Mitos sobre arrependimento pós cirurgia de adequação de sexo

Há quem queira negar as cirurgias de confirmação de sexo a todos trans por causa de supostos arrependimentos. A ciência demonstra que esse tipo de arrependimento é quase inexistente

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de Brynn Tannehill para o site Huffington Post

De tanto em tanto eu me pego lendo algo escrito por alguma pessoa sem nenhum treinamento psicológico, psiquiátrico ou médico de verdade, explanando por que eles acreditam que pessoas transgênero não existem de verdade, não deviam ter permissão para fazer a transição, ou precisam apenas da boa e velha “terapia”.

Recentemente surgiu uma série de posts em blogs trazendo mais uma vez a assombração dos arrependimentos que os transgêneros sentiriam depois de fazerem a transição. Eles citam dois de seus estudos favoritos, sem jamais realmente ler o que os próprios estudos dizem, e desenterram algumas anedotas antigas. Resumidamente, eles tentam embaralhar o meio-de-campo da mesma maneira que aqueles que negam as mudanças climáticas ou a teoria da evolução, levantando muita poeira e torcendo para que ninguém confira tudo mais de perto. Sem falar que os autores desses posts também pensam que o casamento igualitário vai acabar com todos os casamentos.

Vamos desconstruir os argumentos que eles fazem, um a um.

1. Um estudo suíço mostra que pessoas pós-operadas têm uma probabilidade muito maior de cometer suicídio.

Essa afirmação distorce de maneira grosseira as conclusões do estudo e sugere que o mesmo estudo se opõe fazer-se a transição. A verdade é exatamente o contrário. O estudo afirma claramente que a transição médica tem o apoio de outra pesquisa, e que esse estudo não tem a intenção de argumentar contra a utilização desse procedimento:

Quanto ao propósito de se avaliar se a readequação de sexo é um tratamento eficaz para a disforia de gênero, é razoável comparar os relatos de disforia de gênero antes e depois do tratamento. Esses estudos foram conduzidos ou prospectivamente ou retrospectivamente, e sugerem que a readequação de sexo de pessoas transexuais melhora a qualidade de vida e a disforia de gênero.

De fato, outro estudo suíço de 2009 descobriu que 95% dos indivíduos que fazem a transição relatam resultados positivos em suas vidas como resultado.

Além disso, as taxas de mortalidade maiores são em comparação com a população em geral (e não outras pessoas transgênero que não passaram pelo procedimento) e só se aplicam a pessoas que fizeram a transição antes de 1989:

Em conformidade, a taxa de mortalidade geral só foi superior para o grupo que realizou a cirurgia antes de 1989. No entanto, isso pode também ser explicado pelos cuidados médicos de melhor qualidade à disposição de pessoas transexuais durante a década de 1990, além de diferentes atitudes sociais com relação às pessoas de expressões de gênero distintas.

Não é surpresa alguma que conforme a sociedade aceita mais as pessoas transgênero, elas sofrem menos efeitos colaterais dos estresses de serem uma minoria. Essa conclusão é endossada por outros estudos recentes (Murad 2010 e Ainsworth 2011) que descobriram que indivíduos que passam pelo procedimento não apenas estão em situação melhor que aqueles que não passaram, como também não têm distinção relevante nenhuma em seu funcionamento cotidiano que a população em geral:

Indivíduos que realizam mudança de sexo biológico homem para mulher e mulher para homem têm o mesmo nível de funcionamento psicológico conforme as medições da lista do Inventório de Sintomas (SCL-90), também similares aos níveis de funcionamento psicológico da população normal e melhor que daqueles de indivíduos que não passaram por tratamento de DG…

A qualidade de saúde mental de mulheres trans sem intervenção cirúrgica foi significantemente menor quando comparada à população em geral, enquanto as mulheres trans que passaram por procedimentos cirúrgicos tiveram avaliações de nível de qualidade de saúde mental sem diferenças significativas da população feminina em geral.

2. Mas há o estudo britânico de 2004 que diz que a cirurgia de adequação de sexo (CAS) não é eficaz

Essa afirmação é outra distorção grosseira da pesquisa. O estudo em questão foi uma revisão de um estudo de 1997 e concluiu que entre 1998 e 2004, apenas dois estudos sobre a eficácia de CAS haviam alcançado em parte os critérios de avaliação acadêmica, contavam com um grupo de controle e tinham um nível de desistência inferior a 50%. Desses dois estudos, ambos demonstravam que os pacientes colhiam benefícios depois do procedimento. No entanto, o tamanho reduzido dos estudos impediam que se extraísse quaisquer conclusões sobre a eficácia da CAS.

O problema é que alcançar a exigência de que se faça estudos duplamente cegos com grupos de controle utilizando indivíduos transgênero não apenas não é factível, é também eticamente inaceitável, como resumido aqui:

Um dos problemas de tratamentos médicos (e obviamente cirurgias) para transexuais é que a realização de estudos cegos não é possível. É óbvio imediatamente se um indivíduo recebeu tratamento ou não, e a substituição por um placebo não funciona por razões óbvias. Claramente, todos os estudos de readequação de sexo vão, portanto, deixar de alcançar os parâmetros padrão. A questão seguinte é a inclusão de um grupo de controle no estudo. Isso exigiria que se diagnosticasse corretamente os transexuais, certificando-se que eles cumprem as exigências e prescrições para a cirurgia de readequação de sexo, e que daí se dividisse os participantes aleatoriamente em dois grupos – um que recebe a cirurgia, e outro que não. É claro que os dois grupos teriam que ser grandes para que o resultado fosse estatisticamente válido. Só então seria possível medir a qualidade de vida dos participantes e comparar os grupos em intervalos regulares de tempo ao longo de vários anos. Essa seria a teoria.

Na realidade, descobre-se que a pressão em que os transexuais se encontram cresce tanto que grande parte do grupo que não passa pelo procedimento comete suicídio (Haas, Rodgers, Herman 2014) ou busca algum tipo de tratamento ilegal no exterior. Isso torna um estudo como esse altamente antiético, e nunca receberia a aprovação de qualquer instituição! Simplesmente não se pode negar tratamento a um grupo altamente estigmatizado que tem uma prevalência de 42 a 46% de tentativas de suicídio, comparado a 4,6% da população em geral.

Isso não significa que não há pesquisas: setenta e um artigos revisados pela comunidade científica demonstrando a eficácia de cuidados médicos ligados à transição podem ser encontrados aqui. E em 2014 outro estudo, pela Dra. Cecilia Dhejne, a autora principal do primeiro estudo suíço descrito acima, encarou o problema das taxas de desistência numa avaliação de todos os inscritos para CAS entre 1970 e 2010. Ela descobriu uma taxa de 2,2% de arrependimento para ambos os sexos, e uma queda significativa nos arrependimentos com o passar do tempo.

3. Arrependimento é comum

O arrependimento de se fazer cirurgias, na verdade, é muito raro. Literalmente todos os estudos modernos estimam que o nível de arrependimento está abaixo de 4%, e a maioria estima que esteja entre 1 e 2% (Cohen-Kettenis & Pfafflin 2003, Kuiper & Cohen-Kettenis 1998, Pfafflin & Junge 1998, Smith 2005,Dhejne 2014). Em alguns outros estudos longitudinais recentes, nenhum dos participantes demonstrou arrependimento por ter feito a transição médica (Krege et al. 2001, De Cuypere et al.2006).

Essas descobertas fazem sentido dadas as descobertas consistentes de que acesso a cuidados médicos melhoram a qualidade de vida em vários eixos, inclusive o funcionamento sexual, autoestima, imagem corporal, ajuste socioeconômico, vida familiar, relacionamentos, status psicológico e satisfação de vida em geral. Isso é endossado por vários estudos (Murad 2010,De Cuypere 2006, Kuiper 1988, Gorton 2011, Clements-Nolle 2006) que também demonstram consistentemente que o acesso à CCS reduz a taxa de suicídio por um fator de 3 a 6 (entre 67% e 84%).

4. Mas e quanto às pessoas que se arrependeram?

Qualquer cirurgia tem uma possibilidade de arrependimento. Acontece que o risco de arrependimento para a CAS é na verdade muito menor que para muitas outras cirurgias. Com efeito, os níveis de arrependimento para CAS são menores que os de cirurgia de redução de estômago.

Quando questionados sobre arrependimentos, apenas 2% das pessoas que responderam a uma pesquisa com pessoas transgênero no Reino Unido demonstraram ter grandes arrependimentos quanto às alterações físicas que realizaram, comparados a 65% das pessoas não-transgênero no Reino Unido que realizaram cirurgias plásticas.

Os fatores de risco para resultados negativos que geralmente são citados nos estudos são a falta de apoio da família do paciente, apoio social deficiente, transições com idade avançada, psicopatologia severa , aparência física desfavorável, e resultado cirúrgico ruim  (Cohen-Kettenis 2003, Lawrence 2003, Landen 1998, Smith 2005). Lawrence (2003) concluiu que os resultados da cirurgia podem ser mais importantes para o resultado global que os fatores pré-operatórios. Conforme as técnicas cirúrgicas se aprimoram, o risco de complicações de longo prazo caíram para menos de 1% em pacientes homem-para-mulher (Perovic 2000, Jarolím 2009, Wu 2009). Isso acompanha o padrão de queda de arrependimentos.

Pessoas que se arrependem de realizar a transição física são as exceções, não a regra.

5. A comunidade transgênero é intolerante com relação às pessoas que se arrependem de fazer a cirurgia

Não, nós apenas não gostamos quando as pessoas tentam se colocar entre nós e nossos médicos.

Considerando-se o nível de dano possível quando se nega atenção médica, e considerando-se como é raro o arrependimento, negar atenção médica a todos por causa das exceções não faz qualquer sentido lógico ou ético. Em outras palavras, você causaria mais danos a mais pessoas ao negar o acesso a todos que ao manter o sistema que existe hoje, ou mesmo expandir esse acesso. Todas as principais organizações médica apoiam o acesso aos cuidados relacionados à transição e consideram que isso é medicamente necessário por uma razão: os indícios fornecidos pela comunidade científica confirmam isso.

Os padrões estabelecidos pela Organização Profissional Mundial de Profissionais de Saúde Transgênero, Padrões de Cuidado (SOC) 7, são concebidos para garantir que os níveis de arrependimento mantenham-se baixos. Muitos dos casos anedóticos de arrependimento teriam sido evitados se o SOC tivesse sido seguido.

A pressão não deveria ser por menos acesso a esse tipo de cuidado, mas por profissionais médicos que são melhor educados.

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4 comentários

Vini

Oi, eu queria muito fazer a cirurgia de troca de sexo, já pesquisei bastante e é isso que eu quero fazer, mas estou um pouco inseguro e queria conversar com alguém que já fez a cirurgia, obrigado.

Marcio Caparica

Queridos leitores: sabemos que transição sempre é um assunto delicado. Qualquer erro de terminologia nesse artigo não é intencional, e será prontamente corrigido assim que for apontado. Obrigado por nos auxiliarem a criar um espaço mais respeitoso para tod@s trans, estamos aprendendo também!

Rafael

Márcio, você é tudo de bom. Se morasse aqui em Ponta Grossa/PR te dava casa, mesa e banho…

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