“Como você pegou HIV?”, a pergunta inútil

Enfrentar o estigma ao revelar ser soropositivo já é difícil. Ser forçado por alguém a explicar seu passado é pior ainda

por Marcio Caparica

Traduzido do artigo de David Duran para o site The Body

Eu havia acabado de me abrir para ele e contado meu segredo mais profundo e mais escuro. Ele não era a primeira pessoa para quem eu revelava isso, e não seria o último, mas cada vez que eu revelo meu status sorológico eu preciso reunir toda minha força e coragem. Eu sou muito aberto quanto a ser soropositivo. Mesmo assim, dizer “eu sou soropositivo” para alguém ainda dá um nó na minha cabeça.

Depois que o desconforto inicial passou, ele perguntou “você sabe como é que você pegou?”. Peraí, que foi? Eu acabei de me expor a uma rejeição em potencial, e fui jogado de escanteio com uma indagação sobre algo ainda mais pessoal sobre minha vida privada? Ele também não foi o primeiro a querer saber como é que eu me tornei soropositivo, e a maneira como ele perguntou não era incomum, nem estava entre as campeãs na competição de grosseria. Não importa, essa pergunta fez eu me retorcer, ao mesmo tempo que eu revirava os olhos mentalmente.

Eu sou super a favor de contar como eu me tornei soropositivo, especialmente se minha história vai trazer conforto, ajudar alguém a se ver na mesma situação, ou até mesmo educar outras pessoas. Mas essa história é minha, e eu quero contá-la no lugar certo e na hora certa, quando eu decidir que devo. Se você é alguém que eu estou começando a conhecer, é muito errado querer saber sobre isso, ainda mais depois que eu acabei de revelar meu status. Não importa como eu responda, o que eu disser vai mudar sua opinião sobre mim.

“Eu apenas não estava usando proteção e estava sendo promíscuo.” OK, então agora eu sou vadia. “Eu me tornei soropositivo porque num momento da minha vida eu utilizei drogas, e isso aconteceu ou porque eu compartilhei seringas, ou porque fiz sexo sem proteção.” Agora eu sou viciado e vadia. “Meu parceiro me traía.” Agora eu não passo de um idiota por deixar isso acontecer. “Eu não tenho muita certeza sobre como ou quando isso aconteceu.” Agora eu sou todas as anteriores.

Qual é a resposta que vai satisfazer quem faz essa pergunta? Qual é a resposta que vai evitar que quem pergunta isso me cubra com reprovação? Abrir o coração e compartilhar minha história e trajetória pessoal não deveria ser algo a ser evitado, mas, para mim, os detalhes de como eu me tornei soropositivo não são da conta de ninguém a não ser que eu decida o contrário. Eu não preciso de nenhuma carga extra de culpa ou de vergonha para cima de mim por causa de um único momento da minha vida. No que diz respeito a essa pessoa, tanto faz se esse momento está entalhado para sempre na minha mente, ou então vem me causando angústia há anos porque eu não faço a menor ideia do que aconteceu.

David Duran

David Duran

Uma versão que apresente o que muitos consideram ser uma resposta “sem culpa” – um parceiro que pulava a cerca ou algo do gênero – costuma provocar imediatamente toda aquela cena do “pobrezinho”. Eu também não preciso da sua pena ou da sua assessoria. Se eu consegui juntar a coragem para revelar meu status, está bem claro que eu já lidei o suficiente com meus sentimentos para ser capaz de pronunciar aquelas palavras. Dar de ombros enquanto você dá uns tapinhas nas minhas costas e me diz que “tudo vai ficar bem” não ajuda.

Minha reflexão aqui é pura emoção. Não é amargura e não é raiva, e com certeza não é um pedido para ser aceito. Muitos dos que vão ler isso certamente já passaram por essa situação mais de uma vez. E para aqueles que já estiveram na situação de fazer essa pergunta, está tudo bem. Agora você conheceu um ponto de vista que talvez o faça reconsiderar antes de perguntar isso novamente.

A vergonha, quando se trata de HIV, vem de muitas formas. E todas magoam. Eu não discuto “como eu peguei” a sério já faz alguns anos. Eu sempre mantenho a história breve e simples. Eu era casado, ele pulou a cerca e pronto. Mas a verdade é que eu simplifiquei a história porque eu tenho vergonha de não saber ao certo como é que isso aconteceu.

Pode ser que essa versão seja verdade? Certamente, já que eu nunca mais encontrei ou falei com meu ex desde que terminamos. É possível que eu tenha me infectado durante algum dos encontros sexuais sem proteção que eu tive logo depois de terminar meu relacionamento? Mais uma vez, sim, apesar de que eu já me convenci de que esses encontros provavelmente não são os responsáveis, já que eu não era o passivo. Além do mais, depois que eu me descobri soropositivo eu procurei esses caras e perguntei na lata qual era o status deles, e obtive respostas satisfatórias. Talvez as culpadas sejam as tatuagens que eu fiz num país subdesenvolvido durante meu relacionamento? Talvez.

A verdade é que eu não sei, e admitir isso me faz sofrer. Isso me faz reviver uma época da minha vida em que eu estava desesperado para descobrir a resposta para essa pergunta. A mesmíssima pergunta que alguém que eu mal conheço acha que não há problema em me fazer. Todo soropositivo tem sua própria história de como foi infectado com o vírus HIV. Queiram contá-la ou não, o que eu espero é que estejam cientes do seu status, mantenham-se saudáveis e não sintam vergonha.

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9 comentários

EDSON EDENEI SOARES JUNIOR

Não conhecia o site mas posso dizer que estou amando as matérias. Parabéns

Bernardo

Obrigado pela postagem, precisava entender esse universo , e saber caminhar nesse novo universo. Demorei a ter acesso a palavras simples , objetivas e transformadoras a minha pessoa. e repasso , porque viver cheio de dúvidas expectativas, e isolamento não me trouxe nenhum benefício, porém agora só tenho a agradecer pelas postagens , pelas palavras transformadoras.

Rodrygo

Bem, o outro Rodrigo já fez a pergunta que eu iria fazer e já a responderam.
Sou soropositivo e sei bem como é isso. Eu nunca contei como de fato eu fui infectado, por vergonha e reprovação. Sempre conto a mesma história inverídica e resumida, que eu achei suficientemente “justificável”. É ruim se sentir mais à margem do que a sociedade já nos coloca. Porém, eu levo minha condição como uma aprendizagem e uma batalha diária.
Para as primeiras pessoas que contei que sou HIV+, essa pergunta veio quase que automaticamente, eu até as entendo, apesar do remorso que a resposta me causa. Para as seguintes, eu imediatamente já contava como eu peguei com intenção de me sentir menos pressionado e humilhado.
Contudo, o texto é excelente para mostrar o quão dolorido pode ser tocar nesse assunto e fazer com que as pessoas reflitam.

Excelente texto! 😉

Vera Lúcia torres

Achei muito importante seu relato, desabafo ou seja a forma como se mostrou. Acho que ninguém se torna soro positivo do dia para a noite por gosto, aconteceu um incidente triste, agora é levantar a cabeça e seguir em frente, se cuidando para ser feliz. Deus não faz acepção de pessoas. Todos somos amados e queridos por ele. Se ele permitiu isso, ele está no controle de sua vida e nada acontece por acaso. Todos estamos expostos. Por isso amigo, parabéns pela coragem . beijo no coração.

Rodrigo

“Mais uma vez, sim, apesar de que eu já me convenci de que esses encontros provavelmente não são os responsáveis, já que eu não era o passivo.”

Oi? Alguém poderia me explicar qual a relação de ser passivo e pegar HIV ? Só os passivos pegam ? Realmente, não entendi.

Marcio Caparica

Oi Rodrigo. Não, não são apenas os passivos que pegam HIV, mas várias pesquisas apontam que o risco de se adquirir o vírus HIV quando se faz sexo sem proteção é muito maior para o receptivo no sexo anal que para o insertivo, assim como a probabilidade de se transmitir o HIV pelo sexo vaginal é menor que pelo sexo anal. O que não justifica deixar de usar camisinha. http://www.aidsmap.com/O-risco-de-transmiss%C3%A3o-do-VIH-durante-o-sexo-anal-%C3%A9-18-superior-ao-do-sexo-vaginal/page/1446285/

Luis Eduardo

Bem, completei o primeiro ano que sei que tenho HIV, tenho 25 anos e ainda estou muito desmotivado para tentar um relacionamento, sempre me assombra uma mistura de culpa e medo o momento de me abrir, mas vamos indo né.

pedro malheiros

Davim estou com 67 anos, 27 com hiv. Passei pelo que vc contou inumeras vezes.Vc tem toda razão. Não basta saber que ja me declarei infectado? O que muda no
tratamento saber como fui infectado. Me expor a um catalogo, ou dicionario que letra sou. Gostei da sua reaçao. GRANDE ABRAÇO.

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