado merecedor de muitas proteções jurídicas, fiscais e sociais. A falta de determinismo genético sobre o estado civil das pessoas não parece ser razão para que a instituição do matrimônio não mereça reconhecimento pela lei, segundo os pastores inflamados.

No entanto, por muito tempo, impediu-se que casais infelizes se divorciassem por nenhuma outra razão além da moral religiosa. Quantas pessoas não viveram infelizes por estarem presas nos sagrados laços do matrimônio? Quantas enfrentaram essa sentença e tiveram que suportar a pressão social, sempre humilhando-as? Felizmente a sociedade evoluiu, libertou-se desse entulho moral sobre a vida do indivíduo, e hoje as pessoas divorciam-se e casam-se novamente quantas vezes quiserem – inclusive os próprios líderes religiosos, como o pastor Everaldo, que já se casou duas ou três vezes, dependendo de quem responde a pergunta.

Fundamentalmente, cada um tem o direito de buscar sua felicidade em condição igual à dos outros. Características que fazem de uma pessoa o que ela é não deveriam ser usadas para negar-lhe direitos concedidos a todos – sejam essas características inatas ou aprendidas, geneticamente definidas ou livremente escolhidas. Quem tenta rebaixar partes das vidas de outrem enquanto alegremente ignora as contradições de suas próprias ações não faz mais que demonstrar que, em termos de compaixão, tem muito aprender.

Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão.

Mateus 7:5

Apoie o Lado Bi!

Este é um site independente, e contribuições como a sua tornam nossa existência possível!

Doação única

Doação mensal:

6 comentários

Inez Olímpia

Parabéns pelo site! Estou encantada com a da disseminação de assuntos tão importantes. Saber, orientar isso sim é o nosso papel de cidadão.

Henrique

Sempre acompanho o blog, mas este texto superou minhas expectativas. Mesmo tendo lido e refletido muito sobre o Direito relacionado aos LGBT, nunca tinha visto nada com essa clareza de raciocínio. A lógica é inegável! Precisamos de mais pessoas como você, Marcio Caparica, que consigam, nem que seja aos poucos, reverter o quadro de ignorância que assola boa parte da população.

José Carlos

Calma Marcio. Não seja tão rigoroso assim. Me parece que há muita dificuldade de um entender o outro.

James Cimino

Não acho não. Acho que não há dificuldade nenhuma da nossa parte em entender o que acontece com essas pessoas…

V.

Pode bater palmas?
Eu não entendo pq td mundo paga imposto e igreja não, ainda mais quando elas viram grandes instituições financeiras donas de redes tv, financiadoras de partidos, grandes proprietárias de imóveis e por ai vai.

Comments are closed.